AS MALASARTES DE LÚCIFER Textos críticos de Teologia e Literatura. Salma Ferraz (organizadora e compiladora)

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1 AS MALASARTES DE LÚCIFER Textos críticos de Teologia e Literatura Salma Ferraz (organizadora e compiladora) 2011

2 Agradecimentos Passeres plumarum similium iunctim uolare solent. 1 Para minha amiga e irmã, Maura Paula Miranda Fortucci Com todo carinho e agradecimento por tudo o que tem feito por mim e pelos meus. Aos Mestres/Abba Joaquim Carvalho da Silva Julio de Queiroz Pela Luz que trouxeram ao mundo. Aos amigos das horas difíceis Raphael, Tony e Roseli A todos os queridos alunos da Cátedra O Diabo na Literatura Ocidental da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC 1 Pássaros de mesma plumagem costumam voar juntos. 2

3 Agradecimentos Ao Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina pela minha liberação para o Pós-Doutorado, o que possibilitou levar avante este projeto. Ao professor Julio Jeha da Universidade Federal de Minas Gerais pela supervisão do meu Pós-Doutorado. À Fundación Carolina de Espanha pela bolsa concedida em 2010 para completação de minhas pesquisas. Ao CNPq pela bolsa de produtividade e pesquisa nunca concedida. 3

4 Introdução: No princípio era... Sumário 1. O Bruxo do Cosme Velho decretou a morte do Diabo Salma Ferraz 2. Vendido a um-que-não-existe: privação, presença e confissão no Grande Sertão Andrei Soares 3. O Diabo no meio do redemoinho Suzi Frankl Sperber 4. O Diabo sem Fausto: as mazelas do tentador nos Trópicos Carlos Roberto F. Nogueira 5. Lúcifer: Lo Mperador Del Doloroso Regno confinado na Divina Comédia Teresa Arrigoni 6. O Diabo é o pai do rock: a imagética do mal na música estrangeira Jaqueline Pricila dos Reis Franz 7. Vampiro o duplo do Demônio: da literatura para à tela do cinema sob o olhar de Francis Ford Coppola Dante Luiz de Lima 8. O Diabo pede perdão: a redenção do Diabo por Saramago Salma Ferraz 9. A desgraça de um Fausto sem Mefistófeles: Macário de Àlvares de Azevedo 4

5 Rozalir Burigo Coan & Tânia Mara Moisés 10. Um Diabo de papel e tinta, mais nada? Marcos Lopes 11. Eles passam, eu fico: figurações de Satanás em A relíquia e São Cristóvão de Eça de Queirós Antonio Augusto Nery 5

6 Com a criação dogmática de um deus antropomórfico masculino e muito machista, devemos concordar, incapaz de responder e solucionar a maioria dos problemas humanos, foi preciso criar, de maneira eficaz, também um diabo zooantropomorfizado e infernal para ser o responsável por toda desgraça e perdição humanas, um culpado virtual por todos os erros, injustiças, crueldades e vícios que assolam o mundo. Assim, o deus teológico, que deveria ser absolutamente perfeito, cheio de misericórdia, bondade e sabedoria, foi inocentado. E como a grande maioria dos seres humanos ignorantes e hipócritas não assume os próprios atos, pensamentos, sentimentos e as próprias responsabilidades, tal invenção odiosa foi rapidamente aceita. A farsa teológica espalhou-se pelo mundo e muitos tolos da fé cega acreditam em um Diabo forjado pelos manipuladores da fé, em um Diabo que combate Deus e que deseja a desgraça dos fiéis. Mas não percebem que sua fé está, na verdade, dividida entre Deus e o Diabo, assim como esses dois supostamente dividem o domínio do mundo! Entretanto, tudo é culpa do Diabo, estando os fiéis isentos de qualquer culpa, nunca se responsabilizando por seus atos, pensamentos e desejos, por piores que sejam. O pobre Diabo carrega toda a culpa das ações catastróficas da humanidade doente e atrasada. Sem o Diabo frankensteiniano e seus servos, a quem os tolos hipócritas irão culpar pelos males de suas vidas e do mundo? Subtraia o Diabo da Igreja e a Cristandade toda desaparece. Adriano Camargo Monteiro 2 2 MONTEIRO, Adriano Camargo. A revolução luciferina. São Paulo: Masdras Ed.,

7 Hermana Duda Jorge Drexler No tengo a quien rezarle pidiendo luz, Ando tanteando el espacio a ciegas. No me malinterpreten, No estoy quejándome. Soy jardinero de mis dilemas. Hermana duda, Pasarán los años, Cambiarán las modas, Vendrán otras guerras, Perderán los mismos Y ojalá que tú Sigas teniéndome a tiro. Pero esta noche, hermana duda, Hermana duda, dame un respiro. No tengo a quien culpar Que no sea yo, Con mi reguero de cabos sueltos. No me malinterpreten, Lo llevo bien, o por lo menos Hago el intento. Hermana duda, Pasarán los discos, Subirán las aguas, Cambiarán las crisis Y pagarán los mismos Y ojalá que tú Sigas mordiendo mi lengua. Pero esta noche, hermana duda, 7

8 Hermana duda, dame una tregua. Hermana duda, Pasarán los años, Cambiarán las modas, Vendrán otras guerras, Perderán los mismos Y ojalá que tú Sigas teniéndome a tiro. Pero esta noche, hermana duda, Sólo esta noche, dame un respiro. 8

9 Lúcifer Pensador 9

10 NO PRINCÍPIO ERA... Não poderá dar-se que Ele tenha querido libertar-nos da escravidão do Demônio, na esperança de que os homens, por seu turno, possam libertar o Demônio da sua condenação? Não poderá dar-se que Cristo tenha redimido os homens a fim de que estes, mediante o divino preceito de amar os inimigos, venham a ser dignos de sonhar um dia a redenção do mais funesto e obstinado Inimigo? (Giovanni Papini. O Diabo: 1954, grifos do autor). Quem afinal é Lúcifer? Ele é a mesma serpente que no Paraíso tentou Adão e Eva? Ou a serpente era um mensageiro dele? Lúcifer é o mesmo Satanás que tenta Jó, devidamente autorizado por Deus? Lúcifer é o mesmo Satanás que tenta, com perguntas ridículas, Jesus no deserto? Ele é a Estrela da Manhã de Isaías 14:12-14? Ele é o perfeito em seus caminhos citado em Ezequiel 28:12-15, até que nele foi achada iniquidade? Ele é aquele que caiu do céu, como um raio citado em Lucas 10:18? Ele é o Diabo, o Dragão e a antiga Serpente, amarrada por mil anos descrita em Apocalipse 20:2, que arrastou consigo a terça parte dos anjos celestes? Que poder das trevas é este que seduz e encanta o mundo há dois mil anos? Afinal, quem realmente é a criatura fracassada criada por Deus? Quem é o Diabo? Quem é Lúcifer? Qual sua verdadeira origem, qual seu pecado, qual seu verdadeiro nome? Era perfeito? Se era perfeito não poderia ter pecado, e se pecou, Deus não o criou perfeito. Mas Deus é perfeito! Como sair deste paradoxo? Mistérios luciféricos... Reproduzo aqui um trecho constante em um de meus ensaios contidos neste livro: se os estudos teológicos e literários dão conta de uma Teopoética que se manifesta em vários autores, conforme o proposto por Karl-Josef Kuschel em seu livro Os escritores e as escrituras (1999); se a Teodiceia (do grego θεός - theós, "Deus", e δίκη - díkē, Justiça ) foi proposta pelo alemão Gottfried Leibniz em 1710, tentando entender o paradoxo da coexistência de um Deus Todo- Poderoso e o mal; se a epopeia de Jesus já foi centenas de vezes revisitada, quem afinal contou a epopeia ou a antiépica de Lúcifer, ou aquilo que 10

11 denominamos antiteodiceia de Lúcifer, ou odisseia luciferina, ou a Sataniceia? Porque se Deus, conforme tão bem apontou Jack Miles em Deus: uma biografia (1997) é um membro quase virtual da família ocidental e está impregnado no DNA da civilização ocidental, o quê dizer do Diabo, de Lúcifer? Afinal, a outra face da moeda deveria acompanhar o sucesso Daquele! Como o homem ocidental consegue equilibrar-se entre a hipótese Deus e a hipótese Lúcifer? Será que somente a estória de Troia, de Ulisses e de Jesus são o suficiente para a humanidade, conforme lembrou Borges? E a magnífica trajetória de Lúcifer, onde fica? Talvez ele esteja mais próximo do ser humano do que qualquer pessoa da Trindade, justamente por ter sido demasiadamente humano. Para o crítico Albert Cousté, em sua obra Biografia do Diabo (1996, p.22), o Diabo é dor de Deus. O escritor Eça de Queirós, no conto O senhor Diabo (1877), afirma que o Diabo é a figura mais dramática da História da Alma e que o Diabo tem talvez nostalgia do céu! Harold Bloom, em Anjos Caídos (2008), conclama os humanos a se solidarizarem com o velho Satã, porque, afinal, todos nós não passamos também de Anjos Caídos. Cabe aqui duas perguntas interessantes: 1) não seria Satanás apenas a imaginação de Deus? 2) Não seria o Diabo apenas uma criação do homem, que o criou a sua imagem e semelhança? O escritor Giovanni Papini, cujo pensamento variou entre o ceticismo e o catolicismo, publicou um livro denominado O Diabo: apontamentos para uma futura Diabologia (1953), no qual, ele adjetiva Lúcifer de Anjo Fulminante e constrói uma espécie de Summa Diabológica. Para Papini, o Diabo merece ser perdoado, foi uma personagem necessária à paixão de Jesus, sendo, nesta tragédia, talvez o único inocente. Papini afirma que Satanás talvez esteja desde o princípio esperando um movimento de compaixão de Deus, de Jesus, dos cristãos, dos homens. Papini analisa o pensamento do númida Lucius Caecilius Firmianus, conhecido por Lactâncio. Na obra Divinae Institutiones II, Lactâncio afirma que Lúcifer teria sido nada menos nada mais que o irmão do Logos, do Verbo, isto é da Segunda Pessoa da Trindade. Papini analisa Lactâncio: 11

12 No Espírito primogênito, cumulado de todas as virtudes divinas e que Deus amou sobre todos os outros, é fácil reconhecer o Verbo, isto é, o Filho por excelência. Mas a narrativa de Lactâncio faz pensar que o outro espírito, igualmente dotado, era o secundogénito do Pai: o futuro Satã, seria destarte nada menos que o irmão mais novo do futuro Jesus Cristo. E Satã não teria sido invejoso do homem como sustentaram S. Cipriano, S. Ireneu e S. Gregório de Nissa, mas invejoso sim do próprio irmão (PAPINI, 1954, p , grifos do autor). O teólogo Paul Tillich, em sua obra Filosofia da Religião (1925), afirma que o demônico aparece em contraposição ao divino e ambos estão inseridos na esfera do Sagrado: o demônico é o Sagrado precedido por um sinal menos : o antidivino sagrado. Carlos Eduardo Brandão Calvani, analisando o pensamento de Tilich em Teologia e MPB (1998), acrescenta que se trata do sagrado negativo, destrutivo, entretanto, ainda é sagrado, uma vez que provém do mesmo abismo de onde flui a graça. O jesuíta J. M. Martins Terra, em sua obra Existe o Diabo? Respondem os Teólogos (1975), afirma que A existência do Diabo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio, nem nunca foi posta em dúvida por nenhum heresiarca. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé (grifos do autor). Ou seja, se você não acredita em Deus, você é ateu, mas se não acredita no Diabo é igualmente ateu, já que a crença nele é um dogma de fé. Portanto, tínhamos os sem-deus e agora temos o sem-diabo. Não é sem razão que Borges considerava a teologia como uma forma particular da literatura fantástica. 3 Já Peter Stanford em O Diabo: uma Biografia (2003), a partir dos estudos de Freud, entende que todas as acusações doentias lançadas pela Inquisição sobre as mulheres consideradas bruxas, revelam apenas o alto grau de repressão sexual no período medieval, um monstruoso inconsciente sexual reprimido. Concebe o Diabo como uma linha maligna e atemporal do insconciente coletivo ocidental, um grave distúrbio cerebral, psicose funcional, esquizofrenia coletiva 3 Cf. Callois, Borges: diálogo fugaz. Revista de Cultura, Fortaleza; São Paulo, n. 7, out Disponível em: < Acesso em 07 ago

13 ocidental. Afirma que as possessões não passavam de problemas psiquiátricos e estas, juntamente com própria questão do Diabo, entraram em declínio no século XX, com o aprimoramento da Medicina e das Ciências. Portanto, o lugar do Diabo, a partir do século XX, ficou relegado às poltronas dos psiquiatras. Mas estaríamos então presenciando o eclipse do Diabo? Segundo Stanford, a resposta é não. Na terceira parte de seu livro, comenta que ainda é muito cedo para um obituário (2003, p. 281). Stanford explica que a cultura popular sustenta a existência do Diabo e o Cristianismo tem medo de aposentar seu filho predileto, o Diabo, o primeiro rebelde do cosmos, já que ele funciona como uma espécie de esqueleto dentro do armário, como uma arma secreta deixada no limbo, a ser usada nos momentos de crise e falta de fé. Albert Cousté, na conclusão de seu livro Biografia do Diabo: o Diabo como sombra de Deus na História (1996), afirma que, no século XIX e no século XX, Satanás foi e continua sendo um grande personagem literário e que sua maior estratégia, sua grande obra para sobreviver, é converte-se em personagem de ficção e convencer-nos de que ele não existe, como já afirmava Baudelaire. A teoria de Cousté mostra-se certa se observamos os doze artigos a seguir, nos quais os autores revelarão as travessias, as travessuras e agruras de Lúcifer na Teologia, na Literatura, no Sertão, na Pintura e no Rock. No ensaio O Bruxo do Cosme Velho decretou a morte do Diabo, de minha autoria, analisarei um pouco da trajetória de Lúcifer na Bíblia, na teoria além de alguns aspectos luciferinos na Teologia e, principalmente, como Machado de Assis decretou a morte do Diabo no conto O Anjo Rafael (1869), publicado no Jornal das Famílias, exatamente 23 anos antes de A Gaia Ciência (1882), obra na qual Nietzsche matou Deus. No ensaio Vendido a um-que-não-existe: privação, presença e confissão no Grande Sertão, Andrei Soares nos revela a dúvida Shakespearosiana do pseudopactário, ser ou não ser Deus ou o Diabo no Sertão de Guimarães Rosa. Em O diabo no meio do redemoinho, a especialista em Guimarães Rosa Suzi Frankl Sperber nos revela os monólogos e dúvidas de Riobaldo sobre a existência ou nenhuma existência do demônio, revelando que, na obra do escritor mineiro, é 13

14 pela obsessão da ausência que o demônio aparece. O Diabo é aquele que não é. Nonada. No nada. No artigo O Diabo sem Fausto: as mazelas do tentador nos Trópicos, Carlos Roberto Nogueira nos informa o destino do Diabo após descer das caravelas e passar a viver em terras brasileiras. Teresa Arrigoni, especialista em Dante, em seu artigo Lúcifer: Lo mperador Del Doloroso Regno confinado na Divina Comédia descreve em que lugar do inferno está o seu imperador, os detalhes de sua magistral figura e quais pecadores desfrutam de sua companhia. No artigo O Diabo é o Pai do Rock: a imagética do Mal na música estrangeira, Jaqueline Pricila dos Reis Franz analisa a importância do Diabo no rock entre compositores, bandas e conjuntos de rock famosos como Mercyful Fate, Alice Cooper, Rolling Stones, Marilyn Manson e Iron Maiden. Dante Luiz de Lima, no artigo Vampiro, o Duplo do Demônio: da Literatura para a tela do Cinema sob o olhar de Francis Ford Coppola, investiga a figura do vampiro como figura demoníaca, afinal, qual relação existe entre o vampiro e o Diabo? Suas reflexões partem do filme Drácula (1992), dirigido por Francis Ford Coppola e baseado no romance homônimo de Bram Stoker, escrito em No ensaio O Diabo perde perdão: a redenção do Diabo por Saramago, também de minha autoria, analiso o resgate do Lúcifer filosófico criado por Saramago, que se reúne na barca com Deus e Jesus, num encontro de demiurgos, para salvar o próprio Salvador e a humanidade. O Diabo, que neste desevangelho é chamado de Pastor, é identificado como um heterônimo de Deus, condenado a ser eternamente o mal, sem chance de redenção. Já as articulistas Tânia Mara Moisés e Rozalir Burigo Coan refletem sobre A desgraça de um Fausto sem Mefistófeles: Macário de Àlvares de Azevedo, e esclarecem que Álvares de Azevedo foi o primeiro romântico brasileiro a dar voz ao Demônio. Revelam um Macário se alegra ao se encontrar com Satã: A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles... Olá, Satã! Marcos Lopes, em Um Diabo de papel e tinta, mais nada?, também discute as figuras do Diabo e de Deus no Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, à luz da glosa ficcional feita segundo a definição filosófica de 14

15 Santo Agostinho: o Mal é a ausência do Bem. Refletindo sobre a obra de Eça, o articulista Antonio Augusto Nery, em Eles passam, eu fico: figurações de Satanás em A relíquia e São Cristóvão de Eça de Queirós, revela-nos que, em São Cristóvão, Satanás é o Pai dos Pobres e que o socorro vem do Inferno. Eis aqui um pouco das reflexões em torno do brilho luciferino da Estrela da Manhã na Teologia, na Literatura, no Sertão, na Música e Pintura, do ser que tem uma triste nostalgia do céu. Não temos respostas às perguntas aqui formuladas, somos apenas Riobaldos liliputianos tentando encontrar veredas neste ser tão... Se a última grande obra de Lúcifer é transformar-se em mero ser de papel, Consummatum est. Imprimatur! Nomodiabopadrofilhospritossantamêin! Salma Ferraz (Organizadora e Compiladora) Raphael Novaresi Leopoldo (Editorador e Revisor Geral) 15

16 Lúcifer 16

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18 O Bruxo do Cosme Velho decretou a morte do Diabo Salma Ferraz 18

19 O BRUXO DO COSME VELHO DECRETOU A MORTE DO DIABO Salma Ferraz Chamo-me Lúcifer, aquele que traz a luz. Assim cantavam os anjos menores, até que lhes foi proibido este canto. Desde então, meu apelido corrói os tempos anunciando aquele que arma ciladas. Bazófia: o homem dispensa Satanás e sabe perder-se por si mesmo (Walmor Santos. Além do medo e do pecado.). Se a glória de Deus é encobrir, como relata Provérbios 25:2, parece que a glória dos escritores é investigar: creio, logo duvido; não creio, logo questiono. Deus e o Diabo. Entre as maiores perguntas do Ocidente estão estas: Deus existe? Quem criou Deus? Entre tantos estudiosos desse assunto citamos três, com suas obras mais recentes: Deus: uma Biografia (1997), 4 de Jack Miles; Deus: um Delírio (2007), de Richard Dawkins; e Tratado de Ateologia (2007), de Michel Onfray. No entanto, por que não colocar a questão da existência divina a partir de um olhar antiteticamente teológico? O Diabo existe? Você acredita no Diabo? Não são poucas as obras dedicadas a Lúcifer/Satanás, mais comumente conhecido por Diabo, além de centenas de apodos nada elogiosos. Não nos compete, em tão pouco espaço, a ontológica tarefa de debater o problema da existência ou não do Diabo; isso pertence aos demonólogos. Uma vez constatada a inquestionável presença do Diabo na teologia cristã e na literatura ocidental, pontuaremos alguns aspectos das possíveis biografias do Diabo na Bíblia e na Literatura para embasar nossas reflexões sobre o Diabo em Machado de Assis. Neste artigo, interessa-nos cinco momentos específicos: O Diabo na Bíblia, o Diabo e os teólogos, o Diabo e os teóricos, O Diabo e a Literatura Ocidental e o Diabo em Machado de Assis. 4 Os livros cujo excerto ou excertos são aqui citados estão devidamente referenciados na bibliografia deste artigo, já as obras cuja citação resume-se ao título, fazemos constar apenas o ano de lançamento no próprio corpo do texto. 19

20 Sobre Deus, o pensador alemão Gottfried Leibniz, já escreveu sua Teocideia em 1710, 5 mas, afinal, quem escreveu a odisseia de Lúcifer? Quem já se aventurou ou se aventura a defender o chamado Anjo Caído? Algumas vozes luciferinas do terceiro milênio já são ouvidas, das quais citamos três (outras estão listadas na bibliografia final): A Biografia do Diabo (1996), de Alberto Cousté; História Geral do Diabo (2001), de Gerard Messadié; e Uma História do Diabo (2001), de Robert Muchembled. Parece-nos, com essa abertura ao questionamento sobre a existência de Lúcifer, que é a hora e a vez do tinhoso, aquele cujo nome as pessoas preferem não pronunciar O DIABO NA BÍBLIA Se observarmos com cautela o Antigo Testamento, constataremos que não existe menção ao Diabo. O Diabo nasceu, fecundou e procriou junto com o cristianismo. No Antigo Testamento temos o episódio da tentação e da serpente que provocou a queda de Adão e Eva, 6 relatado em Gênesis 3, depois o ritual envolvendo o dia da expiação e o bode expiatório em Levítico 16, e, mais à frente, o surpreendente Livro de Jó, no qual aparece pela primeira vez Satanás. Com relação ao episódio da serpente, provavelmente foi escrito por influência de mitologias ou lendas de outras culturas no Oriente Médio com os quais os judeus tiveram contato, já que a serpente, nessas culturas, era símbolo de sabedoria, astúcia e poderes maléficos, e foi por isso tardiamente associado ao Diabo. 7 A simbologia do bode expiatório é riquíssima e um tanto controvertida. Teses e mais teses já foram escritas sobre sua simbologia. Umas indicam o bode expiatório como sendo uma alusão a Jesus, porque ele carrega as culpas e é morto no deserto; outros defendem que o bode expiatório simboliza o Diabo, já 5 A Teodiceia é um campo da Teologia natural que defende a onipotência, a onisciência, a justiça e a bondade de Deus. É contra a ideia de que a presença do mal e do sofrimento no mundo reduzem ou minimizam os atributos divinos. Essa expressão foi criada por Leibniz, em sua obra Teodiceia, publicada em Nesse ensaio, o filósofo debatia a bondade de Deus, tentava um tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a origem do mal. Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma posição otimista, concluindo que o mundo criado por Deus ainda é o melhor dos mundos possíveis. 6 Gênesis 6 traz outra versão da queda: a união antinatural de seres celestiais com as filhas dos homens teria resultado na criação de uma raça de gigantes. 7 Em Números 21-8 o símbolo da serpente é positivo. O Senhor, enraivecido contra o seu povo, manda um ataque de serpentes abrasadoras. Moisés intercede pelo povo e Deus manda Moisés fazer uma serpente de bronze e colocá-la sobre uma haste. Quem era mordido pela serpente abrasadora olhava para a serpente de bronze e se curava. 20

21 que ele é o responsável pela culpa dos humanos, pois fez os primeiros pais pecarem, o primeiro Adão falhar. O importante é frisar que, com o tempo, o bode passou a ser também associado somente ao Diabo. A imagética que perdurou no imaginário foi de um ser metade humano e metade bode. Na sequência, um dos livros mais sensivelmente filosóficos de todo o Antigo Testamento: o Livro de Jó, o big brother celestial. Deus provoca Satanás, que nesse livro é identificado como um dos filhos de Deus que frequentava o céu com muita intimidade e liberdade, para uma disputa, em que os dois observariam tudo do camarote. Jung, em Resposta a Jó, afirma que Satanás talvez seja um dos olhos de Deus que perambula sem rumo certo pela terra (2001, p. 16, grifos do autor). Jó vai duas vezes para o paredão sem clemência alguma. Na primeira, Deus permite que Satanás tire tudo que ele tem: fazendas, filhos, servos, bens, e ele vence. Não satisfeito, Deus pela segunda vez o envia para a beira do abismo e permite que Satanás toque em sua carne, mas Jó não renega a Deus e triunfa novamente. A alma de Jó é oferecida numa bandeja para Satanás, há um pacto entre Deus e Satanás, e não seria exagero dizer que o mito de Fausto, muito antes de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Tomas Mann, Paul Valéry, Guimarães Rosa, nasceu aqui, com uma diferença: Jó não sabia de pacto algum. A tão propalada humildade de Jó não passa de uma balela. Jó não é humilde, pede explicações e ousa questionar Jeová. Jó quer saber da justiça de Deus, e Deus o responde irritado, mostrando seu poder. Ou seja, não responde o que Jó quer saber. No jogo de azar que é jogado para desgraça de Jó, Deus silencia e sai como um perdedor, Satanás só aparece no Prólogo do livro e Jó é o grande vencedor. Nos céus também se fazem apostas e jogos de azar... 8 Aqui Deus é demasiadamente humano e Jó demasiadamente divino. Dezenas de livros e teses já foram escritas sobre Jó e a partir delas permitimos-nos fazer algumas considerações. 9 O Livro de Jó consiste em uma teologia do sofrimento, pois nele, pela primeira vez, o caráter e a justiça de Deus 8 Sobre este tópico consultar FERRAZ, Salma. Jó, quem o tentou? A Onipotência em meio à Stempestade contra o verme humano esmagado e rastejante. In:. et al. Deuses em Poéticas: Estudos de Literatura e Teologia. Belém: UEPA; UEPB, Sobre esse assunto, pode-se consultar os livros Resposta a Jó, de C. G. Jung, e Jó a força do Sescravo, de Antonio Negri, e também o capítulo Confronto do livro Deus, Uma biografia, de Jack Miles. 21

22 são questionados por um pobre mortal que sofre muito além de suas forças. Em verdade, o confronto não se dá entre Satanás e Jó, mas sim entre Deus e Jó, uma vez que Satanás é apenas um instrumento para realizar a vontade de Deus. Aqui se acentua o caráter destrutivo de Javé. Jó questiona a justiça divina e Deus não responde ao que ele pergunta, considera isso uma ousadia, sente-se embaraçado e o esmaga, mostrando não sua justiça, mas seu poder, com discurso arrasador. Se Deus era onisciente, por que provocou Satanás? Afinal, nem ele pode ser tentado além do que pode resistir... O autor desse livro [...] imagina Jó sofrendo em um mundo governado por um deus que faz apostas com o demônio, manipulado e controlado por um demônio (MILES, 1997, p. 347). Retomamos nossa ideia, anteriormente já exposta: essa aposta funda o pacto e o mito de Fausto, enfim, revela-nos um mundo regido por dois demônios orgulhosos, e a partir daí o caráter demoníaco do Senhor Deus. O imenso discurso de Deus de nada serve. O silêncio de Jó é o silêncio dos vencedores e o silêncio de Deus é o silêncio dos perdedores. A partir de então Deus não fala mais no restante do Antigo Testamento. Explicitamos aqui toda essa rápida exegese para ilustrar que, no Antigo Testamento, prevalece uma visão monista, não existe a figura do Diabo, nada ofusca a soberania de Jeová. Tanto o bem quanto o mal procedem de Deus. Citamos alguns exemplos: a destruição de Sodoma e Gomorra, a Torre de Babel, as dez pragas do Egito. Corrobora nosso pensamento Messadié que, em sua História geral do Diabo, afirma: Deus é assim, no Antigo Testamento, simultaneamente o Bem e o Mal. O Diabo não é senão o seu servidor e nunca se encontra o conflito que colora tão fortemente o Novo Testamento, onde o Diabo aparece sempre como o inimigo de Deus e o Príncipe deste mundo, em oposição ao Rei dos céus [...] a teologia do Antigo Testamento não concebe senão um pólo único no universo, e o Diabo nunca tem aí senão um papel conforme à vontade do Criador. Satanás é o Mal? Não, ele é o sofrimento pretendido pela vontade de Deus (MESSADIÉ, 2001, p. 303) Todos os negritos deste artigo são de autoria da articulista. 22

23 O Novo Testamento já inicia com o episódio envolvendo o Diabo: a famosa tentação de Jesus, relatada em Mateus 4. Ele é descrito como o tentador, mas Jesus não se assusta com sua presença, parece que são conhecidos de longa data. Se pensarmos na inteligência de Lúcifer e sua estrondosa revolta, que levou consigo a terça parte dos anjos, as perguntas do Diabo são simplesmente ridículas. Como todos sabem, Jesus resiste à tentação. Em todo o Novo Testamento são muitos os casos de possessão demoníaca como, por exemplo, o endemoninhado de Gadara. Jesus curou diversos endemoninhados, e a palavra demônio passou a ser associada ao Diabo. Aqui temos um problema com a etimologia da palavra. No Velho Testamento, Satan é uma palavra em hebraico ( ) que significa adversário. Em Jó, Satanás é um Membro do Conselho de Deus. Até aqui, Satan não é o Diabo, só se tornará plenamente o Diabo pelos comentaristas cristãos. O problema ocorre quando o Diabo passa a ser designado pela palavra dáimon (do grego δαίμων, transliteração dáimon, ou demônio, tradução "divindade", "espírito"). Luther Link esclarece que um dáimon era um espírito mediador entre deuses e homens (LINK, 1998, p. 25). Esse dáimon poderia ser uma divindade, um espírito bom ou perverso, porém, na escrita do Novo Testamento em grego, a palavra dáimon manteve somente a acepção de espírito do Mal. Aqui está, portanto, a origem do termo endemoninhado: aqueles que estavam possuídos pelo Diabo. Na realidade, Quevedo, em sua obra Antes que os Demônios voltem, esclarece que todos os casos de possessão demoníaca do Novo Testamento tratavam-se de pessoas com sérios distúrbios psíquicos. O Novo Testamento desenrola-se e o Diabo progride junto com ele. O evangelista Lucas informa que Satanás entrou em Judas e por isso Judas traiu Jesus. Podemos deduzir então que Judas era inocente! O próprio Jesus foi acusado pelos fariseus de estar endemoninhado já que, segundo eles, expulsava demônios pelo poder de Belzebu. Lucas faz com que os demônios sejam os primeiros a reconhecerem a divindade de Jesus ao afirmarem: Ah! Que temos nós contigo, Jesus Nazareno?... Bem sei que és o santo de Deus! (Lucas 4:34). 23

24 O evangelista João aponta-o como sendo homicida desde o princípio do mundo, pai da mentira, e príncipe do mundo. Na sequência o apóstolo Paulo, em todas as suas cartas, amedronta os cristãos de sua época fomentando a existência do Diabo. É São Pedro quem afirma em sua primeira epístola: Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda de derredor, como o leão que ruge procurando alguém para devorar; resisti-lhe firmes na fé (I Pedro 5:8). É no Apocalipse, entretanto, escrito em torno do ano 100 d.c, que finalmente é estabelecida a conexão entre a revolta de Lúcifer, a queda dele e da terça parte dos anjos, a queda de Adão e Eva e o episódio da serpente no paraíso, a tentação de Jesus e o grande Armagedon - a batalha final do bem contra o mal. Citando trecho do Apocalipse : Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos. Muchembled, em seu livro Uma história do Diabo, resume as conexões da trajetória de Lúcifer/Serpente/Satanás/Diabo: Precisaram, assim, casar a história da serpente com a do rebelde, do tirano, do tentador, do sedutor concupiscente e do dragão todopoderoso. Um autor declarou recentemente que a vitória do cristianismo neste domínio consistiu em tomar emprestado um dos mais importantes modelos narrativos do Oriente Próximo: o mito cósmico do combate primordial entre os deuses, que tem na condição humana seu desafio fundamental. Esta versão pode, segundo ele, ser assim resumida: um diabo rebelde ao poder de Jeová faz da terra uma extensão de seu império para nela reinar pelo poder do pecado e da morte. Deus deste mundo, como o denomina São Paulo, ele é combatido pelo filho do Criador, o Cristo, por ocasião do mais misterioso episódio da história cristã, a Crucificação, que combina uma derrota e uma vitória simultâneas. A função de Cristo no decurso dessa luta, que só terminará no fim dos tempos, é ser o libertador potencial da humanidade, em confronto com Satã, seu adversário por excelência (2001, p. 19). 24

25 Do Diabo bíblico passemos para o Diabo dos teólogos, afinal a teologia ocupa-se dele quase tanto quanto de Deus, uma vez que a criatura se tornou tão famosa quanto seu criador O Diabo e os Teólogos Na Teologia, muitas foram as obras e muitos foram os concílios que trataram da trajetória e da existência de Lúcifer, e seria uma tarefa hercúlea relacioná-los, por outro lado registramos algumas referências: Peter Kreeft, jesuíta americano, afirma que a existência do Diabo é um dogma de fé e cita como fonte o 4º Concílio de Latrão, de Essa mesma ideia estaria no Catecismo. Segundo a interpretação de Kreeft sobre o Concílio de Latrão, Satanás e os outros demônios são por natureza espíritos criados por Deus e, portanto, originalmente bons, mas caíram no pecado no exercício de sua vontade livre. A existência de Deus bem como a existência de Satanás são dogmas do Cristianismo, e negar a existência tanto de um como de outro é considerado heresia. A Igreja Católica, a Bíblia e os dogmas confirmam a existência de Lúcifer. 11 Nenhum Papa, nenhum Concílio jamais pôs em dúvida a existência de Lúcifer. O exegeta jesuíta J. M. Martins Terra, em sua obra Existe o Diabo? Respondem os Teólogos (1975) esclarece que: Não há dúvida alguma que Paulo VI espelha fielmente o Magistério ordinário, bi-milenário da Igreja, quando pronuncia estas palavras. A existência do Diabo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio, nem nunca foi posta em dúvida por nenhum heresiarca. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé (1975, p. 277, 278). Ou seja, crer no Diabo é um dogma de Fé e o Sínodo I de Braga ( /566), presidido por Martinho de Panónia/Martim de Braga/São Martinho de Dume (Bispo Titular de Braga) e apoiado pelo Papa João III, afirma que, se alguém pensar de forma diferente, pode ser considerado anátema. 11 O Papa Bento XVI, em 2007, num sermão em Roma, reiterou a existência do Inferno, não como imagem literária, mas realmente como um lugar em que as pessoas queimam pela eternidade. 25

26 Diante de alguns questionamentos de qual seria a posição oficial da Igreja sobre a existência do demônio, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (Roma) encarregou um estudioso nesta área, do qual resultou um estudo publicado no Jornal L Osservatore Romano em 04/07/1975. Estevão Bettencourt, afirma que: No decorrer dos seus quase vinte séculos de história, o Magistério da Igreja poucas vezes se pronunciou sobre o demônio em termos dogmáticos. A razão disto é que tais pronunciamentos supõem sempre especial ocasião (o surto de alguma heresia, uma controvérsia...). Ora em duas fases houve, de fato, motivo para que a Igreja proferisse explicitamente a sua doutrina sobre o demônio: a primeira ocorreu no século VI (563 ou 566), quando o Maniqueísmo e o Priscilianismo ensejaram uma afirmação solene do Concílio regional de Braga I (Portugal). A segunda se deu no século XIII (1215), quando o Concílio ecumênico do Latrão IV se opôs ao novo surto de Maniqueísmo encabeçado pelos cátaros ou albigenses (1975, p. 5-8) O autor esclarece que, ao retormar os ensinamentos dos mestres dos séculos anteriores, principalmente os de São Leão Magno (461), o Sínodo de Braga, no seu cânon 7, assim se expressava: Se alguém disser que o Diabo não foi primeiramente um anjo bom feito por Deus e que a sua natureza não foi a obra de Deus; se, ao contrário, afirma que o diabo saiu do caos e das trevas e que não tem autor do seu ser, mas é ele mesmo o princípio e a substância do Mal, como disseram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema (1975, p. 5-8). O próprio Concílio Vaticano II menciona a existência do demônio, porém, após esse Concílio surgiram algumas heresias sobre esse tema e houve certa apostasia de uma parte do clero. Ocorreu o que se denominou de exegese moderna. A partir de então surgem, nas últimas décadas, os conceitos do teólogo protestante alemão Rudolf Karl Bultmann ( ), teórico da chamada desmitologização, que consiste na negação dos milagres e do sobrenatural dos Evangelhos. Ele tenta reinterpretar a linguagem mitológica da Bíblia, defendendo que a sociedade contemporânea, acostumada e desfrutando dos avanços da 26

27 ciência, não poderia mais conviver com os mitos bíblicos, sendo que a teologia deveria contextualizar as passagens bíblicas para aproximá-las da cosmovisão moderna. Bultmann, leitor de Heidegger, é cético com relação à historicidade do Novo Testamento. Isso é levado às últimas consequências por alguns de seus discípulos, que passaram a adotar o nome significativo de teologia da morte de Deus ou teologia radical 12 surgida na década de Quanto a isso, Martins Terra esclarece que: Os discípulos de Bultmann, sobretudo os teólogos da "Teologia da morte de Deus" foram menos hipócritas, mais coerentes e puseram a nu toda a verdade. [Para eles] Não foram somente os anjos e demônios que morreram, mas sim o próprio Deus. De fato, toda essa literatura que versa sobre a impossibilidade de anjos e demônios é bastante ambígua. Basta, porém, trocar a palavra anjo e demônio pela palavra Deus e ela perderá toda a sua equivocidade, mostrando toda a sua significação e adquirindo uma densidade profundamente filosófica (1975, p. 196). Essa chamada heresia infiltrou-se sorrateiramente no clero católico. A dúvida da existência ou não de anjos e demônios, bem como a dúvida sobre a existência de Deus, chegaram à alma da Teologia Católica por meio da exegese moderna. Observemos que a Teologia da morte de Deus implica também a Teologia da morte do Diabo, uma vez que ele faz parte do sobrenatural. Outros teólogos vão em direção oposta, não negam a existência de Deus ou a existência do Diabo, nem a morte de um ou outro, declaram que ambos pertencem à esfera do sagrado e que o ponto de vista do observador é que vai qualificar a natureza do sagrado - se positivo ou negativo, divino ou demoníaco. Deus e o Diabo aparecem 12 Defendiam o conceito de que um Deus transcendente na melhor e na pior das hipóteses não pode ser conhecido, portanto, não existe. O Deus empírico não pode ser verificado e o mundo bíblico mitológico não é compatível com a mentalidade moderna. Estes teólogos embaseram-se nos estudos de filófosos como Immanuel Kant ( ), David Hume ( ), Martin Heidegger ( ) e na ideia do Deus esta morto de Friedrich Nietzche ( ), que matou Deus, um século antes da morte de Deus dos teólogos aqui mencionados. Ainda há certas divergências de quais foram os principais teóricos e pensadores que influenciaram este movimento. Citamos os mais apontados: o alemão Rudolf Karl Bultmann ( ), o teólogo alemão estado-unidense Paul Tillich ( ), o alemão Dietrich Bonhoeffer ( ), o norte-americano de origem francesa Gabriel Vahanian (1927) publicou o livro Deus está morto em 1961, na qual defendia que Deus está morto na cultura ocidental, o norte-americano Thomas J.J. Altizer (1927), o filósofo escocês William Hamilton ( ), e o teólogo norte americano Paul van Buren ( ) que publicou o livro The Secular Meaning of the Gospel em A partir de um artigo publicado pela revista Time em outubro de 1965, com o título Christian Atheism: The "God Is Dead" Movement, quatro teólogos foram agrupados no movimento: Thomas JJ. Altizer, Paul van Buren, William Hamilton e Gabriel Vahanian. Para maiores esclarecimentos consultar ALTIZER, T.; HAMILTON, W. La teologia radicale e la morte di Dio. Milão: Feltrinelli, Citamos uma das frases de Dietrich Bonhoeffer; na direção da autonomia do homem completou-se, de certa forma, em nossa época. O homem aprendeu a lidar com todas as questões de importância sem recorrer a Deus como uma hipótese funcional Cada vez torna mais evidente que tudo funciona normalmente sem Deus. Já se admite que o conhecimento e a vida são perfeitamente possíveis sem ele. In: Cartas da Prisão, Nova York: Mc Millan 1962, 208, negrito nosso. 27

28 então como construções mentais, símbolos explicativos para o mesmo e único Sagrado Incondicional ou o Deus-acima-de-Deus, do qual Paul Tillich ( ) fala em A coragem de Ser (1972). A primeira menção do demônico em Tillich ocorre num artigo de 1923 sobre o Socialismo Religioso, chamado Grundlinien des religiösen Sozialism. No entanto, a articulação do conceito começa a firmar-se realmente em sua obra Filosofia da Religião, de Nessa obra, o demônico aparece em contraposição ao divino e ambos estão inseridos na esfera do Sagrado. Para Tillich, "o demônico é o Sagrado precedido por um sinal 'menos': o antidivino sagrado" (1969, p. 74). Carlos Eduardo Brandão Calvani, analisando o pensamento de Tilich, acrescenta que se trata do sagrado negativo, destrutivo. Entretanto, ainda é sagrado, uma vez que provém do mesmo abismo de onde flui a graça (CALVANI, 1998, p. 59). A despeito das posteriores revisões que Tillich fez do conceito de demônico, continuam a persistir elementos da mística de Jacok Böehme ( ) 13 - o demônico participa do próprio Abismo incondicional, da ontologia de Friedrich Schelling ( ), 14 as potências primordiais e da fenomenologia de Rudolff Otto ( ) 15 - na essência do Sagrado não há distinção entre divino e demoníaco. O que une essas três influências é a intuição de que o 13 Jakob Böhme, filósofo e místico alemão, foi educado dentro do luteranismo e acusado de heresia pelo teor polêmico de suas obras. Após diversas visões e experiências místicas, publicou seus livros: Aurora (Die Morgenroete im Aufgang, 1610), Christosophia (der Weg zu Christo, 1623), (De Signatura Rerum e Misterium Magnum ). Seus discípulos espalharam-se por toda a Europa e ficaram conhecidos como os boehmistas. Seus estudos centravam-se na natureza do pecado, do bem e do mal. Cria que Deus restauraria o mundo ao estado primitivo da graça. Atualmente, suas obras são estudadas e admiradas por diversas comunidades de espiritualistas, místicos, martinistas, teosofistas e filósofos em todo o mundo. 14 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, filho de protestantes foi educado em estudos clássicos e bíblicos, conviveu com Hegel e Holderlin e lecionou nas mais importantes universidades alemãs. Suas obras foram conhecidas só após sua morte. Seus estudos voltam-se para a questão do "eu absoluto", do "eu incondicionado", Deus. O mundo para Schelling dá-se à partir do espanto, da admiração. Este pensador resgata a experiência do espanto encontrada em Platão. Esta experiência é a totalidade, da intuição estética. Acredita que somente a linguagem poética pode dar conta de falar sobre esta experiência. A poesia é, para o autor, a única forma possível para falar de Deus, de dizer sobre o indizível, o absoluto, o infinito. Deus é compreendido por este autor, como um fenômeno. Deus é natureza, e gradativamente se revela com as transformações da natureza, o que possibilita que Deus se autodescubra o tempo todo. O eu, assim como as coisas, é uma forma finita de Deus. Isto, para Schelling é liberdade, pois diz respeito a todas as possibilidades de ser, de revelação de infinito. Esta noção é contrária a de um Deus moral e dogmático e à da praxis de Kant. A tragédia do eu, para Schelling, é saber que a infinitude habita a finitude de seu corpo. Esta consciência dá ao homem a possibilidade de angustiar-se, pois ele sabe que dentro dele há um pedaço de Deus, sem, contudo, poder sê-lo. O homem traz com ele a missão de revelar-se e, para isto, precisa entrar em sintonia com o Absoluto. Há um mal no homem, quando ele se distancia de sua limitação e se julga ilimitado. É um revelar-se equivocadamente, pois, neste momento, distancia-se de Deus e da harmonia da natureza, iludindo-se enquanto possuidor de um poder divino. 15 Rudolf Otto, eminente teólogo protestante alemão, erudito em religiões comparadas, autor de The Idea of the Holy, publicado pela primeira vez em 1917 como Das Heilige (considerado um dos mais importantes tratados teológicos em língua alemã do século XX). Criador do termo numinous, o qual exprime um importante conceito religioso e filosófico da atualidade. 28

29 demônico não é um poder autônomo independente do sagrado, mas participa de sua própria essência O Diabo na crista da onda da teoria Nunca tantos escreveram tanto sobre o Diabo como na atualidade. O herói recriado pelos ingleses John Milton ( ) e William Blake ( ), adotado pelos românticos, está na moda, agora sem a barba, os chifres e o rabo que o caracterizavam na Idade Média. Luther Link em O diabo A máscara sem rosto (1998) defende o conceito de que no Antigo Testamento Satanás não era adversário de Deus, mas o seu cúmplice. Para ele, o Diabo não é uma pessoa e pode ter muitas máscaras, porém, sua essência é uma máscara sem rosto. Link relembra que, para Espinosa, Deus entregou ao Diabo os pecadores. Deduz então que o Diabo é usado por Deus, trabalha para Deus, e nesse sentido não está em conflito com ele. Termina a introdução de sua obra e a apresentação deste personagem espinhoso afirmando: O Diabo não é meramente uma criação literária. Ele é real, faz parte da realidade da civilização ocidental. Talvez o motivo de o Diabo despertar nosso interesse resida no fato do Diabo definir Deus tão seguramente quanto Deus o define. Graças a Deus pelo Diabo (1998, p. 22). Alberto Cousté, em sua Biografia do Diabo (1996), apresenta conceitos brilhantes e inovadores sobre o biografado. Para ele, não podemos fechar os olhos diante da evidência da sacralidade do Diabo. Aqui ele vai ao encontro da tese defendida pelo teólogo Paul Tillich, o qual afirma que o Diabo é o sagrado com o sinal negativo e, no entanto, provém da mesma fonte de onde flui a graça. Cousté afirma que o Diabo sempre foi fiel ao homem e seu pavoroso drama de viver e relembra que na Idade Média o Diabo era chamado de o macaco de Deus, já que o imitava em tudo. Também afirma que o Diabo não é propriedade de nenhum hermeneuta e que o grande problema de Lúcifer foi o seu equivocado amor pelos homens. Defende que Lúcifer é a mais alta potência da criação, que era dotado de uma agudíssima consciência de si mesmo e que a única coisa que 29

30 ele quis era que os homens fossem iguais aos deuses. Termina a apresentação do biografado afirmando: O Diabo é dor de Deus. Na medida em que amou Satã até o extremo de fazer dele a mais bela e luminosa de suas criaturas e na medida em que, apesar disso - ao haver-lhe dotado de livre arbítrio -, não pode impedir sua queda, Deus passou a sofrer por seu anjo imediatamente depois de tê-lo condenado. Desterrado da relação de puro amor que havia presidido sua criação e sua vida na glória, o Diabo foi condenado precisamente ao mais atroz dos castigos: o da incapacidade de amar (COUSTÉ, 1996, p. 22). A tese geral de Cousté é que, o que leva o Diabo a viver ruminando, desconsolado, impotente, tecendo armadilhas é sua nostalgia do céu. Já para Northrop Frye, em sua obra Códigos dos Códigos, a base do papel que Satã representa na Bíblia é o papel de promotoria (2004, p.76). Para Messadié, em sua obra História geral do Diabo, o mito do Diabo é um mito espinhoso, Gênesis é original por apresentar a serpente como prefiguração de Satanás, o Diabo não existe no Antigo Testamento, sendo que o bem e o mal são oriundos exclusivamente da vontade de Deus. Para tal crítico, no Novo Testamento Satanás perde o estatuto de membro do conselho celestial que tinha no livro de Jó e passa a ser o adversário de Jesus, portanto, é a partir do Novo Testamento que Satanás se divorcia de Deus. Ainda defende a ideia de que, no Antigo Testamento, Deus e o Diabo tinham relações extremamente secretas e que foi a partir da grande crise do Judaísmo, com o nascimento de Jesus, e a fundação da religião cristã, na charneira das duas eras, que o Diabo se define como inimigo confesso e eterno de Deus. Em seu livro A revolução Luciferiana (2007), do qual retiramos a intrigante epígrafe que abre este livro, Adriano Camargo Monteiro defende alguns pontos de vista interessantes sobre o que ele denomina de doutrina luciferiana, arquétipo luciferiano, ou luciferosofia entre os quais: Lúcifer é uma livre personificação de toda liberdade condenada por dogmas vigentes o fato de o nome Lúcifer não constar na Bíblia, o não fundamento bíblico para identificar Lúcifer com o Diabo, e o verdadeiro significado de Lúcifer (pré-cristão), abrigando em si muitas outras implicações além de meramente teológica. Acrescenta que Lúcifer é um arquétipo 30

31 arquétipo luciferiano anterior à teologia ortodoxa judaico-cristã, de busca pelo saber dos deuses, tais como Prometeu, Eósforo, Héspero, Hespérides da mitologia grega; que Deus, deuses e demônios sempre foram criados à imagem e semelhança do homem; que o monoteísmo judaico-cristão, por abrigar Deus e o Diabo, já nasce uma espécie de monoteísmo politeísta, e que Lúcifer como doador de conhecimento é superior ao Deus judaico-cristão, antropomórfico, patriarcal, ciumento e iracundo... O autor concebe o Diabo como criação meramente cristã, como filho predileto e bajulado da Igreja. Citando o autor: [...] podemos considerar a doutrina luciferiana como sendo independente da teologia ortodoxa judaico-cristã, entre outras religiões monoteístas, tendo como fundamento um arquétipo universal ou mito originado de eventos cósmicos espirituais e humanos. O arquétipo luciferiano é recorrente em vários mitos de vários povos de várias épocas, pois é uma manifestação, expressão e personificação de uma força, de um poder, e é a reminiscência de um ser divino e de eventos cósmicos e naturais, sob diversos nomes conforme a época e o lugar. Como exemplo, temos Prometeu, o titã que se apoderou do fogo sagrado do Olimpo para doar à raça humana (MONTEIRO, 2007, p.11). Messadié formula a pergunta que não quer calar: Existe um ou muitos Satanás? (2001 p. 309). Respondemos a pergunta: muitos. E é por isso que Lúcifer, Satanás, o Diabo se apresenta como magnífico personagem para a Literatura, Pintura e Música, além de ser, é obvio, muito importante para a Teologia, quase tanto quanto Deus O Diabo na literatura ocidental Se os estudos teológicos e literários dão conta de uma Teopoética 16 que se manifesta em vários autores, conforme o proposto por Karl-Josef Kuschel em seu livro Os escritores e as escrituras (1999); se a Teodiceia (do grego θεός 16 A Teopoética foi proposta por Karl-Josef Kuschel e trata-se de um novo ramo de estudos acadêmicos voltado para o discurso crítico-literário sobre Deus, a análise literária efetivada por meio de uma reflexão teológica, o diálogo interdisciplinar possível entre Teologia e Literatura. Uma das principais perguntas da Teopoética é: qual o discurso dos autores sobre Deus dentro da Literatura do século XX? 31

32 theós, "Deus", e δίκη díkē, Justiça ) foi proposta pelo alemão Gottfried Leibniz em 1710, tentando entender o paradoxo da coexistência de um Deus Todo- Poderoso e o mal; se a epopeia de Jesus já foi centenas de vezes revisitada, quem afinal contou a epopeia ou a antiépica de Lúcifer, ou aquilo que denominamos antiteodiceia de Lúcifer, ou odisseia luciferina, ou a Sataniceia? Por que se Deus, conforme tão bem apontou Jack Miles em Deus: uma biografia (1997), é um membro quase virtual da família ocidental e está impregnado no DNA da civilização ocidental, que dizer do Diabo, de Lúcifer? Afinal, a outra face da moeda deveria acompanhar o sucesso Daquele! Como o homem ocidental consegue equilibrar-se entre a hipótese Deus e a hipótese Lúcifer? Será que somente a estória de Troia, de Ulisses e de Jesus são o suficiente para a humanidade, conforme lembrou Borges? 17 E a magnífica trajetória de Lúcifer, onde fica? Talvez ele esteja mais próximo do ser humano do que qualquer pessoa da Trindade, justamente por ter sido demasiadamente humano. Ninguém pode ter o monopólio dos personagens bíblicos, muito menos do Diabo. Basta ver como ele transitou da Bíblia para magníficas páginas da literatura. A literatura se abriu como palco privilegiado e propício para contar a antiodisseia de Lúcifer e em várias literaturas de várias línguas, o Anjo de Luz foi retratado ou teve a oportunidade de narrar em primeira pessoa, por meio do espelho das palavras, a sua versão dos fatos. Seria uma tentativa insana relacionar todas as obras nas quais ele figura, ou como protagonista ou como coadjuvante. Citamos relances das obras de nossa preferência e também as mais conhecidas. Na Divina Comédia terminada em 1321, 18 o italiano Dante Alighieri ( ) descreve o Inferno com riquezas de detalhes sensoriais e pictóricos e o Diabo é retratado da seguinte forma: seu corpo é gigantesco, é horroroso (tanto quanto foi belo antes da queda), tem três caras em sua cabeça: a da frente era 17 A história de Troia, a história de Ulisses, a história de Jesus têm sido suficientes à Humanidade. As pessoas as têm contado e recontado muitas e muitas vezes, elas foram musicadas, foram pintadas. As pessoas as contaram inúmeras vezes, porém, as histórias continuam ali, ilimitadas. Pode-se pensar em alguém, em mil ou dez mil anos, tornando a escrevê-las. Mas, no caso dos evangelhos há uma diferença: a história de Cristo, a meu ver, não pode ser contada de modo melhor. Foi contada inúmeras vezes, porém, os poucos versos em que lemos, por exemplo, Cristo sendo tentado por Satã, são mais fortes que os quatro livros juntos do Paraíso reconquistado (BORGES, 2007, p. 55, grifo nosso). 18 As datas mais prováveis para redação do Inferno da Divina Comédia pode ter sido entre 1304 e , o Purgatório de a e por último o Paraíso de a 1321 (esta última data fecha com a morte de Dante). 32

33 vermelha, a da direita de uma cor entre o branco e o amarelo, a da esquerda é negra, possui seis enormes asas de morcego, que produziam o vento que congelava o grande lago do Cocito, chorava com seus seis olhos, e pelos três queixos escorria uma baba sanguinolenta, em suas bocas, mastigava três traidores na boca da frente, Judas, com a cabeça para dentro e as pernas para fora; e nas outras duas bocas, Brutus e Cássio, presos pelas pernas, com a parte de cima do corpo pendurada para fora. Nesta obra não há um resgate do Diabo, ele está no mais profundo do Inferno, com a missão de torturar os que traíram o seu próprio sangue (ou a confiança). O Inferno é assombrosamente maior que Lúcifer, que não passa de um detalhe daquele. A antiodisseia de Lúcifer começa a ser retratada na obra O Paraíso Perdido do inglês John Milton, publicada em 1667 e acrescida de dois novos cantos em Aqui o Satanás é o protagonista que luta contra os arcanjos, engana Uriel e acaba derrotado por Gabriel, Miguel e Rafael. Fausto, o sábio alemão que vende sua alma ao demônio Mefistófeles em troca de conhecimento e poder, não foi criação de Christopher Marlowe ( ). 19 É uma lenda popular cuja autoria perde-se no tempo. Alguns apontam que alenda se baseia na vida de um médico, mágico e alquimista alemão de nome Dr. Johannes Georg Faust, que teria vivido no período de 1480 a No século XVI, a história tornou-se conhecida por meio do Faustbuch (O Livro de Fausto), obra anônima alemã que foi traduzida na Inglaterra. Era um texto moralista, provavelmente escrito por algum luterano furioso. Marlowe deu lustro estético à obra e resgatou a dignidade do personagem, o qual, no entanto, ainda desce ao inferno na cena final, de muito impacto junto ao público da época. 20 Caberia a outro alemão, Wolfgang von Goethe ( ), salvar o atormentado Fausto que em seu poema dramático é resgatado pelos anjos no ato final. O Fausto de Goethe, que teve a primeira parte publicada em 1806 e a segunda em 1832, é a versão mais conhecida do mito, o que torna o pacto com o Diabo uma temática 19 Christopher Marlowe foi dramaturgo, poeta e tradutor inglês que viveu no período Elizabetano. Renovou a forma do teatro do período com a introdução dos versos brancos, estrutura que será empregada pelo próprio Shakespeare. 20 Se Sartre em Entre Quatro Paredes afirma que "o inferno são os outros", o personagem Mefistófeles de Marlowe vai bem mais longe e declara que "O Inferno é sem limites. Circunscrito / Não está a um lugar, pois, onde estamos, / Inferno é, e sempre aí estaremos. 33

34 universal. Impressiona-nos as semelhanças existentes entre Fausto e o Livro de Jó : o Senhor dialogando com Mefistófeles, permitindo que ele tente Fausto. Já no famoso Prólogo no Céu, Mefistófeles informa que o que ele pretende é atormentar e seduzir os homens e que tem pena da humanidade que está sempre a sofrer. É irônico e debochado ao afirmar que ver de perto o Eterno é motivo de orgulho para um simples Diabo. O ente incriado se autodefine como: Eu sou aquele gênio que nega e que destrói! [...] Sou parcela do caos, onde nasceu a luz (GOETHE, 2002, p. 59). Mefistófeles percorreu toda a alta literatura, do século XVI em diante. Foi o poeta e crítico Charles Baudelaire ( ) o precursor do simbolismo francês, e a partir de quem surgem na França os chamados poetas malditos, que em As Litanias de Satanás (2008), invoca a piedade do Tinhoso: Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto, Deus que a sorte traiu e privou do seu culto, Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! Também se ocuparam dele outros escritores como Shakespeare, Thomas Mann e Paul Valéry. Na peça teatral O Auto da Barca do Inferno (2008), representada pela primeira vez em 1517, o dramaturgo português Gil Vicente ( ) coloca o Diabo e Anjo no ancoradouro onde estão duas barcas: uma que conduz os salvos ao Céu e outra que conduz os pecadores ao Inferno. O Anjo é chato e enfadonho e o Diabo é galhofeiro, alegre, insulta a todos, tem um discurso irônico e sarcástico, canta e dança e até discute em latim com o Juiz e o Bacharel. No final da peça, só os cavaleiros cruzados entram na barca que vai para o Céu, mas a barca que vai para o Inferno está lotada e parece muito mais divertida e animada. No conto O Senhor Diabo (1877), de Eça de Queirós, o escritor português enfatiza que a trajetória do Diabo é uma legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave! Para Eça, o Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal [...] o Diabo é o representante imenso do Direito Humano. [...] Tem talvez nostalgia do céu! [...] O Diabo amou muito (QUEIRÓS, 2003). 34

35 No conto A Hora do Diabo (1997), de Fernando Pessoa ( ), o Diabo afirma, entre outras coisas, que tentou Jesus por incumbência de Deus e que ao negar Deus ele o sustenta. Em primeira pessoa o Diabo se define: Eu sou aquilo a que tudo se opõe [...] sou negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o que se sonha porque não pode existir nisso está meu reino nulo e ai está assente o trono que me não foi dado (PESSOA, 1997, p ). Neste conto, o Diabo diz que toda a história os envolvendo (ele e Deus) não passa de questões de família. O escritor irlandês Clive Staples Lewis, mais conhecido como C. S. Lewis ( ) em seu livro Carta de um Diabo a seu aprendiz, publicado em 1942, afirma que Lúcifer não foi expulso do céu, que esta versão é ridícula, mas saiu de livre e espontânea vontade de lá, porque Deus se negou a responder uma simples pergunta: porque havia criado o homem? Lúcifer entendeu que o trono de Deus dependia deste silêncio e, como Deus não lhe respondera, ele se sentiu indigno e saiu do céu por conta própria. N O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago, publicado em 1991, o Diabo é o protagonista, o grande herói deste desevangelho, entra na barca para salvar o salvador e toda raça humana. Pede perdão, Deus não aceita e o condena a ser eternamente o mal, o heterônimo, a outra face da medalha. O Diabo aqui é transformado na terceira pessoa da Trindade, ou melhor, na segunda pessoa da Trindade, uma vez que Jesus como humano não faz parte da tríade. Trata-se de uma Trindade que se resume em duplos siameses. No Brasil, muitas são as obras que tratam da Estrela da Manhã. Citamos apenas duas: a peça Macário de Álvares de Azevedo ( ), publicada postumamente em 1855, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa ( ), publicada em 1956, ambas retomando o mito de Fausto. Em Macário, o escritor romântico informa-nos que o Diabo é a treva do não ser. Macário não se assusta quando encontra o Diabo, esperava por ele há dez anos e afirma: A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles. Olá Satã! (AZEVEDO, 1855, p. 6). E Riobaldo, o nosso Fausto sertanejo, que 35

36 filosoficamente debate com um interlocutor invisível a existência do Diabo e a possibilidade de pactuar com ele e vender a alma. Observemos como Riobaldo coloca esta questão e os adjetivos que usa: Principalmente a confirmação que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-preto, o Canho, o Duba-dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem Gracejo... Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a idéia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito: que, ou então - Será que pode também ser que tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crônico: que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato - que já se vendeu aos poucos, faz tempo? (GUIMARÃES ROSA, p. 29, 1988). Muito já foi escrito sobre este livro e muito se escreverá, mas, talvez a grande frase da obra seja Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele (GUIMARÃES ROSA, 1988, p. 32). Também existem várias antologias de contos sobre o Diabo, da qual citamos o livro O Diabo existe? de R. Magalhães Júnior, publicado em 1973, que traz um rico acervo de escritores que escreveram sobre o Diabo como O Arquiinimigo Belfegor de Niccolò Machiavelli ( ), O Diabo Coxo de Luis Vélez de Guevara ( ), O Recibo do Diabo de Walter Scott ( ), Os três cabelos de Ouro do Diabo dos Irmãos Grimm Jacob ( ) Wilhelm ( ), O Moinho do Diabo de Hans Christian Andersen ( ), O Diabo no Campanário de Edgar Allan Poe ( ) etc. Eis aqui algumas máscaras do Diabo na Literatura... Charles Darwin ( ) com a publicação de A Origem das Espécies, em 1859, dispensou Deus para explicar a origem da vida no planeta terra e nos legou como ancestral um macaco. Nietzsche ( ) matou Deus em sua obra A Gaia Ciência, publicada em 1882, quando declara Deus está morto,! Deus continua morto! E nós o matamos! (p.147). E o que teria acontecido com Lúcifer? Parece que a partir de Nietzsche houve o que poderíamos chamar de 36

37 desteificação do mundo, um mundo sem Deus. Esqueceram de matar o heterônimo indissociável de Deus e o mundo ficou desteificado? O que Machado de Assis tem a ver com a morte do Diabo? O Diabo em Machado de Assis Muito já foi escrito sobre Machado de Assis ( ), citamos em seguida seus principais críticos: Silvio Romero, José Veríssimo, Astrogildo Pereira, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, John Gledson e Harold Bloom. No entanto, a obra de Machado continua sendo uma arca que ainda oferece tesouros a serem explorados. Se muito se escreveu sobre Machado, parece que há uma certa relutância em explorar toda a variedade da obra do escritor e isto resulta numa falta de renovação dos estudos machadianos, criando um paradigma de reprodução de novos trabalhos que ainda giram em torno de Roberto Schwarz e Alfredo Bosi, como tão bem apontou o crítico literário inglês John Gledson. 21 Também a chamada primeira fase do escritor, o Machado que existiu antes de Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, é deixada de lado, e quando se explora esta fase é na esperança de encontrar algo que ilumina o Machado maior. Mas a obra de Machado é muito maior que os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu pudessem prever, e, da sua ode ao verme: Ao verme que primeiro roer as frias carnes do meu cadáver... Muito já se escreveu sobre adultério ou não de Capitu e talvez isto era tudo que Machado não quisesse. Talvez esta abordagem o tivesse deixado realmente com os olhos de ressaca, aliás, o escritor de ressaca. Um dos eixos preferidos na obra de Machado é o constante intertexto com a Bíblia. Isto pode ser constatado em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e em vários contos. Alguns trabalhos já foram escritos explorando este eixo da obra de Machado, mas talvez fosse o 21 Vide reportagem Começa o Ano Machado de Assis In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, 27 jan. 2008, p

38 caso de se retomar esta linha de análise, agora com o instrumental teórico correto sobre os estudos comparados entre Teologia e Literatura. 22 O Diabo, como já afirmamos, se oferece como magnífico personagem para a literatura, e Machado não deixou de explorá-lo, já que para ele o diabo não é tão feio como se pinta Sempre que se menciona a questão do Diabo na obra de Machado de Assis, nos vem à lembrança imediatamente o conto A Igreja do Diabo (1884). Mas existem outros dois contos em que ele aparece: Adão e Eva (1896), e O Anjo Rafael, publicado no Jornal das Famílias (1869). Além do magnífico O Sermão do Diabo, publicado em Adão e Eva No conto Adão e Eva, o juiz-de-fora Veloso, insigne em teologia, para assombro do carmelita Frei Beto, afirma que as coisas no Paraíso não aconteceram com o relato do Gênesis: Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo... [...] - Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia (MACHADO DE ASSIS, 1994). Observemos que o conto inverte toda a criação. O Diabo é o criador e Deus vai consertando o que não deu certo. Segue-se a narrativa da criação do primeiro casal. O Tinhoso cria Adão e Eva, somente com ruins instintos, porque não podia lhes infundir a alma. Deus conserta a criação do Tinhoso dando ao casal a alma junto com sentimentos nobres e puros e ainda um jardim de delícias. Impedido de frequentar o jardim, o Diabo transforma a serpente em sua embaixatriz, concedendo a ela o dom da fala: o Diabo a descreve como serpe, fel 22 Conforme estudos de Karl-Josef Kuschel, José Pedro Tosaus Abadía, Harold Bloom, Northrop Frye, Robert Alter, Kermode, Auerbach, Manzatto, Barcellos, Antonio Carlos Magalhães etc. Os principais pesquisadores na América Latina concentram-se em torno da Associação Latino Americana de Literatura e Teologia (ALALITE) e no Brasil em torno do NUTEL, UFSC. 23 Título do capítulo XCII de Dom Casmurro. 38

39 rasteiro, peçonha das peçonhas e a instrui a tentar o casal a comer da árvore da ciência do Bem e do Mal, pois assim conheceriam o próprio segredo da vida: Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças... (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 2). Neste conto, o escritor dissocia a serpente do Diabo. São absolutamente dois seres distintos. A serpente invejosa e peçonhenta tenta o casal, Eva resiste e lhe chama de pérfida. A inteligência que caracterizava Lúcifer é transferida para a serpente que responde num discurso poético: Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escutame, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 3). Destacamos o lirismo do discurso da serpente. Ela é sedutora, diz a Eva que ela poderá voltar a terra como mãe do filho de Deus. A serpente prova que merece ser embaixatriz do Diabo, mas mesmo assim Eva resiste. Deus manda que Gabriel desça ao paraíso terrestre e busque o casal para viver no Paraíso celestial, e o Tinhoso e a serpente são amaldiçoados a viver na Terra A Igreja do Diabo Já o conto A Igreja do Diabo é bastante conhecido. O início lembra o Livro de Jó e o Prólogo de Fausto, de Goethe. Só que desta vez o Diabo se apresenta no céu, não para receber uma aposta de Deus, mas sim para informá-lo de que vai fundar sua própria igreja. O intertexto com Fausto é evidente: Há muitos modos de afirmar: há só um de negar tudo [...]. 39

40 Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos de século e dos séculos. [...] Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega (MACHADO DE ASSIS, 1884, p. 4-6). O Diabo é descrito como tendo os olhos acesos de ódio, aquele que mora nas províncias do abismo. No diálogo entre os dois, Deus o define como um velho retórico, sutil, vulgar e sem criatividade. Por várias vezes o narrador descreve o Diabo rindo e sorrindo: O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. 24 O que o Diabo quer é fundar uma Igreja na qual as virtudes se transformariam em pecado e os pecados cristãos em virtudes, enfim trocar o certo pelo errado, tornar santo e aprazível o bigode do pecado. Quando volta à Terra, o Diabo como numa espécie de evangelho profano traz A Boa Nova aos Homens, confessa que é o Diabo e retifica seu caráter maculado pelas histórias que a beatas contavam dele: Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (MACHADO DE ASSIS, 1884, p. 7). Neste novo evangelho, o espírito de negação, com grandes golpes de eloquência, afirma que ele é o verdadeiro pai dos homens. Prega que a inveja, a soberba, a ira, a gula, a cólera eram na realidade virtudes. O Diabo machadiano é um Diabo culto, já que conhece literatura e seus personagens. Cita Homero e defende que sem a ira não haveria a cólera de Aquiles, e que, sem a gula Rabelais não teria produzido suas melhores páginas. Citando um letrado padre napolitano, o Diabo recomenda: Leve à breca o próximo! Não há próximo. A única exceção é quando se tratava da mulher do próximo. A Igreja prospera e o Diabo dá gritos de triunfo: todos agora só fazem o bem, ou seja, só cometem os pecados anteriormente condenados, o errado é o certo. Só que o que o Diabo não imaginava é que as pessoas, às escondidas, começavam a praticar o mal, ou seja, praticar atos que no passado eram virtudes 24 Em História do Riso e do Escárnio Georges Minois afirma que o riso sempre foi atribuído ao Diabo. 40

41 e agora estavam proibidas. Ele ficou pasmo, chegou aos céus, tremendo de raiva, ansioso, com uma agonia satânica. Deus não triunfou em cima do perturbado Diabo, olha para ele e diz: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana (MACHADO DE ASSIS, 1884, p. 11) O Anjo Rafael Chegamos então ao conto O Anjo Rafael, pela cronologia, o primeiro dos três contos aqui analisados já que foi publicado em 1869 no Jornal das Famílias, e o que mais nos interessa para este artigo. Entre os mais de duzentos contos de Machado, este é dos menos conhecidos. Em 1973, Raymundo Magalhães Junior publica pela editora Bloch a obra Contos Fantásticos de Machado de Assis, que é reeditado pela mesma editora em 1998, e na qual está incluído o conto aqui analisado. Na introdução, o crítico chama a atenção para o que ele denomina de fantástico mitigado nos contos machadianos e alerta que a crítica pouco tinha atentado para essa faceta da obra de Machado (MAGALHÃES, p. 3). Já Marcelo J. Fernandes, em seu trabalho intitulado Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis, mesclando contos de sua escolha com alguns dos selecionados por Magalhães, faz uma análise da presença do fantástico e defende a ideia de que Machado diluiu o fantástico naquilo que ele denomina de quasemacabro, incluindo também o Anjo Rafael. O Bruxo do Cosme Velho gostava de incursionar pelo fantástico mitigado ou o fantástico quase-macabro, como tão bem conceituaram os dois críticos aqui mencionados, afirmando que Machado desenvolve um padrão de fantástico. 25 Mas nos interessa outro aspecto deste conto. Resumindo o enredo do conto, temos o seguinte: um jovem de 33 anos, Dr. Antero, resolve se matar. Naquela noite, quando estava prestes a se suicidar, 25 Em seu trabalho, Marcelo J. Fernandes cria uma tipologia para definir o tipo de fantástico presente nos contos de Machado: conto gautieriano/ fantástico onírico (a tessitura da trama é detonada pelo sonho), influenciado por Gautier, e o fantástico insólito (fantástico anormal, um caso dentro de outro caso). 41

42 recebe um criado com uma mensagem para que este o acompanhe até a casa do seu patrão, Major Tomás. Antero resolve seguir o criado e chega a uma casa misteriosa. É apresentado ao Major que afirma por várias vezes ser um ser celestial, o Anjo Gabriel, que incompreendido em sua missão, tivera uma filha e agora se afastava do mundo. Antes de morrer queria casar sua filha. Observemos a criatividade e ironia de Machado neste conto insólito, fantástico quase-macabro. Quando Antero vai se matar, ele faz uma bucha com uma folha do Evangelho de São João e mete dentro da pistola. Na hora derradeira do suicídio, ato contrário a toda lógica, Antero separa uma folha do Evangelho que começa por No princípio era o Verbo... As referências bíblicas são constantes em todo o texto: Antero mora na Rua da Misericórdia, na casa do Major sonha que, após ter tirado sua vida, Belzebu o mantinha queimando eternamente numa fogueira; a aparência do velho Major lembra um patriarca bíblico. O major insiste que foi criado por Deus, que tem origem no céu, que foi enviado do céu, que é o Anjo Rafael e que sua filha Celestina é um anjo na raça e na candura. A descrição que o narrador faz da moça é a de um anjo: rosto angélico, virgindade do coração, cabelos louros e caídos em cachos e possuidora de uma auréola. Para o narrador, filha e pai pertencem a uma civilização desconhecida e o Dr. Antero se sente arrebatado nas asas da Fantasia em meio àquelas pessoas do céu. Antero se apaixona por Celestina e, após estar no sétimo céu, começa a perceber que seu futuro sogro era monomaníaco, pois cria ter origem celeste e ser o próprio Anjo Rafael: Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era, fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer (MACHADO DE ASSIS, 1973, p. 9). Antero confirma suas suspeitas: o velho era um monomaníaco e a filha ia pelo mesmo caminho. Esclarecemos que o Anjo Rafael não é um personagem bíblico, ele só é citado em Tobias, um livro apócrifo que faz parte da chamada Bíblia Católica, mas não faz parte da Bíblia Protestante. Embora muito se fale do 42

43 arcanjo Rafael, em nenhum dos textos deste apócrifo há a afirmação de que Rafael seja arcanjo, mas apenas um anjo. "... Eu sou Rafael, um dos sete anjos..." [Tobias 12-15]. Este anjo Rafael de Machado de Assis fez coisas que parecem mais próprias de um anjo caído. Chegamos ao ponto mais importante do conto: o monomaníaco celestial entra no quarto do Dr. Antero e lhe informa com a maior naturalidade: Sabe quem morreu? Não. O diabo. Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou: Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece? (MACHADO DE ASSIS, 1973, p. 12). O Anjo Rafael foi publicado em 1869 no Jornal das Famílias, portanto, exatamente 23 anos antes de A Gaia Ciência, obra na qual Nietzsche matou Deus. Ou seja, o Machado menor, cujas publicações ocorreram antes de 1881, ano da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, fez o que o Machado maior, com as obras publicadas depois de 1881, não fez: matou o Diabo, bem antes do deicida Nietzsche matar Deus. Só este parágrafo, só esta ideia valeria por todo o conto. Ao contrário do deicida Nietzsche, Machado foi um diabicida O Sermão do Diabo O Sermão do Diabo foi publicado em O narrador machadiano, irônico como sempre, afirma ser este um documento autêntico e que este sermão foi retirado do evangelho do Diabo. Recomenda que os leitores não se apavorem, cita Santo Agostinho, para quem a Igreja do Diabo imita a Igreja de Deus, e é por isto que ocorre a semelhança entre os dois evangelhos. A criatividade de Machado no Sermão do Diabo encanta-nos. Transcrevemos o conto na íntegra tal é sua riqueza: 26 Neologismo da articulista. 43

44 O Sermão do Diabo 1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos. 2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes. 3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados. 4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra. 5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves. 6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos. 7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito. 8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra. 9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar? 10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela. 11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas. 12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se consertam, e se não for com remendo da mesma cor, será com remendo de outra cor. 13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio. 14. Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa. 15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo. 16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os teus juramentos. 17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas. 18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia. 19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça treze de cinco e cinco. 20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os tiram e levam. 44

45 21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo. 22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio. 23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a terra se não despovoe das lebres, nem as más concessões pereçam nas vossas mãos. 24. Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do próximo para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dous para a cadeia, quando é melhor não ir nenhum. 25. Não tenhais medo às assembléias de acionistas, e afagai-as de preferência às simples comissões, porque as comissões amam a vangloria e as assembléias as boas palavras. 26. As porcentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo, para que as outras flores brotem mais viçosas e lindas. 27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpétuas as contas que se não contam. 28. Deixai falar os acionistas prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa vontade. 29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos. 30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios..." Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por ele; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e, ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas, nem pelos erros de cópia (MACHADO DE ASSIS, 1970, p. 1). Michel Onfray em seu recente Tratado de Ateologia, no qual defende que os crentes sofrem de infantilismo mental e que o ateu é aquele que recuperou a sua saúde mental, afirma que a existência de Deus e do Diabo pertencem ao mundo mágico, à fabula, e que toda crença é uma ficção. Sobre o Diabo afirma ele: Satã, Lúcifer, o Portador da claridade O filósofo emblemático das Luzes..., aquele que diz não e não quer submeter-se à lei de Deus [...] o Diabo e Deus funcionam como frente e verso da mesma medalha, como teísmo e ateísmo (ONFRAY, 2007, p. 6). 45

46 Onfray aponta que Deus e o Diabo são faces da mesma medalha, teísmo e ateísmo. Discordo e vou mais além: frente e frente da mesma moeda - teísmo e teísmo. Como vimos anteriormente, a Igreja Católica considera a não crença no Diabo como heresia digna de excomunhão. Ou seja, se você não acredita em Deus é um ateu, mas se você não acredita no Diabo igualmente o é. Onfray afirma que um ateu é um ser incompleto, amputado, um sem-deus. Podemos asseverar, no entanto, que um ateu é a partir de agora um sem-diabo. Se coube a Nietzsche matar Deus em A Gaia Ciência, coube a Machado de Assis, vinte e três anos antes, no conto O Anjo Gabriel, matar o Diabo. Tanto Nietzsche como Machado colocaram Deus e o Diabo no campo ou da filosofia ou da ficção (seres de papel). Mataram Deus e o Diabo e desta forma paradoxalmente os mantiveram vivos, porque seres ficcionais não morrem nunca e, talvez, a filosofia continue a existir mesmo quando o homem não mais existir. Eis como o Bruxo do Cosme Velho matou Lúcifer... Onfray afirma que o último deus desaparecerá com o último homem. Afirmamos que o último Lúcifer também desaparecerá com o último homem... Dentro da História do Ocidente, sempre nos deparamos com duas hipóteses embrenhadas no DNA do ser humano; 1) A hipótese Deus; 2) A hipótese não Deus. O ser humano não se priva nem do bem e nem do mal, sabe construir deuses positivos e negativos... Basta lembrar que Eva, entre o sossego do Jardim de Éden e a turbulência do saber, quis o conhecimento do bem e do mal, quis ser como Deus, foi, de certa forma, uma Prometeu de saias. Com uma certa tendência ao racional, duvidou e fundou a filosofia cristã! Adão creu e foi o pai do cristianismo! Eva preferiu arcar com toda a responsabilidade por querer o conhecimento só acessível aos deuses a permanecer na paz da ingnorância. Na hipótese não Deus, ateísta, só temos a hipótese Lúcifer/Mal intrahomem, o mal procedendo exclusivamente das entranhas do homem. Na Hipótese Deus, a qual interessa aos estudos de Teopoética, surgem outras duas derivativas: 1) Lúcifer extra-homem; 2) Lúcifer intra-homem. Dentro da Hipótese Lúcifer extra-homem, lá atrás, perdido na poeira dos milênios cristão, uma turbulência no cosmo revela o momento da expulsão ou 46

47 queda de Lúcifer, naquilo que denominamos de primeira queda, ou queda -1, transformando-o no responsável pelo mal na terra. Na hipótese Lúcifer intra-homem, não houve queda alguma, nem expulsão muito além da via-láctea, o que houve foi que num momento bem distante, perdido na poeira de muitos milênios, em alguma caverna, houve uma turbulência no cérebro humano, e ali, o homem, inventor de deuses a sua imagem e semelhança, criou um deus mau, para nele jogar sua parte sombria e doentia, suas obsessões e taras. É próprio do humano almejar ser como os deuses! O texto bíblico profetiza, aliás, a Serpente Profeta é quem profetiza que no dia em que o homem tomasse da árvore do conhecimento do bem e do mal seríamos como deuses Sereis como deuses, somos deuses! Como deuses, criamos criaturas, não do barro, mas modeladas no nosso subconsciente, abrigadas em nossa massa cinzenta. É nessa hipótese que acreditamos: Lúcifer é filho de nossa desrazão: nossa culpa, nossa máxima culpa! Deus e Diabo, nosso nonadas eternos, nossa máxima culpa e motivo íntimo de digladiação eterna. São os dois que existem em nós, mesmo não havendo sempre haverão... BIBLIOGRAFIA ABADÍA, José Pedro. A bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, MACHADO DE ASSIS, J. M. Adão e Eva. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. II. Disponível em: < bv pdf>. Acesso em: 19 ago A igreja do diabo.. In: Volume de contos. Rio de Janeiro: Garnier, Disponível em: < Acesso em: 20 ago Memórias póstumas de Brás Cubas. Pará de Minas: VirtualBooks: (VirtualBooks Literatura Brasileira). Disponível em: < ubas.pdf>. Acesso em: 29 ago O Anjo Rafael. In: Contos fantásticos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Bloch,

48 . O sermão do Diabo. In: Obras completas de Machado de Assis. São Paulo: Formar, Disponível em: < Assis/MachadodeAssis.htm>. Acesso em: 19 fev AZEVEDO, Alvares de. Macário. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, BARCELLOS, Carlos José. Literatura e Teologia: perspectivas teórico-metodológicas no pensamento católico contemporâneo. In: Numen: revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora: Editora da UFJF, vol. 3, n. 2, jul/dez 2000, p BAUDELAIRE, Charles Pierre. Litanias de Satanás. Disponível em: < Acesso em: 14 maio 2008.BETTENCOURT, Estevão. L Osservatore Romano. Roma, 04/07/1975, n Disponível em: < Acesso em 31 ago BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil. BLOOM, Harold. Anjos Caídos. Tradução de Antonio Nogueira Machado. Rio de Janeiro: Objetiva, BORGES, Jorge Luis. Este Ofício do Verso. São Paulo: Companhia das Letras, CALLOIS, Roger; BORGES, Jorge Luis. Callois, Borges: diálogo fugaz. Revista de Cultura, Fortaleza, SP, n. 7, out Disponível em: < Acesso em: 07 ago CALVANI, Carlos Eduardo Brandão. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola, COUSTÉ, Alberto. Biografia do diabo. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução de Joaquim da Mesquita Paul. Porto: Lello & Irmão Ed., Disponível em: < Acesso em: 20 ago DAWKINS, Richard. Deus: um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, FERNANDES, Marcelo J. Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: UFRJ,

49 FRYE, Northrop. O código dos códigos: a bíblia e a literatura. Tradução de Flavio Aguiar. São Paulo: Boitempo Ed., GOETHE, J. W. Fausto. Tradução de Alberto Maximiliano. São Paulo: Nova Cultural, JUNG, C. G. Resposta a Jó. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha. 6. ed. Petrópolis: Vozes, KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológicos literários. Tradução de Paulo Astor Soethe et alii. São Paulo: Loyola, LEWIS, C. S. Carta de um Diabo a seu aprendiz. São Paulo: Martins Fontes, LINK, Luther. O Diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, MAGALHÃES Jr., Raimundo. Contos fantásticos: Machado de Assis. Rio de Janeiro: Bloch, MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em Diálogo. São Paulo: Paulinas, MARTINS TERRA, J. E. Existe o Diabo? Respondem os Teólogos. São Paulo: Loyola, MESSADIÉ, Gerald. História geral do Diabo: da Antiguidade à Época Contemporânea. Tradução de Alda Sophie Vinga. Portugal: Europa-América, MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. 3. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: Unesp, MONTEIRO, Adriano Camargo. A revolução luciferiana. São Paulo: Madras, MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo. Tradução de Maria H. Kühner. São Paulo: Bom Texto, NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. São Paulo: Ática, ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução de Walter O. Schlu p. Porto Alegre: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, PAPINI, Giovanni. O Diabo. Tradução de Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil,

50 PESSOA, Fernando. A hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, QUEIRÓS, Eça de. O senhor Diabo. Pará de Minas: VirtualBooks, Disponível em: < Acesso em: 28 mar QUEVEDO, G. Oscar. Antes que os demônios voltem. São Paulo: Loyola, ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, SANTOS, Walmor. Além do medo e do pecado. Porto Alegre: Mercado Aberto, SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, STANFORD, Peter. O Diabo: uma biografia. Tradução de Márcia Frazão. Rio de Janeiro: Gryphus, TILICH, Paul. A coragem de ser. Tradução de Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Filosofia de la religion. Buenos Aires: La Aurora, IMAGEM De Guillaume Geefs, estátua retratando Lúcifer caído. Acesso ao púlpito da Catedral de São Paulo de Liège (Bélgica). Disponível em: < =L%C3%BAcifer%2C+Guillaume+Geefs&fr=greentree_ff1&ei=utf8&x=wrt&type=827316&y =Buscar>. 50

51 Lúcifer Reinante 51

52 Vendido a um-que-não-existe: privação, presença e confissão no Grande Sertão Andrei Soares 52

53 VENDIDO A UM-QUE-NÃO EXISTE: PRIVAÇÃO, PRESENÇA E CONFISSÃO NO GRANDE SERTÃO 1 - SER E NÃO SER NO SERTÃO Andrei Soares A modernidade é um cosmo imanente. Jakob Taubes Não como o mundo é, mas que ele é, é o místico. Ludwig Wittgenstein Abertura de Grande sertão: veredas. Ainda no início da confissão ficcional que constitui a obra-prima de João Guimarães Rosa, o narrador Riobaldo recorre a um contraste inusitado para distinguir o divino do diabólico. O senhor não vê?, começa o ex-jagunço, evocando para o espaço pragmático da narrativa, para seu aqui fictício aquele misterioso interlocutor cuja visita motiva a sua fala. E acrescenta em uma das passagens mais enigmáticas do romance: O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo (ROSA, 1984, p. 56, grifo nosso). Está claro que existe entre Deus e o diabo oposição marcada por um delicado jogo de ser e não ser um jogo que remete também a questões de presença, privação e atualidade. Mas trata-se de uma oposição paradoxal. Pois os termos da antítese se desfazem em duas contradições: a de um que existe sem haver e a de outro que há quando inexiste. Para distinguir entre as forças antagônicas do divino e do diabólico, Riobaldo usa o par sinonímico existir e haver. Referencialmente, os verbos são análogos, quase idênticos. Denotam atualidade, qualidade do que é. Mas o diabo está nos detalhes, e, nesse caso, na sutil diferença entre o que cada verbo conota: o existir, uma solidez ontológica intransitiva e pessoal; e o haver, o espectro de uma presença impessoal. 53

54 Deus existe mesmo quando não há. Intransitiva, sua ex-sistentia determina a si mesma. Etimologicamente, apresenta-se, manifesta-se e coloca-se à vista. É, gramatical e teologicamente, sujeito do próprio ato de ser. Pois a externalização implícita no prefixo ex- estabelece que seu ser antecede qualquer manifestação e independe de testemunho. Não precisa do aval ou do reconhecimento de outrem para ser. Autogerado, existe a si próprio. Deus existe mesmo quando não há. Ainda ausente ou despercebido, possui a atualidade irrestrita de quem, já no Êxodo, apresenta-se com a expressão EU SOU O QUE SOU. 27 Não há redundância ou tautologia nessa denominação, pois ela não se propõe a fixar uma referência ou exaustar o Deus que se descreve com ela. Expressiva, sugere a hiperessência e o poder criador verbal de um que é o que é não pela tautologia de ser o que é, mas, isso sim, pela plenitude de ser a própria origem de todo ser, plenitude que supera tanto a ontologia que possibilita, quanto as possibilidades da expressão humana. O demônio não é menos enigmático. Presença impessoal e fenomenal, não precisa de existir para haver, pois surge no centro desse defectivo haver. Trata-se de um verbo único por desvencilhar o ser daquele que é, sugerindo um que não é sujeito do seu ser, mas pode ainda assim estar nessa página, nessa rua, no meio desse redemoinho. Descrito no Novo Testamento como ho arkon tou kosmou, é o príncipe desse mundo. 28 Seu estado termo a compreender no duplo sentido de um domínio político espacial e de uma condição momentânea temporal é o local vivido, a dêixis de cada aqui. É, de fato, nesse aqui que o demônio se manifesta sem ser. Ainda que seja o príncipe desse mundo, seu reinado sofre de uma transitividade tanto gramatical quanto ontológica: não é sujeito de um ser próprio, mas objeto de um ser alheio. Misturado em tudo, o diabo é o que opõe ou lança no caminho do que é (ROSA, p. 11). E dessa etimologia surge um espanto de linguagem: a 27 Êxodo 3: 14. Jack Miles enfatiza a natureza polissêmica da autodenominação usada por Deus, cuja forma Hebraica original, Ehyeh-Asher-Enyeh, permite leituras que variam do habitual EU SOU O QUE SOU ao profético eu sou o que serei, passando pelo aristotélico eu sou o que faço (1995, p ). Aos possíveis significados do nome divino, vale também lembrar o causal eu faço ser aquilo que eu faço ser, cuja ênfase na capacidade geradora e causal da divindade é enfatizada por Gowan (1994, p ). 28 No quarto evangelho, atribuído a João, Jesus menciona o príncipe desse mundo em três ocasiões, prevendo sua derrota, julgamento e expulsão (12:31, 14:30 e 16:11). 54

55 complementaridade entre o dia-bolos grego que lança e o ob-jectum latino que é lançado. O que é pra ser, parece, são mesmo as palavras. O demônio não precisa de existir para haver, já que quanto mais inexiste, quanto mais se afasta do que é e Daquele (ou Daquela) que é-o-que-é, mais diabólico se faz e mais toma conta de tudo. Há, portanto, nesse haver, a presença paradoxal de um que não existe, um Que-Não-Há, mas age ainda assim. 29 E é nessa ausência, nessa falta constitutiva, que reside sua capacidade de divertir a gente com sua dele nenhuma existência (ROSA, p. 292). O diabo não existe, enfatiza Donaldo Schuler (1969. p. 70): Mas precisamente por não ser é que ele é perigoso. Ameaça reduzir ao que não é aquilo que é. Schuler não foi o único a reconhecer a importância dessa ausência no projeto mito-poético que é Grande Sertão. Em seu clássico As formas do falso, Walnice Nogueira Galvão (1972, p. 129) ressalta a associação, pelo narrador roseano, de Deus com um princípio positivo do cosmos, associação que admite a existência de um princípio negativo que leva o nome de Diabo. Também João Adolfo Hansen (2000, p ) enfatiza a privação ontológica do diabo, sua paradoxal condição de ter real existência de não ser, lembrando o Outro platônico. Ainda não é momento de dar a Galvão e Hansen a atenção que merecem. Por enquanto, basta fazer um elogio e uma ressalva aos dois rosistas. O elogio é reconhecer que suas vigorosas leituras são ambas perspicazes ao enfatizar tanto a negatividade radical do diabo, quanto a sua importância como símbolo da incerteza e da indeterminação. Já a ressalva é enfatizar que nenhuma das duas problematiza a fascinante relação que existe entre o Que-Não-Há roseano e o diabo da tradição cristã. As leituras de Galvão e Hansen não perdem importância por isso, pois ambas desvendam questões igualmente legítimas, pertinentes e, o que é mais importante, interessantes. Mas nem por isso deixam de exemplificar uma relutância da crítica em explorar os vários pontos de encontro entre a teologia e Guimarães Rosa, cuja obra ora se distancia da teologia cristã, ora se inscreve nela e ora a 29 ROSA, p. 55. Outras variantes do nome descritivo são um-que-não-existe (130) e o-que-não-existe (282). Vale ressaltar como, em todos os casos, o uso do hífen atribui um caráter mais atributivo que predicativo a tal inexistência, incorporando-a ao que inexiste. Trata-se, portanto, de um caractônimo semelhante aos formados por particípios substantivais em idiomas declinados. 55

56 subverte por dentro. 30 É o que ocorre no caso da diabologia ocidental, no cerne da qual o escritor brasileiro encontra o paradoxo constitutivo desse diabo que, mesmo sem ser, há. 2 - O diabo cristão De fato, a antítese tecida por Riobaldo não é nova. Ao contrário, expressa um postulado recorrente na teologia cristã. Trata-se da apresentação do mal enquanto privação sem substância, como a ausência que Agostinho de Hipona, recorrendo ao platonismo radical para refutar a crença maniqueísta em um princípio autônomo da negatividade, tipifica com a pergunta: O que, afinal, é tudo aquilo que chamamos de mal a não ser a privação do bem?. 31 Em uma teodiceia baseada no contraste entre a abundância de Deus e a vacuidade de outro, o mal é, na obra do patrício, a mera contaminação pelo que não é, daquilo que não apenas é, mas também era bom desde o início, assim como o autor sacerdotal do primeiro capítulo de Gênese enfatiza em sete versículos diferentes: 4, 10, 12, 18, 21, 25 e 31. Codificada por Agostinho, tal tipificação do mal como uma privatio boni, uma privação do bem, tem uma origem ainda mais remota. Pode ser encontrada, ainda que de forma embrionária, nos primórdios da escatologia cristã. No Apocalipse, por exemplo, a instância autoral João profetiza o retorno de uma besta que en kai ouk esti kai parestai, que era e não é e estará presente. 32 Em um claro contraste, o mesmo João exalta a supremacia de um Deus que descreve como ho on kai ho en kai ho erkomenos, como o que é e que era e que 30 Uma valiosa exceção ao aparente desinteresse do rosismo pela tradição cristã é Heloisa Vilhena de Araújo, cujo Roteiro de Deus tece uma teia de interessantes paralelos entre Grande Sertão, a Commedia de Dante e a escolástica de Tomás de Aquino. 31 Enquirídio 3:11, p. 5. Agostinho reitera esse ponto nas Confissões (7:12) e em Da moral dos maniqueístas, em que ressalta a falta de substância de todo mal. O mal não é natureza alguma, se é contrário à natureza, concede aos maniqueistas (2:2, 70), usando tal negatividade para contestar o dualismo destes: Mas o mal é a discordância, que certamente não é uma substância, mas hostil à substância. Para onde leva então? [...] Ele leva tudo que destrói à não existência. Agora, é Deus o autor da existência, e não há existência que, na medida em que existe, leve à inexistência. Assim aprendemos como a discordância não é; quanto a como ele é, nada pode ser dito. (8:11, p. 72). Tradução minha da versão inglesa :8. Pouco antes, João também tipifica o therion, a besta, como um en kai ouk esti kai mellei anabainein ek tes abussou kai eis apoleian upagei, que era e não é e está prestes a emergir do abismo e seguir rumo à destruição. Outra variante encontra-se em 17:11. 56

57 virá (1:4), atribuindo assim à diferença entre ser e não ser a própria distinção entre o divino e seu outro. Agostinho e João não são os únicos. Pois tal justaposição entre um Deus que é a fonte de todo ser e um diabo que encarna a privação é um procedimento recorrente na ontologia da Igreja. Encontra-se no Comentário sobre João de Orígenes, para quem contra o bem está o mal ou a iniqüidade e contra Aquele que é está aquilo que não é, de onde segue que o mal e a iniqüidade são aquilo que não é 33. Encontra-se na Consolação da Filosofia de Boécio, que tece uma teodiceia radical, ao afirmar que o mal reside além do poder de Deus e, portanto, nihil est, cum id facere ille possit qui nihil non potest, nada é, pois pode aquilo que apenas o nada pode [estar além do poder de Deus] (Prosa 3, XII, 29). Encontrase na Moralia de Gregório o Grande, que, lendo Jó, enfatiza a marcha rumo ao aniquilamento de Satã: a summa essentia recessit, et per hoc, cotidie excrescente defectu, quasi ad non esse tendit, como ele caiu da alta essência, e como seu defeito cresce a cada dia, ele se aproxima do não-ser (14: 18). E recorre na escolástica aristotelizada de Tomás de Aquino, para quem remotio boni privative accepta, mal dicitur, a remoção do bem, em acepção privativa, chama-se mal. 34 Mas, talvez, a expressão mais enfática dessa não substancialidade do mal seja Os nomes divinos de Pseudo-Dionísio Areopagita. Pois o místico nega não apenas a existência do mal, mas sua própria inteligibilidade, retratando-o como um oxímoro, como uma contradição avessa a qualquer definição. Torna-o assim uma privação não apenas do bem, mas também de sentido e do fim com depois dele a gente tudo vendo que Riobaldo tanto reivindica e tanto busca em seu narrar. Em uma das intermináveis listas que tanto marcam seu estilo, Pseudo-Dionísio é eloquentemente excessivo ao enfatizar a negatividade abrangente e multifacetada de to kakon: O mal é contrário aos caminhos, contrário ao desígnio, contrário à natureza, contrário à causa, contrário à origem, contrário à 33 Livro 2, capítulo 7. Tradução minha da versão inglesa. Com a exceção da Summa Teológica, todas a traduções do Latim, idioma que não domino, são feitas por mim a partir de diversas traduções em inglês dos textos em questão. No caso do Grego, idioma que domino pouco, minhas traduções são informadas pelo original e por traduções em inglês. Sempre que possível, cito o original em atenção aos que possam lê-lo. 34 Summa Teológica, 48, art. 3. Como Tomás de Aquino enfatiza repetidamente na questão 48, a falta que constitui o mal deve ser compreendida enquanto privação, e não ausência, uma vez que essa levaria tudo o que não existe a ser mal. 57

58 finalidade, contrário à definição, contrário à vontade, contrário à substância. É assim o mal privação, insuficiência, sem força, sem proporção, sem logro, sem beleza, sem vida, sem intelecto, sem motivo, sem completude, sem fundação, sem causa, sem definição, sem resultado; e inativo, debalde, desordenado, dessemelhante, indefinido, obscuro e sem essência, não sendo ele em si nada de nenhuma forma sequer [...] Pois o que em nenhuma forma participa do bem não é nada nem é capaz de qualquer coisa (4: 32). Trata-se de um argumento (e uma retórica) tão brilhante quanto eficaz. Ao tipificar o mal como uma privação radical, Pseudo-Dionísio evita abordar o problema sob um registro ético ou vivencial, o que forçosamente o vincularia ao divino. E o reinscreve sob um registro ontológico que nega sua substancialidade sem, entretanto, negar sua atualidade, preservando assim o divino de qualquer responsabilidade por sua dele nenhuma existência. (ROSA, p. 292). Ou seja, o místico reduz o mal àquilo que Riobaldo descreve como o louco, o doido completo assim irremediável (p. 219). Antes de retornar a Rosa, vale esclarecer um ponto e explicitar outro. O ponto a esclarecer é que o contraste entre a vacuidade do mal e uma divindade que gera (e transcende) todo Ser implica uma teodiceia um discurso que, citando a feliz expressão de John Milton, busca reiterar a providência divina e justificar os caminhos de Deus para os homens. 35 Como Jeffrey Burton Russell (1988, p. 19) bem ressalta, todo monoteísmo precisa, quando confrontado com o problema do mal, situar-se entre dois opostos: atribuir a Deus a responsabilidade por ele ou admitir a existência de um adversário. Pode, em outras palavras, recorrer à teodiceia ou ao dualismo. Cada estratégia tem seu preço. Enquanto o dualismo compromete a onipotência do divino, a teodiceia corre o risco de negar a experiência e a subjetividade ao tecer uma solução apenas metafísica para um problema imediato: o sofrimento real. A despeito de seus esforços, a retórica do privatio boni não logra a superação do mal ou do dualismo. Logra apenas a transposição dos dois problemas de um registro vivencial para um ontológico, e, portanto, metafísico. Não elimina a experiência real do mal, seja ele natural, humano ou radical. Como 35 MILTON, 1943, 91. Ocupando as linhas 25 e 26 do primeiro livro de Paraíso Perdido, o original é: [That I may] assert eternal providence and justify the ways of God to men. 58

59 todo muthos, toda história ou narrativa, apenas adia a contradição que diz explicar, suspendendo-a durante o ato de enunciação. Pois, mesmo sob o registro teológico, o mal parasitário de Orígenes, Boécio e Pseudo-Dionísio ainda depende não apenas da recusa, por Deus, em intervir para remover a privação do universo sensível, como também Sua disposição em preservar a substância boa que sustenta sua existência parasitária. Como Agostinho reconhece e Dante enfatiza ao atribuir a existência de sua città dolente a la divina podestate, la somma sapïenza e l primo amore, a existência do inferno exige a presença nele de algo divino. 36 No que diz respeito ao mal, Deus não é nem eximível, nem extricável para usar dois neologismos roseanos. Já o ponto a explicitar é que a ontologia cristã não se restringe a estabelecer uma equivalência entre o cerne do divino e o ser. Em seu extremo, promete também um incerto excedente ao qualificar Deus como uma causa além do ser, da distinção entre ser e não ser e até da compreensão humana. Para escapar do panteísmo, e, assim, da idolatria inerente a qualquer associação entre o Criador (ou a Criadora) e o cosmo criado, a teologia é obrigada a recorrer à negação também quando fala do divino. Se o diabo não é por ser a privação do que é, Deus tampouco é, pois supera não apenas o próprio ser, como também qualquer categoria que possa ser expressa por tortas palavras. Ou, como diz Pseudo-Dionísio ainda no início de Os nomes divinos: O bem além da palavra é impronunciável. [E é] essência além da essência e mente inconcebível e palavra impronunciável e a falta de fala e falta de conceito e falta de nome sendo assim à maneira de nenhum ser existente, origem de todo ser sem ele próprio (aition men tou einai pasin, auto de me on) por estar além de toda essência (1:1). Ironicamente, a negatividade usada para tipificar o diabo retorna no discurso sobre Deus. O registro, entretanto, é outro: deslocou-se da ontologia para a epistemologia. A mesma negação que estabelecia a vacuidade ontológica do mal agora enfatiza o caráter inefável daquele deus alienus que Pseudo-Dionísio 36 Confissões (2:2) e Inferno (III: 5-6). Pseudo-Dionísio segue a mesma linha. Não há coisa existente que venha do mal, nem o mal em si seria se fosse mal também em si, admite em Os nomes divinos (4:19). E, como não, o mal não é inteiramente mal, mas tem alguma porção do bem (ouk pante kakon to kakon, alla exei tina tagathou), em função da qual [o mal] existe. 59

60 descreve como tes huperousiou kai krufias Theotetos, como a divindade hiperessencial e oculta (1:1). Trata-se de um procedimento poderoso, cujo impacto surge não das hipérboles que o místico cristão cadencia, mas da insuficiência que ato contínuo atribui a estas. Como em toda apófase, a linguagem encontra sua força não no que diz, mas no fracasso que performa e na promessa que faz de um excedente que jamais predica ou revela: o cerne divino, o mais-que-ser além (e aquém) de todo ser. Não por acidente, essa huperousia perikaluptouses essa hiperessência grande oculta demais (ROSA, p. 472) poderia encontrar equivalente na mais roseana de todas as palavras: ser-tão. 37 Tampouco por acidente, o discurso de Riobaldo sobre o ser-tão compartilha com a apófase bem mais do que a mescla de hipérbole e ênfase na insuficiência das palavras. Compartilha com ela também o evocar, que Derridá (1992) associa à economia das preces, de um Senhor autorizado e capaz de avalizar sua tentativa de restaurar e significar o passado que narra. Vale notar como Riobaldo alterna referências ao excesso referencial do sertão, à contingência do seu próprio saber e ao Outro que chama para o espaço pragmático-confessional: Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção Ausência e representação De volta ao sertão, resta uma pergunta. Pois a leitura da ontoteologia cristã como mera reprodução do dualismo maniqueísta, tão moderna quanto Em seu fascinante ensaio How to avoid speaking: denials, Derridá ressalta como tal huperousia remete àquela idea do Bom (idea tou agathou) que Platão situa além do próprio inteligível no livro VII da República. Trata-se de um espaço paradoxal, pois promete um terceiro além do dualismo que escapa ao próprio jogo de diferenças que sustenta a linguagem e assim à predicação. Inexpressável, só pode ser aproximado pelo paradoxo. The beyond of that which is beyond Being, it has the double and ambiguous meaning of what is above in a hierarchy, thus both beyond and more, afirma Derridá (1992, p. 90). God (is) beyond Being but as such is more (being) than Being; no more being and being more than Being. 38 ROSA, p. 93. Em diversas ocasiões Riobaldo chega a atribuir ao Senhor uma capacidade de compreender a experiência narrada que nega ter. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe, confessa (p. 214). Mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. 60

61 redutora, é suficientemente difundida para que seja necessário indagar se Guimarães Rosa conhecia a diabologia cristã em geral e o privatio boni em específico. O próprio escritor brasileiro sugere que sim em sua famosa entrevista ao jornalista alemão Gunter Lorenz, a quem diz: O diabo não existe, por isso ele é tão forte (COUTINHO, 1983, p. 78). Mas a confirmação desse conhecimento encontra-se mesmo na biblioteca de Rosa, hoje abrigada pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Entre os muitos volumes do acervo, há uma coletânea francesa publicada em 1948 sob o título Satan: études carmelitaines. O livro contém algumas poucas marcações e comentários do escritor brasileiro, o qual é sempre econômico em seus apontamentos marginais. Entre os raros trechos que Rosa sublinhou com linhas estreitas de tinta vermelha, está uma leitura do romance Monsieur Ouine de Georges Bernanos, que menciona a prática dos demônios de levar os homens ao desespero pour les obliger à reconnaître au Mal plus de réalité qu'il n'en a, para obrigá-los a reconhecer no mal mais realidade do que ele tem (DESCLÉE DE BROUWER, 1948, p. 552). Com o título Satan: hypostase du Mensonge, outro artigo enfatiza a privação e o sem-fim que constituem o inferno. E tem o seguinte trecho sublinhado por Rosa: L'abîme, dit l'apocalypse, est sans fond : il ne cesse d'y choir, indéfiniment. Larvatus prodeo... jouons sur les mots, risquons ce calembour: il promène ses larves; aucune forme de l'être ne peut, chez lui, parvenir à maturité (tout état d'être achevé, ce serait quelque chose de Dieu...)! 39 Ou seja, Rosa não apenas conhecia a tipificação do mal como uma privação antagônica à huperousia ou hiperessência divina. Ele também se deu ao trabalho de sublinhar trechos que a expressavam. Mas teologia não é literatura. Suas regras são outras; sua economia simbólica, também. E a tradução, para o regime mimético, da falta radical que Pseudo-Dionísio atribui ao diabólico esbarra em uma impossibilidade: a de se representar qualquer ausência. Pois o mesmo ouk on cuja tipificação era tão adequada ao jogo predicativo resiste à mimese. 39 DESCLÉE DE BROUWER, p Os trechos em negrito correspondem aos sublinhados por Rosa: O abismo, diz o Apocalipse, é sem fundo : ele não cessa de cair [...] todo estado de ser atingido seria algo de Deus. 61

62 Afinal, como representar o que não é? Como representar aquilo que é, literal e figurativamente, ab-strato? Como transpor para uma tela, escultura ou romance a presença daquele que se apresenta apenas como ausência? O problema não é de hoje. Como o historiador da arte Luther Link ressalta em sua discussão sobre Giotto em O diabo: máscara sem rosto, a impossibilidade de representar essa falta radical foi sempre um desafio para as artes plásticas, desafio que rendeu ao diabo uma iconografia muito mais rica e plural do que a dos outros personagens bíblicos (LINK, 1998, p. 20 e 150). Também foi um desafio para Goethe, com seu Mefistófeles que sempre nega, mas ainda assim fala, age e existe. E o mesmo pode ser dito no caso de Dante, cujo Dite, eternamente congelado na geleira de Cocito, em uma paródia impotente e horrenda da onipotência divina, ainda assim existe. 40 O que não é, não se vê. E é precisamente diante dessa dificuldade secular que Rosa melhor demonstra seu brilhantismo em Grande Sertão, livro em última e primeira instância sobre um homem que teme ter vendido a alma a um diabo que nunca viu e que jamais se personifica ou revela na trama. Ao compor o romance como a confissão de um pseudo-pactário obcecado por um-que-não-existe (ROSA, 1984, p. 82 e 130), o escritor brasileiro transpõe, para o regime mimético, a mesma privação radical que a ontologia predicativa atribui ao diabólico. Trata-se de um procedimento cujo gênio reside na recusa à adaptação: seu sucesso deriva precisamente do caráter direto e literal que impõe à transposição, negando-se a apresentar qualquer hipóstase que atribua realidade ou presença ao mal. Como diversos estudiosos já ressaltaram, tal elisão da presença diabólica tem profundas consequências miméticas, epistemológicas, éticas e estruturais, servindo como matriz da poética roseana. Walnice Nogueira Galvão, por exemplo, é perspicaz ao retratar a ida de Riobaldo às Veredas Mortas como um esforço malfadado e, em última instância, blasfemo, de impor uma estabilidade artificial a uma ordem das coisas por definição movediça, ao tudo incerto, tudo certo do sertão (ROSA, 1984, p. 146). Tendo a fixidez em sua mesma etimologia, o pacto 40 É sintomático que Dante poeta reitere, em duas ocasiões do Inferno, sua incapacidade de descrever o que encontrou no fim do abismo do mal confessando que apenas con paura il metto in metro (XXXIV: 10). 62

63 do Latim pactum, contrato, do grego pegnunai, atar ou solidificar seria assim: [Uma busca pela] garantia de certeza, o certo dentro do incerto, a certeza que mata e dana: morte real e morte abstrata. O pacto, como o crime, é algo que atenta contra a natureza do existir, na sua fluidez, na sua permanente transformação. É a tentativa de ter uma certeza dentro da incerteza do viver (GALVÃO, p. 121). João Adolfo Hansen aprofunda (e, aparentemente, inverte) tal leitura. Apresenta o O um dos cem nomes que Riobaldo usa para indicar aquela alteridade difusa e multifacetada que, em Marcos, já se dissera legião (5: 12) como um registro da privação não apenas ontológica, mas também semântica, do diabólico. Enfatizando a vacuidade referencial gerada pela polissemia de o O, Hansen apresenta o nada que não queria existir (ROSA, 1984, p. 394) nas veredas como uma personificação da indeterminação, mas também da potencialidade, verbal que contamina a identidade com a alteridade: Sendo também um dos nomes do Diabo O O zero, nonada, nada, (não)-ser lê-se nesse nome intensivo e extensivo ou um pronome demonstrativo de terceira pessoa [...] ou, ainda, nele se lê um artigo, determinante elevado à classe de nome, como substancialização da qualidade, que se transforma numa espécie de ser da designação, pura deixis rebaixada para aquém de uma qualidade fixa, pois todos os nomes e todas as coisas podem ser usados como tradução de O O ou como seus lugares de emergência e possessão (HANSEN, p ). O Que-Não-Fala de Grande Sertão (p. 380) seria assim para Hansen um quodlibet, pura potência de designação [...] o incerto no certo : vazio, nonsense, efeito, ao passo que o efeito-certeza é a metáfora de Deus (2000, p. 91). Seria mais a eterna possibilidade de a não identidade emergir no seio da identidade do que aquele (não) ser solto, por si, cidadão (ROSA, 1984, p. 10), cuja manifestação seria suficiente para emprestar ao negativo uma estabilidade, uma equivalência consigo mesmo que o tornaria conhecível. Ainda que seja sem parar, o demônio não existe real (ROSA, 1984, p. 289): existe no homem humano (ROSA, 1984, p. 568). Como o arkon joanino, vige dentro do homem e das coisas, regulando seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens 63

64 [...] e nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes (ROSA, 1984, p. 10). À primeira vista, há uma disjunção entre o certo dentro do incerto do qual fala Galvão e o o incerto no certo de Hansen. Mas o desencontro é aparente. Pois as duas leituras têm objetos diferentes: a de Galvão, o diabo que Riobaldo busca nas Veredas Mortas; a de Hansen, o diabolos que encontra. Como o Fausto de Marlowe, que conclama Mefistófeles para resolve me of all ambiguities, para resolver-me às ambiguidades todas (I, 80) Riobaldo busca no pacto a certeza e a unificação. E, o que era que eu queria?, confessa a seu interlocutor (ROSA, 1984, p. 392). Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era ficar sendo! O que o jagunço encontra, entretanto, é precisamente o oposto. Na encruzilhada, depara-se com a incerteza do nada irrestrito nada marcado por uma cadência de faltas e um excesso de si: silêncio, frio, buracão, falso imaginado e, acima de tudo, a gente mesmo, demais (ROSA, 1984, p ). É preciso, portanto, reconhecer em Grande Sertão pelo menos dois diabos. Clássico, o primeiro se resume à privação manifesta do Cristianismo que outorgaria, por contraste, plenitude ontológica ao divino e subsidiaria, por presença, a busca, pelo indivíduo, da determinação histórica e da certeza teleológica. Já o segundo é a ausência do primeiro. Em um eterno denegar (e renegar) epistemológico, é a falta daquela hipóstase da privação que determinaria, por sua mesma negatividade, o ser como presença, predicando a matéria vertente do viver. A ironia da transposição literal da privatio boni da teologia para a mimese é que, sob uma perspectiva roseana, o diabo clássico revela-se não terrível, mas confortante em sua capacidade de delimitar o divino e até ratificar Sua existência. Pois é apenas quando falha em faltar no sertão que o diabo instaura o verdadeiramente dia-bólico, revelando a artificialidade daquela convergência entre significante e significado que constitui o símbolo. Em Rosa, o maior artifício do diabo não é contaminar a substância com a privação. Tampouco é persuadir a humanidade de sua inexistência, como sugere Baudelaire em Le joueur généreux. 64

65 É não existir, inexistir no espaço a ele reservado. Não sendo em si, o demo corruptela na qual Marinho (2001, p. 24) identifica o neologismo francófono demot, despalavra torna-se mera figura, o nome provisório do que nem é nem pode ser localizado: Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo que é só assim o significado dum azougue maligno tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo (ROSA, 1984, p. 11, grifo nosso). O diabólico torna-se assim a ausência, a falta de um diabo predicável, presente e cognoscível. Pois sua mesma falta no sertão roseano expressa a dúvida inerente a um mundo sempre muito misturado, indefinição tormentosa para quem deseja que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco [e que estejam] os todos pastos demarcados. 41 Daí o artigo que se repete eternamente e eternamente sugere a falta que não manifesta, o substantivo que não se realiza: o O. O diabo roseano difere de (e a) si mesmo: muito além da não-identidade entre a identidade e a não identidade, sua economia é a da não-identidade da não-identidade consigo própria. Por isso existe e não existe (ROSA, 1984, p. 9). 4 - O pseudo-pactário e as Veredas Mortas Ainda que simples, o procedimento de literalizar a privação diabólica é também subversivo. Pois, ao deslocar a privatio boni da predicação ontológica para a representação romanesca, Rosa também a ressignifica. Longe de autorizar a teodiceia de contrastes, seu artifício devolve à experiência real o mal que a teologia deslocara para a abstração metafísica. A economia desse retorno, entretanto, não é a da repetição. É a da transformação, e da tarefa. Pois o diabo retorna ao aqui narrado com toda a negatividade herdada dos teólogos. Não mais 41 ROSA, Vale aqui ressaltar uma curiosidade: o fato de a demarcação estar na própria origem da palavra hermenêutica. Hermes, etymologically he of the stone heap, was associated with boundary stones, ressalta Crapanzano (1992. p. 44). The herm, a head and a phallus on a pillar, later replaced the stone heap. 65

66 uma ausência manifesta, torna-se a ausência de sua própria manifestação, ausência que, por prometer um sentido jamais constituído, acaba tornando-se um ponto zero verbal, um local de infinita potencialidade de significação. No sertão, o diabo nem é, nem significa. Por isso, há de se falar dele. Ou seja, o assombro do narrador Riobaldo sua thauma, para usar o termo com o qual João descreve os condenados no Apocalipse não deixa de ser o do pecador que teme o juízo. Tampouco deixa de ser o do tentado que busca compreender a origem de sua tentação. Mas é, sobretudo, o de um eu provisório que, ao buscar aquela privação encarnada cuja presença bastaria para inferir a existência do divino, depara-se com uma indeterminação irrestrita à qual atribui a tarefa de encontrar o excedente desconhecido [...] duvidável que lhe falta (ROSA, 1984, p. 392). Em uma heteronomia radical, Riobaldo atribui seu ficar sendo, seu próprio porvir, à falsa presença do nada. Ou, como confessa o jagunço: O demo existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente próprio feito remanchas n'água. A saúde da gente entra no perigo daquilo, feito num calor, num frio. Eu, então? Ao que fui, na encruzilhada, à meia-noite nas Veredas Mortas. Atravessei meus fantasmas? Assim mais eu pensei, esse sistema, assim eu menos penso. O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: esse negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando esperei, chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a quem não existe? Não será o pior? (ROSA, 1984, p. 451). Mas o que há de subversivo nesse nada que o jagunço encontra nas Veredas Mortas? Acima de tudo, ele revela a contradição inerente tanto à teoria da privação quanto às tentativas clássicas de retratar o diabólico como ausência presente: o fato de tal retrato constituir um oxímoro representacional, o equivalente mimético de um paradoxo recursivo. 42 A originalidade de Rosa reside em que ele reserva para o diabo um espaço representacional privilegiado (o livro é, afinal, sobre um pacto), mas recusa-se a preencher tal espaço com qualquer hipóstase da falta capaz de avalizar a ontologia cristã. Levando a privação ao extremo da inexistência, transforma o demo não em um ente adversativo, mas em 42 Por recursivos, entendo enunciados reflexivos que referenciam a si mesmos, como: Isso é uma frase. Por paradoxo recursivo, entendo enunciados reflexivos que contradizem a si mesmos, como: Essa frase é falsa. Sobre o tema, ver: HOFSTADTER, Douglas. Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid. New York: Random House,

67 um local desocupado cuja vacância empurra a teodiceia de contraste ao absurdo e ao colapso. Pois, ao negar o diabo, Rosa explicita a função constitutiva que ele exerce no mesmo Cristianismo que atribui a ele uma externalidade radical. Longe de escapar ao sistema cristão, o diabo desempenha nele um papel fundamental e diametralmente oposto ao daquele centro descrito por Jaques Derrida como o ponto único que comandando [uma] estrutura, escapa à estruturalidade por não participar dos jogos que possibilita (2002, p 230). Plural, heterogêneo e indeterminado, ocupa o espaço contraditório da alteridade radical que define, por justaposição, as permutações, substituições e transformações da estrutura que a exclui: constitui, por assim dizer, sua circunferência, a série de pontos limítrofes e diferenças que delimitam o sistema. Ainda que subverta o contraste ontológico, a apropriação roseana da privatio boni não rejeita a teodiceia em si. Muito pelo contrário, amplifica sua importância ao transformá-la em tarefa do eu falante. No realismo místico de Rosa, o único lócus possível para a justificativa do divino é a matéria vertente (ROSA, 1984, p. 91) do vivido. A despeito do testemunho ao da aparente concordância pelo senhor [...] soberano, circunspecto 43 que o escuta, a responsabilidade pela teodiceia é por definição do narrador. Como é ele o sujeito confessional, qualquer apologia que originasse fora da vivência imediata seria artificial e metafísica. Não por acidente, Riobaldo repetidamente frisa a seu interlocutor o caráter intransmissível da experiência cujo sentido busca, mais que resgatar, constituir: O senhor viu onça: boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto campo, brabejando; cobra jararacuçu emendando sete botes estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas se acreditam. O demônio na rua, no meio do redemunho... Falo! (ROSA, 1984, p. 148). Daí o caráter agônico e provisório da fala de Riobaldo, cujas palavras buscam para a vida um sentido, termo a compreender em sua tríplice acepção de 43 Sintomaticamente, Riobaldo jamais usa a palavra senhor em sua acepção religiosa mais do que comum no linguajar sertanejo (ROSA, 1984, p. 568). 67

68 significado, de direção e da paixão de um sentir passado. Em uma teodiceia de monismo extremo, cabe ao pseudopactário encontrar nos fragmentos da experiência um propósito. Eis aqui a modernidade de Guimarães Rosa. Pois o que está em jogo no contar riobaldiano não é tão somente o reconhecimento da culpa ou mesmo a busca pela compreensão em uma vida que não é entendível (ROSA, 1984, p. 131). É também a tarefa, pelo sujeito confessional, de reconhecer em suas palavras o único local possível para uma convergência entre determinação teleológica e contingência vivida, reconhecimento que é o oposto de um pacto. BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, Confessions and enchiridion. Tradução para o Inglês de Albert C. Outler. Philadelphia: Westminster, The writings against the manichaeans and against the donatists. Tradução para o Inglês de Philip Schaff. New York: The Christian Literature Publishing, p. ALIGHIERE, Dante. The Divine Comedy: italian text and translation. Tradução para o Inglês de Charles Singleton. Princeton: Princeton Press, BÍBLIA Sagrada. Ed. Almeida corrigida fiel. São Paulo: Soc. Bíblica Trinitariana do Brasil, Novo Testamento trilíngue: grego, português, inglês. São Paulo: Vida Nova, BOÉCIO, Anicius Manlius Severinus. Consolatio philosophiae. Edit. por James O Donnell. Vienna: G. Weinberger, v. 67 (Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum). Disponível em: < Acesso em: 28 jul BURTON RUSSELL, Jeffrey. The prince of darkness: radical evil and the power of good in history. Ithaca: Cornell, COUTINHO, Eduardo Faria (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, COWARD, Howard. Derrida and negative theology. Albany: SUNY,

69 CRAPANZANO, Vincent. Hermes dilemma & Hamlet s desire: on the epistemology of interpretation. Cambridge: Harvard Press, DESCLÉE DE BROUWER. Satan: études carmelitaines. Paris: Desclée de Brouwer, DERRIDA, Jaques. Escritura e diferença. São Paulo: Perspectiva, GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas. São Paulo: Perspectiva, GOWAN, Donald. Theology in exodus. Louisville: John Knop Press, HANSEN, João Adolfo. O o: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, GREGÓRIO, O GRANDE. Moralia. Disponível em: < Acesso em: 28 jul GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, LINK. Luther. O diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, MARINHO, Marcelo. Grande sertão: vertigens de um enigma. Campo Grande, Letra Livre, MARLOWE, Christopher. The tragical history of Dr. Faustus. New York: Collier & Son, MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, MILTON, John. Paradise lost and other poems. Edit. por Maurice Kelley. NY: Walter J. Black, PSEUDO-DIONÍSIO. Peri theon onomaton. Disponível em: < nis_nominibus,_mgr.pdf.>. Acesso em: 28 jul SCHULER, Donaldo. O épico em Grande sertão: veredas. In: GUIMARÃES ROSA, João. Porto Alegre: URGS, TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. Caxias do Sul Universidade de Caxias do Sul, IMAGEM Disponível em: < perguntas-feitas-para-o-diabo.html>. Acesso em: 25 jul

70 O Diabo nas chamas 70

71 O Diabo no meio do redemoinho Suzi Frankl Sperber 71

72 O DIABO NO MEIO DO REDEMOINHO Suzi Frankl Sperber Em Sagarana, cuja primeira edição foi em 1946, as tramas dos contos revelam confrontos como vida e morte, sofrimento, doença, a busca da salvação. Corpo de Baile confirma e afina estas questões. Mas é em Grande sertão: veredas que se manifesta a angústia maior com relação à culpa, ao Mal (e ao Bem), ao desejo de onipotência que culmina com o pacto. Mas o senhor acreditando que alguma coisa humana é de todo impossível, então é que o senhor não pode mesmo ser chefe de jagunço, nem na menor metade só de um diazinho, nem somente nos vastos imaginados. Ora essas! digo (p. 699). O pacto configura a ação humana de quem quer ser todo-poderoso. Durante a Inquisição, este seria o sinal mais evidente da heresia, a ser severamente punido. O solilóquio de Riobaldo revela sua necessidade de provar sua inocência. Para isto precisa de uma testemunha: seu ouvinte-leitor. Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço (p.7). Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador... (p. 693, grifo nosso). Só a memória pode resgatar Riobaldo, que lembrará de detalhes indicativos de um conhecimento que a vida lhe ministra. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo 72

73 menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono (p. 405). A memória dos acontecimentos se apresenta misturada entre tempos passados diferentes, emoções diferentes vividas pelo mesmo narradorpersonagem. Mas a organização dos eventos é propelida por algumas referências históricas anteriores: a Inquisição. A Inquisição por um lado levou a que Portugal exilasse os hereges para o Brasil. Por outro, veio ao Brasil, exerceu seu poder, chegando a repatriar e levar à fogueira um autor como Antonio José da Silva, o Judeu. Foram três os papéis exercidos indiretamente pela Inquisição no Brasil: acolhimento da heresia (judaísmo ou islamismo); temor de revelar a religião, mantida em segredo; preconceito contra judeus, exercido indiretamente nas fantasias criadas pela Inquisição sobre as práticas judaicas ou judaizantes. Item, se sabeis, vistes, ou ouvistes, que algumas pessoas, ou pessoa, fizerão ou fazem certas invocações dos diabos, andando como bruxas de noite em companhia dos demônios, como os maléficos feiticeiros, maléficas feiticeiras, costumão fazer, e fazem encomendandose a Belzebut, e a Sathanaz, e a Barrabás, e renegando a nossa sancta Fé Catholica, offerecendo ao diabo a alma, ou algum membro, ou membros de seu corpo e crendo em elle, e adorandoo, e chamandoo para que lhes diga cousas que estão por vir, cujo saber a só Deos todo poderoso pertence. 44 A crença no Diabo e a prática do pacto com Satanás foram tematizadas por Johann Wolfgang von Goethe, e, antes dele, por Christopher Marlowe. O problema do Mal se coloca para os seres humanos desde a Antiguidade e foi objeto de normatizações por parte das diferentes religiões. O diabo aparece mais fortemente durante a Inquisição. Sua penetração no imaginário popular brasileiro deve-se aos reflexos da Inquisição até mesmo nas leituras bíblicas e não aos autores acima mencionados. Daí que Riobaldo tome esta temática como parâmetro de avaliação de sua existência, ainda que o autor, João Guimarães Rosa, tenha lido e aproveitado impulsos sobre o assunto a partir dos dois Faustos, sobretudo do de Goethe. 44 Primeira Visitação do Sancto Officio às partes do Brasil. Confissões de Bahia FURTADO DE MENDONÇA, Heitor. Prefácio de J. Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1935, p. xxxiv. 73

74 João Guimarães Rosa foi leitor interessado de temas relativos à espiritualidade e à geografia, além de literatura e tinha memória prodigiosa. Pode ter lido acerca de heresias, ainda que não houvesse este tipo de livros em sua biblioteca. As heresias apresentaram a moldura para a perseguição e, pois, para a configuração do diabo. Analisaremos alguns dados a seguir. Orígenes, teólogo de Alexandria (séc. III d.c.), mistura elementos da gnose do platonismo e do cristianismo, afirmando uma restauração final de todos os seres, inclusive o demônio e os condenados. Os monges da Palestina debatem a questão, exigindo a intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539: o Patriarca de Jerusalém pediu ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo, especificamente contra a teoria da reencarnação (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado incisivo e violento, que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Orígenes, dos quais merecem a nossa atenção os seguintes: 1. Se alguém disser ou julgar que as almas humanas existiam anteriormente, como espíritos ou poderes sagrados, os quais, desviando-se de visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este motivo, perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um corpo à guisa de punição, seja anátema. 9. Se alguém disser ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim, e que se dará uma restauração (apokatástasis, reabilitação) dos demônios, seja anátema. 45 Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menas de Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximos, semelhante pronunciamento. Intimado, Menas reuniu o chamado sínodo permanente (conselho episcopal) de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais três dos quatro primeiros nos interessam de perto: 45 < Acessado em: 12 jun

75 1. Se algum crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é geralmente associada àquela), seja anátema. 2. Se algum disser que os espíritos racionais foram todos criados independentemente de matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema. 4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema. 46 Observamos, pois, que as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das almas (o que naturalmente implica a condenação da própria tese da reencarnação, na medida em que esta depende daquelas doutrinas e era professada pelos origenistas). A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja (baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de Lyon em 1274 As almas... são imediatamente recebidas no céu, e de Florença em 1439 As almas... passam imediatamente para o inferno a fim de aí receber a punição (Cf. DANZINGER- SCHÖNMETZER, 1997, p ). A palavra usada por Menas para indicar a rejeição da doutrina da reencarnação foi seja anátema, i.e., seja excomungado. Banir alguém do grupo do poder, da Igreja, correspondia a forte marginalização. A mesma Igreja criou forma mais colorida e menos abstrata para expressar o anátema: a figura do diabo, a encarnação do Mal. Era a maneira de demonizar as crenças não aceitas pela Igreja Católica, para que a religião cristã se prestasse como nova ferramenta de poder e de controle sobre os diversos povos que viviam dentro das fronteiras do decaído Império Romano, fornecendo uma base de cultura comum para um 46 < Acessado em 12 jun

76 mundo extremamente diverso e conflitivo. Hoje, a Igreja não usa mais a personificação do Mal para intimidar os crentes, até porque perdeu o controle e poder sobre as populações, que aderiram a miríades de movimentos religiosos. No imaginário popular do Brasil, sobretudo da primeira metade do séc. XX, Satanás ainda impera poderoso como corruptor da humanidade, levando-a para a perdição do pecado e para o Inferno. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o menino menor pergunta sobre o inferno. Guimarães Rosa coloca o diabo como ameaça para Riobaldo. Ameaça de pecado, de estar tomado por ele, de perder o reino do céu, de culpa maior. A ideia da reencarnação existiu também no catarismo. Os cátaros acreditavam que o mundo não havia sido criado diretamente por Deus. Seria uma materialização do Mal e, portanto, os que aqui viviam estavam destinados à expiação até que, após uma vida destinada ao bem, voltassem ao Paraíso perdido. Enquanto não conseguissem isso, teriam que reencarnar em sucessivas vidas na Terra. Algumas ideias do catarismo reapareceram mais tarde em diversos momentos, como no Movimento da Reforma Protestante e nas doutrinas que visam resgatar o cristianismo primitivo, como a doutrina espírita. A ideia da reencarnação é debatida por Riobaldo, que acaba duvidando da pertinácia desta hipótese, já que o sofrimento pelo qual passa o pai das crianças que ficam cegas, 47 necessário nesta sua reencarnação para que ele se purificasse, depende do sofrimento de cada uma das crianças. Quelemém pondera que também as crianças teriam sido más em outra encarnação. Mas e o velhinho assassinado pelo Aleixo? Riobaldo se pergunta a respeito da reencarnação, mas o verdadeiro problema é a dor, o Mal. Afinal, como entender a 47 Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha três meninos e uma menina todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente conforme compadre meu Quelemém é quem diz se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo (p. 9-10, grifo nosso). 76

77 necessidade do Mal no mundo? Como diversas doutrinas trabalharam com oposições, o princípio dualista, opositivo, impregnou mentes, metodologias, e continua fortemente incorporado nos caminhos reflexivos. Os cátaros eram dualistas, acreditavam no conflito entre o bem e o mal, o espírito e a carne, o superior e o inferior. Para eles, toda a Criação estava imersa em uma guerra eterna entre os dois princípios irreconciliáveis: a luz ou seja, o espírito e a escuridão, ou matéria, sendo os primeiros obra e origem Divina do Bem, e o segundo obra e criação do Mal. Riobaldo narrador passa pelo recurso do método reflexivo dualista. O que não é de Deus, seria do Demônio. mundo. Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças eu digo. Pois não é ditado: menino trem do diabo? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho... (p. 7, grifo nosso). O diabo existe nas criaturas, até nas crianças, e em tudo: natureza, Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo que é só assim o significado dum azougue maligno tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo (p. 8, grifo nosso). É concepção que lembra também o deísmo, segundo o qual Deus criou o mundo e não interfere na realidade criada. A lei natural é o critério moral para os homens. Não existem revelações verdadeiras, nem o conhecimento da natureza ética ou intelectual de Deus. Riobaldo, em seu questionamento sobre a existência e a natureza do diabo, passa por explicações do mundo e das forças criadoras provenientes de diferentes heresias. Em verdade, este tipo de considerações e justificativas tornouse muito difuso no mundo, e especificamente no Brasil, cuja população inicial foi grandemente dos considerados hereges, expulsos de Portugal. Isto é, eram cristãos novos que, aqui, voltaram à prática oculta do judaísmo. O medo da punição deve ter expandido a imagem da encarnação do mal, do diabo, como 77

78 forma de controle das mentes. E assim é que encontramos indivíduos, no interior de qualquer estado, que partilham destas ideias. Em Grande sertão: veredas há momentos em que a natureza bela é reveladora de Deus, tanto que lembra o panteísmo, que afirma que Deus é o mundo, que ao conhecermos o mundo, conhecemos Deus. Deus está em tudo conforme a crença? (p. 439) Não haveria transcendência para fora do mundo. Em Caos e Cosmos referi que uma das tentações dos humanos é o rebaixamento do panteão divino, o que ocorre quando o crente pede a Deus cura, riqueza, amores, a compra de uma casa, a solução de litígios, coisas que seitas religiosas contemporâneas tantas vezes prometem. As seitas falam de Deus de maneiras diferentes, atribuindo-lhe um lugar, poderes, características que não condizem com o cristianismo. Riobaldo não diz ao seu leitor que tais ponderações provêm de diferentes heresias, mas sua consciência está construída em cima de uma ideia de justiça, de Bem e de Beleza que orientam suas reflexões. Daí surgem dúvidas sobre o Diabo, figura sempre presente na crítica às heresias. O deus da gnose é um deus impessoal. É um princípio constitutivo e unificador do cosmos. Seus adeptos acreditam na emanação do mundo a partir de Deus (ou na expansão da divindade). A doutrina católica não aceita a ideia de mutações na divindade. Tudo aquilo que muda e se transforma por definição não é Deus. A criação do mundo, segundo o catolicismo, foi feita a partir do nada e a realidade criada é necessariamente diferente de Deus. Segundo o catolicismo, tudo aquilo que muda e que se transforma, necessariamente, é parte da realidade criada. Riobaldo apresenta um Deus mutante, que é paciência, 48 mas que também é traiçoeiro: E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro dá gosto! A força dele, quando quer moço! (p. 25, grifo nosso). 48 Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca e afia que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. (p.17). 78

79 Ideia semelhante sobre a natureza de Deus invisível, oposta à ideia do Diabo, visível, aparece em outros momentos: Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... (p. 71) Ou: Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes. Não, Diadorim. Estou gostando não... eu disse, neguei que reneguei, minha alma obedecia. Você sabe do seu destino, Riobaldo? Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não. Você sabe do seu destino, Riobaldo? ele reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de mim. Se nanja, sei não. O demônio sabe... eu respondi Pergunta... Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece vivo no momento (p. 270). Para os gnósticos, existem dois deuses: o deus criador imperfeito, que eles associam ao Jeová do Velho Testamento, e outro bom, associado ao Novo Testamento. O primeiro criou o mundo com imperfeição, e desta imperfeição se origina o sofrimento humano, que aprisiona a humanidade. Mas a essência humana seria oriunda de uma "centelha divina" que perpassa todo o cosmos mesmo sem nele se situar, e o deus bom teve pena e deu aos homens a capacidade de despertarem deste mundo de ilusões e imperfeição. Para que o homem possa se libertar dos sofrimentos deste mundo, segundo os gnósticos, ele deve retornar ao Todo Uno, por ascensão ao pleroma, e isto só pode ser alcançado pelo Conhecimento Verdadeiro (representado pela Gnose). Este despertar só pode ocorrer se o homem se descobre, conhecendo-se a si próprio. Neste ponto reconhecemos claramente o lema socrático conhece-te a ti mesmo. É que o gnosticismo tem algo do platonismo. Este intertexto ajuda a compreender Guimarães Rosa e suas leituras espirituais, religiosas, filosóficas. E o contraponto cristão ameaça sempre com a figura satânica. Gnose tem por origem etimológica o termo grego "gnosis", "conhecimento". Não um conhecimento racional, científico, filosófico, teórico e empírico (a "episteme" dos gregos), mas de caráter intuitivo e transcendental: 79

80 "sabedoria". Seria um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, capaz de dar sentido à vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com sua essência eterna, maravilhosa e crística, pela via do coração. É uma realidade vivente sempre ativa, que apenas é compreendida quando experimentada e vivenciada. Assim sendo, jamais pode ser assimilada de forma abstrata, intelectual e discursiva. Em Grande sertão: veredas não há tais definições, nem dois deuses, um imperfeito e outro perfeito. Há um deus perfeito. A imperfeição é do demônio. Mas a necessidade do conhecimento é manifesta: É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa uma só, diversa para cada um que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porquê. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o Que-Diga existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem que Ele é bondade adiante, quero dizer (p. 440). O que há é uma certa coisa uma só, diversa para cada um que Deus está esperando que esse faça (p. 440). Esta posição lembra os cátaros, que acreditavam na salvação pela ação pessoal. Cada indivíduo era responsável por sua própria salvação por meio de seus atos. Isso implicava a salvação irrestrita (todos teriam direito à salvação, tudo dependia de suas ações aliás, todos menos o Hermógenes...), e na crença de que a relação Deus-homem não necessitava de intermediários. Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor compadre meu Quelemém, diz (p. 9). Riobaldo passa a rezar quando já está de range-rede. No tempo da jagunçagem, não existem referências a ritos (missa e as prescrições para certas 80

81 datas, como a Quaresma, a Páscoa, o Natal...). Não existe busca de pureza, a não ser quando ele fala do Aleixo. Depois de ocorridos os terríveis fatos, Riobaldo busca resgatar a todos: Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucúia (p. 436). E o tempo todo pinga a experiência como forma de conhecimento: Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... (p. 840). Os cátaros tinham dois deuses: um era o Princípio, o Puro Espírito, a Energia livre das manchas da matéria. Era o Deus do Amor, considerado incompatível com o poder. Sendo a carne uma manifestação do poder, toda criação material portanto seria obra do segundo deus, um deus usurpador, mau em seu interior, chamado pelos cátaros de Deus do Mundo. Ora, o difícil trecho do centro de Grande sertão: veredas reúne o amor e Deus: Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe (p. 439). Existe, aí, um aceno do Deus do Amor. Já o poder é o que acena com rosinhas flores para todos: Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo (p. 16). A divisão entre amor e poder talvez explique às avessas o desejo de Riobaldo de que o Estado cuide do nível religioso: Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas, fecharem o definitivo a noção proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?! Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente dá susto de saber e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só (p. 14, grifo nosso). Quando Riobaldo, velho e barranqueiro, fala de religião, diz que todas o refrescam. Portanto, o estado de religião, de busca da ascese e de plenitude o 81

82 leva a buscar todas as religiões. E neste afã, tem a necessidade de negar a existência do diabo, ao mesmo tempo em que o convoca; pretende fazer um pacto, nega o pacto e evita o demônio. O corpo é bom e as relações sexuais também, para Riobaldo. Mas quando o medo aperta, ele decide fazer um período de jejum de sexo. Teria isto relação longínqua com o que ensinavam os cátaros? Que o espírito foi criado por Deus e que era bom, enquanto o corpo teria sido criado pelo Mal? Para os cristãos havia valido esta postura até que se pensou na reprodução da espécie e o corpo passou a ter esta função precípua. Como se vê, mesmo aceitando esta função, o cristianismo balança entre a satanização do corpo e o seu resgate do Mal. Dentre as repercussões de leituras e do pensamento difuso da crítica a doutrinas consideradas heréticas, que estimularam o ser humano pensante a refletir sobre o Bem e o Mal, sobre a ação humana e suas dimensões morais e éticas, a partir ou não de um pensamento religioso, existe o maniqueísmo. O que dele nos veio foi uma caricatura opositiva, que lembra: Neste mundo tem maus e bons todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? (p. 440). Segundo Mani (Pérsia, século III), fundador do maniqueísmo, o mundo foi dividido entre duas metades. Um mundo seria o das trevas, governado por Satanás, o Príncipe das Trevas. O outro seria o mundo da luz, governado por Deus. Um conceito tão categórico se aplica ao mundo das ideias. Na lei maniqueísta, é verdade, não há zona cinzenta: as coisas, as ações são radicalmente más ou boas. Especialmente interessante para quem estuda Grande Sertão: veredas é que Mani divide o mundo em três tempos, ligados ao precedente e caracterizados pela divisão absoluta e não misturada entre as trevas e a luz. As últimas pareceriam ignorar a sua existência mútua. Nem as trevas, nem a luz podem ser aniquiladas. Portanto, o estado anterior à sua criação é considerado um estado perfeito do mundo. O segundo tempo é o momento do meio, central, ou presente. Este começa com a criação da humanidade e se caracteriza pela mistura instável de trevas e de luz. O terceiro tempo é o momento posterior. Ele é totalmente idêntico ao momento anterior. As almas humanas, que 82

83 provêm da essência do homem primordial, repousam em um imenso carma luminoso que representa o homem primordial. O maniqueu (que vê o mundo misturado) tenta constantemente atingir um ideal: o de restabelecer a divisão entre treva e luz, separando nitidamente o espírito do corpo. A ideia é expandir o espírito e reduzir o espaço ocupado na vida pelo corpo. Para chegar a isto, o maniqueu deverá reduzir as manifestações materialistas e a sensualidade já que estas corresponderiam ao mundo demoníaco. O desgosto de Riobaldo com seô Habão (Cf. Sperber 2000 e outros) reflete a crítica ao materialismo e a sua vinculação com o diabo. A mistura entre os dois reinos, de luz e de trevas, produziu uma espécie de fermento que mergulhou o reino das trevas em uma dança turbilhonante, i.e., em um redemoinho caótico pelo o qual surgiu a morte, elemento que deu ao homem uma espécie de transubstanciação. Tal fenômeno se dá tão bem e fortemente, que carrega em si o germe de seu aniquilamento vale dizer, para o ser humano, uma transmutação em luz que passa pelo extraordinário fulgor da morte. Podemos dizer que é o que acontece com Diadorim. Diadorim vivia só um sentimento de cada vez (p. 438). E quando morre, revela-se sua natureza, seu gênero, seu espírito: O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah mirei e vi o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou no vão e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa Senhora assentada no meio da igreja... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu despertei de todo como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio... Diadorim tinha morrido mil-vezes-mente para sempre de mim; [...] (p. 855/6, grifos nossos). Existe um pensamento profundo neste relato. O reino das trevas deve ser ultrapassado pelo reino da luz; não pelo castigo, mas pela doçura; não se opondo ao Mal, mas misturando-se a ele, a fim de redimir o Mal enquanto tal. A morte 83

84 acontece em dose dupla a de Hermógenes o pactário e, por extensão, o demônio e Diadorim que sente um só sentimento por vez, que é capaz de ódio, mas também de extrema doçura e tem marcas duplas, ao mesmo tempo de deus (di) e do diabo (diá) cf. Sperber 1976 e Sperber A de Hermógenes nome composto de Hermes e genes (poderia ser a unidade da mensagem, ou a mensagem unitária) se acaba em sangue e pó, num homem sem cara, portanto o diabo: Pelejei para recordar as feições dele, e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara. Preto, possuindo a cara nenhuma, feito se eu mesmo antes tivesse esbagaçado aquele oco, a poder de balas... E tudo me deu um enjoo (p. 692). O Hermógenes e a luta contra ele sempre é anunciada pelo diabo e pelo redemoinho: O diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. A luta foi do uno mas não todo contra o duplo, dos opostos que se entrelaçam (di e diá). A morte de Diadorim redime os jagunços e acaba com a jagunçagem, pelo menos do jagunço Riobaldo. Di-diá: Diadorim tem este nome para Riobaldo. Para os jagunços ele é o Reinaldo. Decompondo o nome, sabemos o que é rei, palavra que vem da realeza, mas que pode vir de coisa, res, sendo rei um genitivo ou dativo: da coisa ou para a coisa. Naldo é palavra teutônica que significa o admirável, o corajoso. Corajoso e admirável: cabe em Diadorim. E só esta força e integridade, e em certa medida pureza, feita de virgindade, é capaz de vencer o diabo na forma de Hermógenes. A figura do diabo ocupa Riobaldo por culpa e medo de ser responsabilizado por si mesmo pela morte de Diadorim. Reflete, como propus no começo deste texto, a crítica da Igreja às heresias. Mas as heresias ocuparamse de pensar o Bem, o Mal, o mundo, Deus. E Guimarães Rosa estudou obras e refletiu sobre problemas que têm um viés que ecoa aspectos de diversas heresias. Estes se encontram difusos no imaginário popular rural. De qualquer maneira, Riobaldo está atento ao pecado, às forças do diabo e afirma com segurança que 84

85 não se uniu a ele, porque não foi soberbo. Portanto, mesmo recorrendo a aspectos de heresias, não quer ser um herege. O estigma da heresia foi e é sempre o orgulho. A humildade sempre foi e é o baluarte, a defesa mais segura da fé. Disse Santo Agostinho: "Há diversos caminhos que conduzem ao conhecimento da verdade, o primeiro é o da humildade; humildade é o segundo e o terceiro é ainda a humildade. Eu fiquei crente, porque me pus a crer o que não compreendia" (Sanctus Augustinus Epistola CXVIII, ad Dioscorum, cap. Iii, 22). Riobaldo segue caminho paralelo. Mesmo perseguido pela ameaça do diabo, pelo medo de ter feito o pacto, mesmo pecador, Riobaldo repete que há. Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas... Nessas e noutras muito extremadas coisas eu tornava a pensar, o espírito em meia-mão, por diante permeio os outros meus entretimentos de verdade (p. 825). E repete que não existe aquele que ocupa a sua mente, que o diabo não Voltando ao diabo sob a pele do Mefistófeles goetheano, este diz que Fausto pare. O diabo exige a parada do movimento, que seria a morte. Já Riobaldo entende as coisas de outro modo: Deus está em tudo conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não (439, grifo nosso). É que o diabo roseano é o do redemoinho, aquele de Maniqueu, ou Mani, redemoinho caótico gerador da morte, enquanto que o deus roseano pede a parada que transubstancia. Pois é: caos e cosmos no Grande Sertão. 85

86 BIBLIOGRAFIA < Acessado em: 12 jun DENZINGER, Heinrich, et Adolf Schönmetzer. Enchiridion symbolorum definionum et declarationum de rebus fidei et morum. Freiburg, Basel, Rome, Vienna: Herder, FURTADO DE MENDONÇA, Heitor. Primeira Visitação do Sancto Officio às partes do Brasil. Confissões de Bahia Prefácio de J. Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1935, p. xxxiv. GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, (Biblioteca Luso-Brasileira Série Brasileira). Compulsado na versão online < SPERBER, Suzi Frankl. O tema do pacto no Fausto e em Grande sertão: veredas In: Actas del IX Congreso Latinoamericano de Germanística. (Concepción, Chile enero 1998), Concepción, Chile: Editorial Universidad de Concepción. 08/2000. p A busca da liberdade e as regras de direito em Grande sertão: veredas. Revista Scripta. Literatura. Edição especial do II Seminário Internacional Guimarães Rosa Rotas e roteiros. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC. V. 5, nº 10. Belo Horizonte: CESPUC-Ed. PUC Minas, 1º sem. 2002: Mandala, mandorla: figuração da positividade e esperança. Estudos avançados. vol. 20, nº 58. São Paulo, Cf. Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio nº 857 (464) e 1306 (693). IMAGEM Disponível em: < Acesso em: 26 jul

87 Cego Aderaldo desafiando o Diabo (cordel) 87

88 O Diabo sem Fausto: as mazelas do tentador nos trópicos Carlos Roberto F. Nogueira 88

89 O DIABO SEM FAUSTO: AS MAZELAS DO TENTADOR NOS TRÓPICOS Carlos Roberto F. Nogueira Na caracterização do imaginário mágico religioso do Brasil, o Diabo constitui uma das principais, senão a principal personagem, paradigma na determinação de comportamentos e atitudes mentais. Aqui, no entanto, não estamos buscando a personagem infernal na sua grandeza que o início da Modernidade lhe conferiu, mas entender o seu papel no cotidiano, à margem do discurso da ortodoxia eclesiástica. Em primeiro lugar, levantamos uma série de relatos de suas aparições ou intervenções, para depois esboçarmos um quadro das categorias de intervenção da personagem no imaginário que preside a constituição de nossa cultura popular, dentro de uma perspectiva fundamentalmente histórica. Em princípio, não estabelecemos uma determinação regional, mas utilizamos toda a documentação disponível, por meio da tradição oral e da literatura de cordel, que nos permitisse fixar os referenciais e limites da transposição de categorias mentais europeias ao nosso contexto de crenças, pois, malgrado todas as diferenças regionais, a figura e a atuação do Demônio aparecem como uma construção singular específica de adaptação da personagem às relações socioeconômicas, inscritas no quadro do sistema colonial e em suas determinações posteriores. Para tanto, inserimos o Diabo, dentro de estrutura mais flexível daquela calcada pelo discurso teológico, que nos levaria, erroneamente, à conceituação simplista do Demônio como "entidade maligna". Optamos então por conceituá-lo como a oposição fundamental, dialeticamente relacionada com a moral dominante, ao qual se opõe virtualmente, frequentemente como força de rebeldia. Assim, o Diabo, para aqueles que enfrentam ou são reprimidos pela ortodoxia dominante, representa a possibilidade de contestação sublimada na esfera do imaginário. A entidade maligna, como determinada pela ideologia dominante, perde, dentro desta perspectiva, seu caráter de ameaça, tornando-se o produto de uma 89

90 possível consciência embrionária e reflexo de uma crise existencial que invade o universo imaginário. Neste, o "Mal" nem sempre põe em perigo a sobrevivência individual, mas surge como saída possível. Deste modo, o Diabo em sua caracterização de grande opositor, participa de duas esferas de intervenção nitidamente demarcadas (embora muitas vezes confundidas e assemelhadas pelo discurso do poder). Ou seja, o malefício, no que possui de grande maligno, imagem produzida e cristalizada no Ocidente cristão, e a malícia (a qual numa perspectiva de cultura popular configura-se como a mais importante) fornecendo os meios para burlar e, consequentemente, enfrentar o poder. * * * A compreensão de como se estrutura a figura do Demônio que é trazida pelo colonizador europeu e as mudanças posteriores impressas em suas atuações pelas especificidades de nosso universo mental, remete ao exame de um processo eminentemente histórico: a gênese e a afirmação do Diabo no Ocidente cristão. Criação do Cristianismo, o espírito do mal, assumirá progressivamente maior precisão e detalhamento, tornando-se o repositório de todos os vícios e fonte de todos os erros, que se pretendem extirpar do seio da comunidade cristã. A religiosidade hebraica foi a responsável pela construção do arquétipo do Grande Inimigo. Por meio de sua evolução histórica, traduziu na esfera religiosa todo um processo de expansionismo dos povos da Antiguidade Oriental, levando à assimilação dos deuses dos inimigos, a entidades malignas, uma vez que num contexto de divindades de caráter eminentemente nacional, estes pertenciam a seus povos e atuavam como seus representantes. A esse caráter maligno latente, emprestado à divindade estrangeira, a expulsão do invasor agregará uma condição de inferioridade: a de divindade caída, por conseguinte, o espírito do mal, convivendo ao lado da ortodoxia dominante. Com o advento do Cristianismo, chocam-se as tradições, interpenetrando-se e amoldando-se. O espírito do mal vem estabelecer, em 90

91 definitivo, o confronto permanente entre o Bem e o Mal, vital para a cristalização da figura do Maligno na consciência cristã. Este processo é marcado por três fases distintas, encontrando sua determinação básica na possibilidade e na eficácia prática, por parte da Igreja, de superpor e tentar homogeneizar uma ortodoxia mental sobre a comunidade que preside. A princípio, o Cristianismo assumiu duas tendências: uma pacificadora e outra intransigente, coexistindo, em oposição, por longo tempo. A primeira tendia a aceitar elementos de crenças já incorporadas à cultura clássica e que impregnavam a mentalidade popular, redimensionando-os a uma hagiografia cristã. Ou seja, na busca de se superpor ao universo simbólico da Antiguidade, o Cristianismo entrava em compromissos com as crenças precedentes, assimilando divindades, ritos e festas já institucionalizadas pela tradição e dotando-as de uma nova roupagem que mal ocultava sua origem pagã (MAURY, 1942, p.38). Em oposição, encontramos uma intransigência absoluta, motivada pela propagação das heresias que acompanharam o desenvolvimento do Cristianismo, representativas de um perigo iminente à ortodoxia em vias de definição. Não podendo cancelar da memória as tradições enraizadas do mundo antigo, sob pena de fazer perecer os ritos, as recordações e a fé, que mantinham a organização social das comunidades, o Cristianismo efetuou sua redução à categoria de crenças deformadas e por extensão, o culto aos demônios. "Aquilo que os gentios sacrificam, eles o sacrificam a demônios, e não a Deus, e eu não quero que tenhais comunhão com demônios" (I Cor. 10:20). Assim, do ponto de vista moral, o mundo dividia-se em duas partes claramente definidas, e virtualmente antagônicas: os que cultivavam e suas virtudes (os cristãos), e aqueles que cultivavam o Mal e todos os seus vícios. Os servidores de Deus e os servos do Demônio. Este discurso persistiu enquanto o paganismo teve força social e enquanto se pretendeu convencer povos que não conheciam ou resistiam ao Cristianismo e à hegemonia da Igreja. No momento em que, ao nível institucional, a 91

92 cristianização foi absoluta, retendo a autoridade eclesiástica e o poder a seu serviço, o mundo religioso foi rigidamente separado por uma divisão vertical entre crenças superiores e inferiores (estas, por definição, crenças em entidades malignas). Contra os "deuses-demônios", a Igreja medieval travou guerra contínua, pela afirmação de sua multiplicidade e onipresença no mundo, cristalizando com funestas consequências no seio da comunidade cristã, a crença na ação real e contínua do Diabo em todos os instantes da existência humana: o horror diabolicus, o diabo presidindo em tempo integral a vida da comunidade cristã, tornando-se uma personagem concreta e familiar. A partir do século XIII, a reorganização da Igreja, proscreverá as ilusões, afirmando a realidade e a periculosidade das ligações diabólicas, imprimindo nas consciências o pânico e a ameaça da danação eterna. O ilusório é transmutado em possibilidade, e a possibilidade na presença efetiva do agente do Mal. Em outras palavras, o rechaço da conceituação de voos e malefícios como ilusão, abre espaço à crença na atuação, restando apenas a identificação dos intermediários entre o Mal e a cidade dos homens. Contudo, seria necessário esperar por mais de um século, para que uma doutrina dualista frutificasse no seio da cultura erudita: a trágica admissão de um combate entre Deus e o Diabo. Ideia que, mesmo extrapolando a doutrina e o dogma, fornecerá à coletividade os meios para crer, à ortodoxia os meios para reprimir, a ação nefanda, a apostasia suprema: a adoração do Demônio. Assim, a partir do século XIII, assistimos a uma sistematização dogmática das ideias esparsas e contraditórias sobre a figura do Diabo. Esforço sistematizador que acrescenta uma infinita quantidade de subdemônios aos espaços vazios deixados pelos teólogos anteriores, culminando com a autoridade de Tomás de Aquino: "A fé verdadeiramente católica determina que os demônios existem e podem causar dano mediante suas operações". Por intermédio de Aquino e seus sucessores, o folclore anterior se converte em rigorosa e complexa doutrina, na qual Satã preside o mundo em toda sua pompa e majestade. Os Demônios povoam o universo em profusão, cálculos 92

93 são efetuados para estabelecer o seu número exato. Tratados são escritos para auxiliar sacerdotes, médicos e juízes a identificar a presença do inimigo, numa escalada de terror, reforçada substancialmente pelas pregações e sermões litúrgicos baseados na doutrina do poder e onipresença de um Diabo absolutamente hostil e impiedoso, cuja capacidade de malefício contra a humanidade havia crescido enormemente. * * * A criação das ordens mendicantes representam uma resposta às necessidades da situação social da Europa ocidental a partir do século XIII. Os frades significavam algo de novo na vida religiosa da Europa, vivendo em um ambiente que mal existia um século antes: as cidades e as universidades. É neste contexto que surgem as ordens mendicantes, colocando a pregação como tarefa central de seus frades. Para educar as massas, as ordens mendicantes utilizaram abundantemente os meios de edificação coletivos, o sermão e o teatro, associando-os estreitamente um ao outro. Francisco e Domingos descobriram que não lhes bastava alcançarem sozinhos a salvação pessoal e que Jesus lhes designara a missão de espalhar ao mundo sua mensagem pela palavra. Por meio de sua ação, a religião deixa de ser uma questão de ritos e um assunto de clérigos para se tornar a partir do século XIV, uma religião das massas. A religião do povo, que a Igreja acolhe e tenta disciplinar, dava muito mais lugar à noite, ao temor. Veem-se assim ressurgir à luz do dia os demônios que a claridade gótica rechaçara por um momento para os cantos escuros das catedrais. Para livrar as suas ovelhas, os pregadores do século XIV alimentaram incansavelmente a angústia e o horror à morte, à decomposição e à danação. A afirmação da boa religiosidade, por meio desta Pedagogia do Medo, consolidou no discurso teológico uma demonologia sistemática, levando os homens a uma trágica dicotomia ao nível do imaginário, a um drama dualista, do qual não se podiam libertar, não podendo pensar no Bem sem pensar no Mal. O Mal precedia o Bem na pedagogia eclesiástica, sendo este, frequentemente, apenas intuído, 93

94 pela necessária dissipação dos temores do Mal e da danação eterna. Como afirmava São Tomás (AQUINO apud FLORES ARROYUELO, 1976, p. 68): "Seu poder é tão grande que não há na terra nenhuma força com que possa ser comparado. Por meio do Diabo e sua intervenção no mundo, impunha-se um rígido código ético e moral, resultando no transbordamento de suas proposições, submergindo a consciência cristã, justificando-se todos os fatos da vida coletiva pela mediação do Maligno. A modernidade europeia é o momento do "triunfo de Satã". Herdando os conceitos e as imagens modeladas pelas consciências medievais, emprestou-lhe uma coerência, um relevo e uma difusão jamais alcançadas. O medo desmesurado e onipresente do Demônio estava associado, na mentalidade popular, à espera do fim do mundo, a virulência de Satã se explicando pela iminência da catástrofe final. A era das reformas constituiu o momento máximo de Satã, objetivado em obras que se multiplicam em diferentes países com incrível luxo de detalhes e explicações, fundamentando ideias e particularidades que o mental coletivo em crise desenvolveu sobre a personalidade, os poderes e os aspectos do Inimigo da humanidade. Nesse momento de desestabilização da ortodoxia, a presença do Diabo era dialeticamente necessária para justificar o árduo e ininterrupto esforço missionário. Ao mesmo tempo, a existência de um Satã todo-poderoso servia de substrato ideológico a toda sorte de medidas repressivas e de violências, tornadas em luta contra o Diabo seus agentes e seus ardis. O Grand Catéchisme de Canisius (DIEFFENBACH apud BROUETTE, 1948, p. 353), obrigatório em diversas regiões, nomeia setenta e sete vezes o nome de Satã, e o de Cristo sessenta e três, evidência de que o Demônio não é apenas a simbolização do Mal, mas presença e evidência em todos os momentos. A serenidade retraída de Cristo torna o cenário do mundo mais sinistro, instituindo-se, no imediato da experiência, o caos demoníaco. Assim, as lutas religiosas, conferiram ao Diabo o seu estatuto de grandiosidade: o Demônio é o grande rebelde. Em outras palavras, as Reformas 94

95 conferiram-lhe seu direito de existir em toda a sua potência, em toda sua majestade. * * * Procuramos mostrar nesta breve retrospectiva, a necessidade que a ortodoxia oficial possui de uma entidade maligna, que lhe permite determinar comportamentos divergentes e auxiliar a coletividade no reconhecimento e repúdio destes: necessidade fundamental de uma coletividade em busca de soluções mentais às suas angústias existenciais. Os esforços didáticos da Igreja, ao invés de obter a necessária tranquilização e conformação das consciências, dinamizaram a problemática uma vez que, para a psique coletiva, o problema não se resolvia por uma antítese simplista entre o Bem e o Mal, mas sim no processo dialético de elaboração do imaginário coletivo. Originava-se uma relação ambivalente com o Mal, justapondo ao discurso da ortodoxia, permanências e arquétipos que implicam no inevitável distanciamento de crenças e comportamentos. Representando intrinsecamente o Mal para o poder constituído, ao exacerbar as individualidades e dotando os egos de elementos imaginários de superação da existência real, o Demônio, na perspectiva de uma cultura popular, configura para muitos a possibilidade de escape ao controle político social, frequentemente ameaçando a estrutura de poder constituída, ao retrabalhar a ideologia dominante em função de sua própria existência. Nesta perspectiva, o demoníaco constitui fator de equilíbrio mental, tranquilizador de angústias ao nível do imaginário, no qual o irracional desempenha o papel dominante, arrojando os indivíduos a um mundo ilimitado sem barreiras ou valores morais que padronizem o comportamento, inserindo-o no espaço entre a existência e o possível. Assim, abandonando o plano antagônico religião-heresia, nitidamente circunstanciado e diferenciado por uma "religião" estatal, as figuras de Deus e do Demônio situam-se no horizonte mais amplo de uma coletividade, na qual ao lado da contestação ao nível puramente religioso, coexistem permanências e conteúdos simbólicos, que refletem a maior ou menor adequação à ideologia 95

96 dominante. Torna-se o Diabo o tradutor do vivido, enquanto origem de todo o Mal, secular e espiritual, e da possibilidade de viver, enquanto o grande rebelde. Contudo, o Diabo na mentalidade popular brasileira, despiu-se de grande parte de sua grandiosidade e onipotência do seu ascendente europeu. Tornou-se personagem inserida no cotidiano, um tentador medíocre, uma figura risível e, por diversas vezes, um auxílio na necessidade. Deixemos claro que não perdemos a perspectiva que tais representações do Diabo coexistem na cultura popular europeia, particularmente no universo mental ibérico. Caracterização que pode ser entendida como esforço em exorcizar o grande medo que provoca, como figura ameaçadora e onipotente do Anticristo, ameaçando com catástrofe materiais e escatológicas todas as ações e estados do cotidiano da coletividade. O que nos chamou a atenção, nestas indagações preliminares, foi justamente a ausência ou omissão frequente da figura do Arqui-inimigo, em prol de sua tradução mais familiar. Ou seja, sua necessária encarnação na problemática do viver e do pensar a existência do homem comum, a redução do malefício e a exaltação da malícia. O nosso Diabo teme o homem valente, a personagem que encarna a reação simbólica dos dominados frente à violência das oligarquias dominantes: Assim que o diabo ouviu Taes palavras eu dizer Perguntou a outro diabo Aonde vou me esconder? Eu disse - espere um pouquinho Temos muito o que fazer. O diabo estremeceu A meus pés ajoelhou-se Pediu-me dez mil desculpas Depois disso confessou-se Tanto que outro diabo Gritou de fora danou-se! (BARROS, 1977, p. 240) O Diabo perde, em terras brasileiras, muito do seu aspecto aterrador. "Deus é bom, mas o Diabo não é ruim (Cachoeira, 1938, Alta Sorocabana-1941) (GUIMARÃES, 1960, p. 121) ; "O Diabo não é mau e ajuda os seus"; "O Diabo não é tão feio como se pinta" (GUIMARÃES, 1960, p. 96) servindo de referência a comportamentos reais ou imaginários: "Com moleque o Diabo não pode" (Vale do 96

97 Paraíba) (GUIMARÃES, 1960, p. 145) ou no sul de Minas Gerais "Comparado com o Malazarte, o Diabo até que é muito bem comportado". Nosso Satanás é um agente do Mal desiludido e que com sua própria atribuição, a malícia, pode ser facilmente enganado, singularmente até pela mulher, sua presa preferencial: "como o Diabo que entra na cozinha para levar a mulher para o inferno, e esta faz com ele um trato: que só iria se lhe trouxesse água do rio - o Diabo aceitando, recebe uma peneira." (Vale do Paraíba 1941) (GUIMARÃES, 1960, p. 213) ou no folheto de cordel: -Não senhor, satanás disse vá dizer que vá embora. só me chega gente ruim eu ando muito caipora eu já estou com vontade de botar mais da metade dos que tem aqui pra fora! (PACHECO, 1973, p. 3) Acreditamos que três fatores concorrem basicamente para a "mutação tropical" da personagem maligna. Em primeiro lugar, o próprio desenvolvimento da ortodoxia religiosa em Portugal. Nesta, a ação repressiva teve como objeto o grupo "cristão-novo" e, apenas secundariamente a heresia luterana, que pelo seu caráter de divergência, vinha enfrentar e colocar em risco a ortodoxia dominante, abstendo-se o Santo Ofício de medidas repressivas contra o Demônio e seus agentes. Aqui no Brasil, corroborando essa hipótese, as bruxas assumem uma imprecisão conceitual, em oposição ao modelo precisamente determinado e calcado na Europa pelos teólogos cristãos. "As bruxas vêm de Portugal. Vêm em barcos que deixam amarrados no porto" (Cachoeira 1940) (GUIMARÃES, 1960, p. 130). Mutação das crenças em relação aos agentes do Mal, pela mutação do referencial básico, o Mestre do Mal, o Diabo. Aliada a esta imprecisão demonológica, herdada da Metrópole, a grande fusão de culturas, estabelecida pelo processo de colonização, desempenha importante papel na configuração da personagem. A justaposição cultural, tomando por base a cultura dominante, a portuguesa, não aboliu as crenças 97

98 indígenas e africanas, mas reordenou-as formando um vasto quadro sincrético, em que se interpolam e se interpenetram crenças das mais variadas origens. Crenças, em grande parte, responsáveis pela perda dos atributos demoníacos essenciais à sua caracterização europeia. "O Diabo não pode adivinhar os pensamentos da gente" (Sul de Minas) (GUIMARÃES, 1960, p. 133). O Demônio era figura ausente entre os indígenas, do mesmo modo que os cultos africanos, que não possuem entidade configuradora de uma oposição formal entre o Bem e o Mal. Em contato com estas crenças, o Diabo europeu se amesquinhou. Embora temido, pois de sua afirmação se encarrega a ortodoxia dominante, tem que concorrer com centenas de aparições, assombrações e visagens que, por sua origem no interior do setor dominado e mais numeroso, tocam mais de perto a população, desviando sua atenção da grande personagem maligna. O terceiro fator encontra resposta na ação da Igreja no Brasil, que buscou se condicionar ao meio no esforço da catequese. Nem sempre conseguindo impor uma norma de conduta, as autoridades religiosas, inspiradas na complacência recomendada pelas autoridades papais, para garantir o povoamento do Novo Mundo, contemporizaram com o pecado, enfraquecendo, por conseguinte, as atribuições do grande tentador. Como bem se exprimiu D. Pero Fernandes Sardinha, de infausta memória: "[...] nos princípios muitas coisas se hão de dissimular que castigar, maiormente em terra nova como esta" (MALHEIRO DIAS, 1923, p. 304). * * * Desta maneira, o Diabo teológico, que assume ao final da Idade Média, uma grandiosidade e uma publicidade jamais vistas, tem como principal característica no Novo Mundo a exterioridade. Aqui Satã é um estranho, aqui as crenças misturam-se, interpenetram-se, formando uma argamassa cultural, na qual já não se reconhecem mais as personagens pelo nome que lhes é emprestado. Ou seja, na América, não haverá um espaço no universo mental da coletividade para a construção e afirmação de um discurso demonológico, 98

99 permanecendo o Demônio com o estigma da alteridade, da sua feição estranha, porquanto estrangeira. A travessia do oceano com todos os seus perigos, fantásticos ou extremamente reais, era para um imaginário ainda fortemente medieval a própria peregrinação. Era a busca da purificação que a Europa já não mais fornecia. O deserto medieval, convertido em imensa solidão salgada, trazia consigo os padecimentos físicos e a tortura mental, que purificavam o "romeiro" dos seus pecados e impunham um vade retro! às maquinações de Satanás. Aqui, o Diabo era outro, como se a penitência representada pela vida da Colônia purgasse o universo mágico de seu caráter demonolátrico. Se o purgatório medieval era o locus apropriado para a purgação dos envolvidos em tentações demoníacas (LE GOFF, 1981, p ), no "purgatório dos brancos" de Antonil percebia-se, talvez em uma semiconsciência, talvez no limiar da consciência, que assim como os males reais provinham da Metrópole, assim também os imaginários e o suprassumo da maldade e da perversão, o Diabo, era uma personagem europeia, e, acima de tudo, um terror advindo da tirania, secular ou eclesiástica, imposta de além-mar. O mundo ibérico assim o entende. Observe-se o curioso relato apresentado em sua Historia de la Muy Noble y Muy Leal Provincia de Guipúzcoa pelo doctor Martínez de Isasti: Em Rentería, na província de Guipúzcoa, uma "doncella vieja" (sic), e muito perseguida pelo Inimigo, que na figura de um coelho subia em sua cama lhe tirava a fala e a atormentava. Em seu auxílio acudiram dois valentes marinheiros, que deitando-se com seus vestidos na cama junto com a donzela, lograram espantar o demônio. Entretanto, deixando de perseguir a donzela, o demônio passou a perseguir um dos marinheiros e o fatigou por várias noites, até que por puro aborrecimento, o mesmo partiu dali para as Índias e se soube que o diabo nunca mais o importunou! (MARTINEZ DE ISASTI, 1850, p. 145). Mesmo um sacerdote como o doctor Martínez de Isasti, embriagado pelas leituras do Malleus Maleficarum, Martín del Rio, e outros tantos "dignos de inteira credibilidade" e que, portanto, tinha uma fé absoluta no imenso poder do demônio, 99

100 não acreditava que o Diabo estendesse a sua influência até as Índias, autenticando a condição estrangeira das crenças demonológicas e a consequente barreira intransponível representada pelo oceano. Dificuldade na Metrópole, impossibilidade na Colônia. A sua metamorfose americana relaciona-se a uma "resistência cultural" que permanece encoberta e subterrânea durante o período colonial. Após diminuir a pressão da evangelização quando o território encontra-se "evangelizado" é que surgem as inúmeras facetas do diabo americano, um diabo teológico abastardado e sem as características fundamentais do Inimigo. Assim, o Grande Rebelde, o Arqui-inimigo do homem que preenche em terras europeias a função de atar os homens a padrões de comportamento supradeterminados, reprimindo os impulsos de liberdade, por sua vinculação explícita ao Mal, dissolve-se em personagem familiar que, muitas vezes, reparte com o homem as angústias de sua existência. Chorando com desadouro o diabo disse na hora se sei que sou caipora tinha poupado o meu couro arranjei grande tesouro levei no fim uma pisa e fiquei de bolsa lisa insatisfeito na lida trabalhei tanto na vida e não fiz uma camisa (apud FAUSTO NETO, 1979, p ). Essa nos parece ser sua principal função em nosso mental coletivo: refletir sentidos, comportamentos e insatisfações oriundos da necessidade de sobrevivência. "Barriga de pobre, caldeirão do inferno (GUIMARÃES, 1960, p. 99). Encarnando a base do sistema de exploração, o diabo é negro, traduzindo na conceituação pejorativa, o envilecimento da mão de obra, da condição de escravo: Riachão disse consigo: este negro é um danado este saiu do inferno pelo demônio mandado e para enganar-me veio em um negro transformado! (ATHAYDE, 1978, p. 7). 100

101 Reza a tradição colonial, que o Diabo tentando imitar a Deus quis fazer um "homem melhor" à sua imagem e semelhança, mas como tinha as mãos ardentes chamuscou o boneco de barro que ficou preto e de cabelo encarapinhado. Muito aborrecido com o insucesso de seu projeto, deu-lhe um soco no nariz e o esborrachou. Por isto, explica a tradição que o homem branco é "bem feito" e o negro tem o nariz chato e carapinha, além, naturalmente, de sua cor (GUIMARÃES, 1960, p. 56). Produto direto de um sistema patriarcal em que a dominação masculina é exclusiva e absoluta, surge o nosso Diabo como paradigma para a desvalorização da figura da mulher. "Burro estrela e mulher treteira o Diabo queira" (GUIMARÃES, 1960, p. 93); "O que o Diabo não fizer, fá-lo a mulher" (GUIMARÃES, 1960, p. 96). Ao Diabo e a mulher nunca falta o que fazer", ditos correntes que encontram o seu correspondente no folheto de cordel: Porém ela tinha muitos por ser bonita demais pois toda moça bonita sempre tem muito cartaz para conquistar, fazendo os gostos de Satanás (LEITE, s.d., p. 3). Ao contexto desta dominação, alia-se a imposição ortodoxa, a religião associada ao poder econômico, fazendo brotar a reação popular, que na irreverência, incorpora a ação do clero à ação demoníaca. Porque aqui teve um frade Que o rei damnou-se com elle, Ageitou o rei do inferno, O rei confiou-se nelle O frade fugiu de noite E carregou a mãe delle... (BARROS, 1977, p. 237). "A cruz nos peitos, o Diabo nos feitos" (GUIMARÃES, 1960, p. 92), "às vezes atrás da cruz está o Diabo escondido" (GUIMARÃES, 1960, p. 92) ou, unindo o anticlericalismo embrionário ao chauvinismo imposto pela dominação: "O frade e a mulher, duas garras do Diabo" (GUIMARÃES, 1960, p. 95). 101

102 Assim, também, as frustrações eróticas, as angústias de um amor delimitador por imposições ortodoxas e econômicas, descarregam-se no demônio tentador e moralizador, na medida em que patrocinador lato sensu, do obsceno e, ao mesmo tempo seu agente de moralização, encontrando na mulher o seu grande alvo e, nesta, a gênese do pecado: e em seguida a pune: O Satanás vive solto dando palpite a quem dansa faz a moça se arrear e encostar pança com pança esse é seu objetivo o sujeito sendo "vivo" só dansa com moça mansa. [...] Satanás vive também metido na gafieira atiçando moça quente e mulher casada galheira, que sempre vive dansando e os homens lhe abraçando que ela queira ou não queira (LEITE, s.d., p. 3-5). Viu mulher de cabaré mostrando as côxas de fora o sultien e biquine chorando sem ter demora dando dentada nas outras lamentando toda hora. Viu ladrão e cachaceiro velhaco e viúva quente viu a mãe dele sentada amarrada de corrente chupando brasas de fogo e chorando amargosamente. [...] Viu como lá é tratada mulher que chifra o marido bebendo azeite quente chumbo e ferro derretido numa fornalha de fogo soltando o maior bramido (LEITE, s.d., p. 7). Resgata com esta atuação a moral de uma sociedade de prevalência masculina, padronizando o comportamento esperado do sexo dominado, 102

103 mostrando as consequências da violação do código imposto. "A mulher que dá no homem, na terra do demo morre". (GUIMARÃES, 1960, p. 92). Figura explícita de rebeldia, o Diabo vem exprimir, no universo imaginário, as tensões sociais e as revoltas reprimidas mantidas em estado latente. Tensões que se agravam, na desintegração das relações paternalistas, em direção ao predomínio de uma exploração tipicamente capitalista, provocando, no universo imaginário, reações simbólicas de ultrapassagem da consciência embrionária opressor-oprimido. Assim, o folheto de cordel coloca no inferno: Comerciante que rouba no metro, litro ou balança está dentro da masmorra transpassando numa lança trincando o dente e chorando sem do céu ter esperança (CRISTO REI, s.d., p. 6). Símbolo de uma existência oprimida, o Diabo desvela as reais questões que brotam das relações sociais de dominação e que motivam as dificuldades de subsistência. Aqui, o trabalho incessante não resulta, o dominado em uma punição ideológica, identificando-se a Satanás: Dizem que o Satanás botou um grande roçado e danou-se a trabalhar que ficou todo suado quase morria de fome e não tirou resultado [...] Satanás aproveitava as chuvas e os serenos trabalhava sem parar e adubava os terrenos trabalhava muito mais e lucrava muito menos (FAUSTO NETO, 1979, p. 1-2). No limite da miséria do cotidiano, o Diabo é o único que resta, última companhia de uma vida de muitos sacrifícios e poucos resultados: "Morre o boi e a vaca, fica o Demo em casa" (GUIMARÃES, 1960, p. 94). Enfim, surge o Satanás como defensor, figura moralizadora, farto da presença da exploração das camadas produtoras, e que se insurge contra o 103

104 aparelho de Estado constituído, apontando ao juiz supremo os verdadeiros responsáveis: Agora em 75 dizem que o Satanás está ficando demais e foi falar com Jesus Rei dos reis e Pai dos pais [...] Eu só queria levar padre e juiz de direito pastor, cabo e comissário delegado e prefeito candidato vigarista eu quero levar de eito (LEITE b, s.d., p. 1-3). É o Diabo em sua caracterização tropical, distante do arquétipo europeu, do Grande Tentador da teologia cristã, misto de justiceiro e velhaco, de tentador e poltrão, que faz às vezes de santo (expressão simbólica de um imaginário tumultuado pela angústia da existência) para uma coletividade que espera, com uma esperança que a miséria do viver constantemente nega, a chegada do reino dos céus. REFERÊNCIAS AS COMPANHEIRAS de Satã: o processo de diabolização da mulher. Espacio, tiempo y forma: revista de la Facultad de Geografía e História, IV (4), Madrid: UNED, p (Artigo revisto e aumentado). ATHAYDE, João Martins de. Peleja de Manoel Riachão com o Diabo. Juazeiro: BARROS, Leandro Gomes de. Antologia. João Pessoa: t. III, v. 2. BROUETTE, Émile. La civilisation chrétienne du XVI e siècle devant le problème satanique. In: BOUWER, Desclée de (Dir.). Satan. Paris, 1948, p (Études Carmélitaines). CRISTO REI, João de. Exemplo de um rapaz que morreu e tornou. s.l.: s. d. FAUSTO NETO, Antonio. Cordel e a ideologia da punição. Petrópolis, GUIMARÃES, Ruth. Os filhos do mêdo. Rio de Janeiro:

105 J. FLORES ARROYUELO, Francisco. El Diablo y los Españoles. Murcia: Universidad de Murcia LE GOFF, Jacques. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, LEITE, José Costa. A moça que dançou com Satanaz no Inferno. Condado: s. d... O Satanaz reclamando a corrupção de hoje em dia. Condado: s.d. [b]. MALHEIRO DIAS, Carlos. História da colonização portuguesa no Brasil. Porto: Litografia Nacional t. III. MARTINEZ DE ISASTI, Lope. Compendio historial de la Muy Noble y Muy Leal Provincia de Guipúzcoa (1625). San Sebastián, (s.c.p.): MAURY, Alfred. La magie et l astrologie. Paris: Éditions SGPP 1970, p e NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. Bauru: Edusc, PACHECO, José. A chegada de Lampeão no Inferno. Juazeiro: RUSSEL, Jeffrey Burton. Lucifer: the Devil in the Middle Ages. London: Cornell Paperbacks SEPILLI, Anita. O diabo na literatura e na arte. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, 8 (85): 7-122, SUMMERS, Montague, rev. The history of witchcraft and demonology. London: Routledge & Kegan Paul IMAGEM Disponível em: < Acesso em: 26 jul

106 Lúcifer em A Divina Comédia 106

107 Lúcifer: Lo mperador del Doloroso Regno confinado na Divina Comédia Maria Teresa Arrigoni 107

108 LÚCIFER: LO MPERADOR DEL DOLOROSO REGNO CONFINADO NA DIVIDA COMÉDIA Maria Teresa Arrigoni... e con paura il metto in metro, [...] Io non mori e non rimasi vivo. Do demo? Não gloso. O amor é tudo, o diabo quer chamego. (Luli) Há muito na literatura está presente um personagem, por vezes secundário, por vezes protagonista. Em alguns contos e romances, ele é uma verdadeira ausência mencionada, um banido sempr presente. Não é novidade essa sua presença, nem são recentes os estudos que buscam abarcar sua essência literária. Como afirma Cousté, foram de Dante e de Milton as duas descrições que mais deram nobreza ao Diabo, que mais o levaram a sério e o resumo de ambas nos dá essa mescla de sedução e pavor, de infinita graça e infinita tristeza, que corresponde à imagem interior do Diabo que todos nós possuímos (COUSTÉ, 1996, p. 31). O objetivo deste artigo é repercorrer com Dante o final de seu caminhar pelo inferno e rever sua visão verso a verso, rima a rima, reencontrando Lúcifer em sua presença explicitamente vista e descrita na Divina Comédia. No último canto do inferno, Dante e Virgílio encontram-se no lago gelado de Cócito, (o quarto dos rios infernais) quando o viajante distingue algo que o faz pensar em um enorme moinho com pás gigantescas movidas pelo vento. Assim, num primeiro momento, aquele vento que é nas entrelinhas tão gélido quanto infernal é o que faz Dante literalmente proteger-se atrás de Virgílio, pois não havia qualquer local protegido. Eis os versos: Come quando uma grossa nebbia spira, o quando l emisperio nostro annotta, par di lungi un molin che l vento gira, 108

109 veder mi parve un tal dificio allotta; poi per lo vento mi ristrinsi retro al duca mio, ché non lí era altra grotta (Inf., XXXIV, 4-9). 49 Como já havia acontecido no episódio dos gigantes, e no momento em que Dante atravessa o reino das trevas, as figuras vão se tornando mais nítidas somente quando delas os poetas se aproximam. Assim, quando julga estarem suficientemente próximos, Virgílio sai da frente de Dante para mostrar-lhe a criatura que foi de todas a mais bela (la creatura ch ebbe il bel sembiante v. 18). À sua frente está, pois, Lúcifer, que Virgílio nomeia Dite, retomando o nome pagão do rei dos infernos Ecco Dite já utilizado por Dante seja para referir-se a Lúcifer, seja para referir-se à cidade infernal, passadas as muralhas. Mais adiante será nomeado Belzebu, o que me faz provocar uma pausa para refletir sobre a questão da grande variedade de apelativos que o Diabo já colecionou e coleciona ainda hoje. A pausa serve, sem dúvida, para repensar as palavras de Cousté, que esclarece a nomenclatura diabólica advertindo: Não esqueçamos que Belzebu (Senhor das Moscas) é um de seus mais famosos nomes. (p. 29), complementando o que já havia afirmado: Dos muitos nomes que se lhe atribuem, dois são sem dúvida mais internacionais: Diabo (de origem grega e que significa acusador, caluniador) e Satã (de tradição hebréia, que equivale a inimigo, adversário). [...] Demônio, que também é bastante divulgado, possui uma origem que alude à pluralidade (os daimones ou acompanhantes etéreos dos gregos) e é quase sempre empregado nessa acepção (COUSTÉ, 1996, p. 12). Aparentemente, podemos continuar nos referindo ao Demônio utilizando alguns de seus nomes, como afirma Messadié: Com efeito, a obra que Jesus leva por diante ao longo de todo o seu ministério público é a de ligar Satanás, Belzebu, Azaliel, ou qualquer que seja o seu nome. Ele não pára de livrar as pessoas de demônios servidores de Satanás (MESSADIÉ, 2001, p , grifo nosso). 49 Para a citação dos versos dantescos em português, utilizo a tradução de Cristiano Martins, citada nas referências. E como ao turbilhão que no alto expira,/ ou pelo anoitecer na escuridão,/ um moinho se vê que em fúria gira/ foi, de repente, a minha sensação;/ por detrás do meu guia, ante a violência/ do vento, procurei mais proteção (1976, p. 315). 109

110 Mas essa nossa pausa não deixa de ser também uma desculpa para voarmos até o Grande Sertão e ouvirmos aquele nosso incansável narrador nomeando o Dito:... O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba- Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-seri, o Sem-Gracejos... (ROSA, 1978, p. 33). Coragem incita Virgílio a seu pupilo, e eis que o imperador do doloroso reino ora direis, qual imperador? Mas deixemos esta questão pairando no ar ou presa no gelo tal-qualmente está esse Lúcifer que Dante vê e tão bem descreve, aparecendo-lhe com a metade do peito para fora do gelo. Desse Diabo temido vemos pelo olhar de Dante somente a parte de cima. Lo mperador del doloroso regno da mezzo l petto uscia fuor de la ghiaccia; (Inf., XXXIV, 28-29) 50 E aqui a descrição se fixa no tamanho do ser gigantesco que o poeta vê: tão gigantesco, e piú con un gigante io mi convegno/ che i giganti non fan con le sue braccia (30-31) que ele mesmo, Dante, acha mais fácil ser comparado em estatura a um gigante, do que querer comparar um gigante a Lúcifer, pois o gigante chegaria no máximo a medir tanto quanto os braços de Lúcifer. Essa avaliação vem da recente experiência do viajante que, pouco antes de penetrar no 9 o círculo do inferno, havia podido mensurar por si mesmo um gigante, pois Anteo o levou em sua mão para que superasse o abismo conhecido como o poço dos gigantes (Inf., canto XXXI). Mas, diante da provocação, como afirma Sermonti, podemos calcular a altura de Lúcifer; Se Dante, che alto non era per un epoca di modeste stature come la sua (facciamo, un metro e 55), misura come sappiamo 1/18 d un gigante (28 metri circa), e che un braccio è lungo circa un terzo del corpo, a conti fatti, il tutto di Satana [(28x18) x 3] 50 O imperador do reino causticante/ tinha, do gelo, sobrealçado o peito; (MARTINS, 1976, p. 316). 110

111 dovrebbe, a occhio superare il chilometro e mezzo (SERMONTI: 2003, p. 625). 51 Além da precisão descritiva e da linguagem do poema dantesco, está aí, a meu ver, uma característica do saber medieval, enciclopedista avant lettre: a de pretender tudo medir, comparar, catalogar, hierarquizar. E nesse sentido de enciclopédico deslocado no tempo, quero lembrar o próprio Tesoretto de Brunetto Latini, mestre de Dante (que o encontra no inferno, punido no círculo dos violentos contra a natureza) para ficar somente no âmbito da literatura italiana pré-dantesca. Já no Livro da Escada de Maomé, muitas são as referências ao tamanho dos anjos ou às distâncias percorridas: Os anjos que regem o céu onde se encontra o trono mencionado têm uma altura igual a duzentos e setenta e três mil anos de caminho. Seus pés têm o tamanho de sete mil anos de caminho. [...] e são tão altos que com os pés atravessam todos os céus e as terra até o vento que está embaixo dela, por um espaço igual a quinhentos anos de caminho (SACCONE: 1999, p ). 52 Por sinal, nessa obra fruto de várias compilações a partir de uma narrativa popular, narra-se que na sétima das terras infernais encontra-se o reino do demônio, com seu séquito e sua gente: Mas na verdade ele está amarrado. De fato, no mesmo instante em que ele desobedeceu a Deus, os anjos bons expulsaram do céu ele e os seus; e depois o pegaram e o prenderam com correntes de ferro, uma mão na frente e outra atrás; e da mesma forma os pés. E nesse estado ele está preso na sétima terra (SACCONE, p. 98). Continuando nossa aproximação, pari passu com o poeta, sem poder, no entanto, competir com a sinteticidade dantesca, temos três questões complexas e controvertidas no âmbito da teologia, e por que não, da demonologia, que poeticamente se esclarecem e se fixam em poucos versos. S el fu sí bel com elli è ora brutto, e contra l suo fattore alzò le ciglia, 51 Tradução minha. Se Dante que não era alto para uma época de estaturas modestas como foi a sua (digamos 1 m e 55 cm), mede, como sabemos, 1/18 de um gigante (cerca de 28 metros), e que um braço tem o comprimento de cerca 1/3 do corpo, fazendo as contas: [(28 x 18) x 3], o tamanho total de Satanás deveria, a olho, superar o quilômetro e meio. 52 Tradução minha. 111

112 ben dee da lui procedere ogne lutto (Inf., XXXIV, 34-36). 53 A primeira delas diz respeito ao aspecto físico: a feiúra de Lúcifer apresenta-se tão horripilante que faz pensar quão imensa era sua beleza e sua luz antes da queda ; fica assim imaginada a beleza celestial do anjo, proporcional àquela feiúra real que o viajante descreve. A segunda questão estabelece que ele se rebelou contra seu criador, resolvendo assim a dúvida em torno do porquê da queda luciferina, e a terceira coloca, sem deixar margem à dúvida, Lúcifer como o responsável pelo mal, pois é dele que decorrem os males que invadem e afligem o mundo. Simples assim. Assim os versos da Divina Comédia tocam temas quentes e atualíssimos para o momento em que foram escritos e para nós leitores do século XXI, que ainda hoje os discutimos, queremos rever, recolocar em xeque. Claro que essa viagem ficcional não pretende entrar nas polêmicas acerca da responsabilidade da criação do mal, mas isso está em consonância, quero crer, com as teses de Santo Agostinho ao estabelecer o mal como a ausência do bem, ou uma errônea interpretação ou vivência do bem. Voltando ao texto, se a feiúra de Lúcifer não causou afinal tanta surpresa, a surpresa ficou por conta de suas três caras, que Dante assim descreve: a da frente era vermelha e as outras duas, que apareciam dos lados por sobre a linha média dos ombros e (como precisa ainda, se juntavam no lugar em que estaria a crista nos bichos) se apresentavam dessa forma: a da direita era nem amarela nem branca, mas de uma cor intermediária, enquanto que a da esquerda era negra. Esta última não está definida, na verdade, simplesmente pela cor, mas é apresentada por meio de um símile, de uma comparação, sendo comparada à cor dos habitantes de uma determinada região do Nilo, que os comentaristas relacionam ao povo etíope (QUAGLIO, 1998, p. 376): Oh quanto parve a me gran maraviglia quand io vidi tre facce a la sua testa! L una dinanzi, e quella era vermiglia; 53 Se foi tão belo quanto agora é hirsuto,/ e se contra o Criador se ergueu, furente,/ é natural que engendre a dor, o luto (MARTINS, 1976, p. 316). 112

113 l altr eran due, che s aggiugnieno a questa sovresso l mezzo di ciascuna spalla, e sé giugnieno al loco de la cresta: e la destra parea tra bianca e gialla; la sinistra a vedere era tal, quali vegnon di là onde l Nilo s avvalla (Inf., XXXIV, 37-45). 54 Aqui há que se fazer uma digressão e voltar aos relatos dos ermitões do deserto antes de voltar aos versos dantescos, pois nos relatos dos anacoretas encontram-se várias referências ao demônio nas vestes de um negro: O anacoreta João de Lycus, segundo conta Cassiano, autor do século V, era visitado pelo demônio Zabulus, um negro aleijado e repulsivo, mas de qualquer modo com o aspecto de um homem (COUSTÉ, 1996, p. 33). E, ainda, em uma das crônicas que referem passagens da vida do anacoreta Heráclito é mencionado um irmão que foi em busca de ajuda, por ter encontrado em sua esteira um etíope que rangia os dentes contra ele e do ancião ter recebido a resposta: Isso aconteceu porque você não seguiu minhas palavras (MORTARI, 2005, p ). 55 Voltando às caras de Lúcifer, novamente o número três se repete, como já aconteceu em muitos momentos ao longo do caminho infernal antes de chegarmos à região mais profunda: três feras, três cabeças, três divisões de círculos, três pecadores sodomitas, entre outros. Na interpretação mais consignada, as três caras de Lúcifer, e não três cabeças, como referem alguns comentários (e algumas ilustrações) seriam uma representação do oposto da Trindade, em seu dogma do Deus Uno e Trino. Dessa forma, a cara vermelha faria o contraponto ao amor, ao Espírito Santo, sendo a representação do ódio; a cara branco-amarelada se oporia à sabedoria, ao Filho, representando a ignorância e, por fim, a cara negra estaria em oposição à potência divina, ao Pai, e seria a representação da impotência. Desse modo, ódio, ignorância e impotência seriam o três-em-um, as faces diabólicas daquele amor, sabedoria e potência divinos personificados na Trindade cristã. 54 Com que inaudito espanto, de repente,/ divisei-lhe à cabeça desdobrada/ três faces: uma rubra, mais à frente,/ e as outras duas, cada uma plantada/ no mesmo tronco, e juntas aflorando/ ao ápice da fronte alcandorada./ A da direita era ocre, ao branco orçando,/ mas a da esquerda aquela cor possuía/ que no alto Nilo os rostos vão mostrando (MARTINS, 1976, p. 317). 55 Tradução minha. 113

114 Tal leitura remete também a outra questão, sem entrar no mérito das intermináveis discussões que suscita: a criação do próprio locus inferi, resolvida na Divina Comédia pela inscrição na porta do inferno, que a meu ver acaba quase por falar, na qualidade de personagem petrificado, as frases de apresentação e reconhecimento que aparecem gravadas sobre seu umbral. Quem criou, pois, o inferno, que em eterno dura? Fez-me, diz a legenda, la divina potestate, la somma sapïenza e l primo amore (Inferno: III, 5-6). E Pasquini comenta a respeito dessa trilogia: la Trinità nelle sue tre persone (designate mediante gli attributi teologici, il Padre come Potenza, il Figlio come Sapienza e lo Spirito Santo come Amore o Carità) (PASQUINI, 1998, p. 42). 56 Sem se manter estritamente no âmbito dessa interpretação, Papini sugere que o Diabo, por querer imitar o seu criador, tem em si três pessoas: o rebelde, o tentador e o colaborador: uma verdadeira trindade diabólica. E prossegue: E queste tre persone sono il rovescio, com è naturale, di quelle divine: il Padre crea e Satana distrugge; il figlio riscatta e Satana asservisce; lo Spirito illumina e consola mentre Satana ottenebra e tortura (PAPINI, 1954, p. 45). 57 De qualquer modo, essa figura está construída a partir de vários elementos simbólicos que levam ao contraste Deus-Lúcifer, colocando o segundo em oposição negativa ao outro. Lúcifer apresentava ainda seis enormes asas descritas pelo viajante como maiores do que qualquer vela já vista, mas não eram asas de pássaro, e não possuíam penas, eram asas de morcego. E com o movimento daquelas asas imensas surgiam os ventos, em número de três, que eram os responsáveis pelo congelamento do lago Cócito, no qual estavam punidos os traidores. Interessante notar que os comentaristas em geral não se preocupam com esses ventos gerados pelas asas de Lúcifer, mas não posso deixar de pensá-los como elementos importados da narrativa da viagem de Maomé, na qual encontramos a descrição dos ventos infernais. 56 A Trindade nas suas três pessoas (designadas pelos atributos teológicos, o Pai como Potência, o Filho como Sabedoria e o Espírito Santo como Amor ou Caridade). (Tradução livre). 57 E essas três pessoas são o contrário, como é natural, das pessoas divinas, o Pai cria e Satanás destrói, o filho resgata e Satanás sujeita, o Espírito ilumina e consola enquanto Satanás obscurece e tortura (Tradução livre). 114

115 Embaixo dessa terra Deus colocou um vento que em árabe se chama arre alakim, que significa: vento estéril. E tem esse nome porque é duro e cruel e sem piedade alguma, [...] E num lado do castelo há uma porta que leva ao grande inferno. E no outro há outra porta que se abre num vento chamado Azaukaril. Eu perguntei a Gabriel o que havia debaixo dos lugares mencionados. E ele me respondeu que havia ar e trevas (SACCONE,1999, p. 92 e 99). 58 Antes de prosseguir dissecando a imagem desse imperador del doloroso regno, desejo tecer um comentário ao texto de Cousté, em que afirma a respeito do Diabo e de sua aparência: O italiano católico, e por isso mesmo bastante figurativo falanos das três caras do Diabo e de sua cor cambiante, de sua beleza perversa e sensual e, num insinuante achado, de suas seis asas cheias de olhos, que agita constantemente (COUSTÉ, 1996, p. 31, grifo nosso). Acredito ter havido aqui uma imprecisão com relação às asas. Na verdade, lendo e relendo os versos em que Dante descreve Lúcifer, não existe menção a asas cheias de olhos, pois claramente o poeta se refere a asas de morcego e seis olhos, dois em cada uma das caras do Diabo. As asas cheias de olhos remetem aos quatro animais que, no Purgatório (canto XXIX), representam os quatro evangelistas (Freud explica?), e que, por sua vez, remetem à conhecida: homem, leão, boi e águia. Aparecem na cena em que uma procissão alegórica desfila diante dos olhos de Dante, Virgílio e Estácio no Paraíso Terrestre: Ognuno era pennuto di sei ali; le penne piene d occhi; e gli occhi d Argo, se fosser vivi, sarebber cotali (Purgatório, XXIX, 94-96). 59 E são os próprios versos dantescos que remetem à descrição contida no livro do profeta Ezequiel, pois, diante de tantas coisas para ver e contar, o poeta deixa a consulta por conta do leitor: A descriver lor forme piú non spargo rime, lettor; ch altra spesa mi strigne, tanto ch a questa non posso esser largo; 58 Tradução inédita minha e de Giorgia Brazzarola. 59 Cada um tinha seis asas, e espalhados/ nelas múltiplos olhos, que julguei/ iguais aos olhos de Argos, celebrados (MARTINS, 1976, p. 536). 115

116 ma leggi Ezechïel, che li dipigne come li vide da la fredda parte venir con vento e con nume e con igne; (Purg., XXIX, ) 60 Se assumirmos que a simbologia dos olhos nas asas remete à difusão da doutrina e a onisciência daquela doutrina, principalmente com relação ao passado e ao futuro (PASQUINI; QUAGLIO, 1998, p. 393), fica difícil pensarmos a igual simbologia naquele ser que é a representação da ignorância bruta. A meu ver, essas asas de morcego, ou seja, tenebrosas, desprovidas de penas e de leveza, opõem-se tanto às asas de luz do Serafim, quanto às asas cheias de olhos mencionadas por Ezequiel e retomadas por Dante. Observemos: Sotto ciascuna uscivan due grand ali, quanto si convenia a tanto uccello: vele di mar non vid io mai cotali. Non avean penne, ma di vispistrello era lor modo; e quelle svolazzava, sí che tre venti si movean da ello: quindi Cocito tutto s aggelava (Inf., XXXIV, 46-52) 61 As enormes asas de morcego congelam o lago de Cócito, movem-se como enormes velas de navio, e vai tomando corpo assim, o que já havia sido preanunciado nas palavras de Virgílio na abertura do canto Vexilla regis prodeunt inferi, modificando o hino latino de Venâncio Fortunato, com o acréscimo do reino infernal, que faz com que os estandartes do rei se transformem nos estandartes do rei do inferno (PASQUINI; QUAGLIO, 1998, p. 374). Descortinou-se aos nossos olhos quase toda a figura de Lúcifer que, por estar preso no gelo até a cintura, e pela sua estaticidade, com exceção do movimento das asas, dá a impressão de um ser que repete mecanicamente movimentos sobre os quais não tem domínio, eis aqui sua impotência. Dentre suas ações, se excluirmos o bater das asas, talvez a mais pessoal seja o pranto. O pranto que sai de seus seis olhos, e escorre pelos três queixos juntamente com uma baba sanguinolenta: 60 E, destarte, leitor, me pouparei/ de mais os explicar, posto que à frente/ outro tema me atrai, como direi;/ mas lê Ezequiel que exatamente/ os descreveu, vindos do Setentrião,/ por entre o vento e as nuvens, no ar candente (MARTINS, 1976, p. 536). 61 De cada qual abaixo asas havia,/ de módulo e tamanho apropriados; no mar vela maior não se abriria./ Dali todo Cócito enregelava; (MARTINS, 1976, p. 317). 116

117 Con sei occhi piangea, e per tre menti gocciava l pianto e sanguinosa bava. (Inf., XXXIV, 53-54) 62 Segundo Pasquini e Quaglio, o pranto de Lúcifer pode ser definido como gelido e disperato, misto a bava e sangue, che resta indimenticabile testimonianza di una rabbia sinistra e impotente per il meritato castigo (1998, p. 381). Eu não utilizaria o termo desesperado, por ser humano, demasiado humano. Por outro lado, perto dos diabos que invadiram e invadem a terra, as telas e as páginas, o Lúcifer de Dante nos parece uma fera domada e seu choro remete mais à raiva de sua impotência do que ao desespero pela própria situação: sem esperança, já que o estatuto da eternidade rege o inferno. Mas de todas as humilhações, a maior, que por sinal pode até explicar aquelas lágrimas raivosas regadas a baba de sangue infligidas a Lúcifer no poema dantesco, está naquele mastigar nas três bocas os traidores: Judas, na boca da frente, que além de ser mastigado, era também arranhado ao longo das costas, pois estava somente com o dorso e pernas para fora; Bruto, na boca da direita e Cássio, na da esquerda, ambos com a cabeça e braços para fora. Leiamos os versos. Quell anima là sú c ha maggior pena, disse l maestro, è Giuda Scarïotto, che l capo ha dentro e fuor le gambe mena. De li altri due c hanno il capo di sotto, quel che pende dal nero ceffo è Bruto: vedi come si storce, e non fa motto!; e l altro è Cassio, che par sí membruto (Inf., XXXIV, 61-67). 63 São considerados, pois, os piores traidores, e os comentaristas não discordam em apontá-los como os traidores dos dois pilares do Medievo: a Igreja, na figura de Jesus, e o Império, na figura de César. Ora, tão hediondos traidores deveriam estar recebendo um troféu ad meritum do imperador do Mal! Deveriam estar os três no pódio, empatados em primeiro lugar, a não ser que... há que se ler Júlio de Queiroz, mas esta é uma outra história. Agora, o que nos aparece é um 62 dos seis olhos um pranto permanente/ nascia e aos três queixos lhe tombava. (MARTINS, 1976, p. 317). 63 O que vês, sob a pena mais dorida,/ é Judas Iscariotes disse o guia,/ as pernas fora, a face lá metida./ Dos mais, que o rosto mostram na agonia,/ um é Bruto, seguro à boca escura,/ que se contorce à dor, mas silencia./ E Cássio é o outro, de mor estatura (MARTINS, 1976, p. 318). 117

118 gigantesco demônio, obedecendo a ordens superiores e executando um castigo que é o dos pecadores, mas é também o seu próprio castigo. Como constatamos, estar confinado no gelo não é o grande problema do Lúcifer dantesco. Como se isso tudo não bastasse, não temos nenhuma reação de Lúcifer contra Virgílio e Dante que aparentemente invadem o seu salão, contrariamente ao que fizeram os outros demônios encontrados ao longo do caminho. E Lúcifer não somente nada faz, como vai servir de escada para os viajantes no momento de saírem do inferno. Sim, porque Virgílio e Dante descem ao longo de seu peito cheio de pelos e, agarrando-se neles, vão descendo até chegarem quase às pernas de Lúcifer, na altura de um caminho subterrâneo que depois os levaria à praia do purgatório. Como afirma Sermonti: Umiliante giunta di contrapasso: Lucifero, Satana, Dite, Belzebù, insomma lui, il Male in persona, è costretto dalla legge della gravitazione universale a prestar le zampe alla ascesa trafelata del pellegrino e della sua guida, dell uomo e della sua ragione naturale, verso il cielo stellato (630-31). 64 Sem me deter nas explicações de Virgílio, que na verdade reforçam a gênese do inferno a partir da queda de Lúcifer, ocasionando o enorme abismo atravessado por eles, resta-nos olhar essa figura que pede para que ensaiemos novas leituras: é o poderoso senhor do Mal, sem poder algum; é enorme, mas está confinado no gelo, prisioneiro; e sob essa ótica, os humanos estão condenados aos sofrimentos do inferno por terem cometido aquela impropriedade em relação ao bem, errôneas interpretações do bem, sem arrependimento, mas Lúcifer paga um pecado que permanece obscuro: orgulho, inveja, soberba, desobediência, todos eles; não tem ação, nem palavra, enquanto outros demônios menos poderosos chegaram a amedrontar Virgílio e Dante ao longo da descida. Talvez o poeta Dante não pudesse fazer outra coisa, afinal, os tempos não estavam propícios para colocar o Diabo como um autônomo criador do Mal, sob pena de ser enquadrado como tantos em crime de heresia dualista, o mesmo aconteceria se tivesse dado ouvidos a Orígenes, sugerindo que Lúcifer pudesse 64 Tradução minha. Um humilhante acréscimo de contrapasso: Lúcifer, Satanás, Dite, Belzebu, ele, em suma, o Mal em pessoa, é obrigado pela lei da gravidade universal a deixar à disposição suas patas para a subida apressada do peregrino e de seu guia, do homem e de sua razão natural, em direção ao céu estrelado. 118

119 ter, no final dos tempos, uma chance de salvação. De fato, o poeta conseguiu finalmente prender o Diabo para sempre no Inferno, com suas palavras e imagens, seguindo o desenho divino que ele, divino poeta, transmitiu ao mundo. Outros tempos, outros caminhos. Sabemos quanto o Mal faz mais do que rondar nosso século e se materializa em homens, presidentes, mísseis, misérias, epidemias, assassinatos em massa, traições, guerras, ganância. Sabemos? Ou quem sabe, retomando de Gorky as palavras de Stefan Illich: O Diabo não existe, é uma invenção de nossa raça maligna. Os homens o inventaram para justificar suas torpezas [...]. Acredite em mim. Como somos uns trapaceiros, tínhamos necessidade de simular e imaginar algo que fosse pior do que a gente, como o Diabo (Apud COUSTÉ, p. 12, grifo nosso). Ou será como diz Valéry: Dieu c est notre ideal particulier; Satan tout ce qui tend à nous détourner (apud PAPINI, p. 32). 65 Outras afirmações, outras respostas, que nos levam a outras dimensões. Não seria mais simples acreditarmos naquele pobre diabo preso no fundo do inferno dantesco? Na verdade, apesar de todos os nossos saberes, vamos é continuar vagando neste imenso ser tão, com a certeza incerta de que o Tal não existe; pois é não? [...] Pois, não existe! (GUIMARÃES ROSA, 1978, p. 33). Não mesmo? BIBLIOGRAFIA COUSTÉ, Alberto. Biografia do diabo. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, MARTINS, Cristiano. (Tradução, introdução e notas). In: ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia-EDUSP, MESSADIÉ, Gerald. História geral do Diabo Da Antigüidade à Idade Contemporânea. Tradução de Alda Sophie Vinga. Mem Martins: Europa-América, MORTARI, Luciana (Org.). Vita e detti dei padri del deserto. Roma: Città Nuova, PAPINI, Giovanni. Il Diavolo. Firenze: Vallecchi, PASQUINI, Emilio; QUAGLIO, Antonio. (Org. e comentários). In: ALIGHIERI, D. La Divina Commedia, 3 vol. Torino: Petrini, Tradução minha. Deus é nosso ideal particular, Satanás tudo o que tende a nos desencaminhar. 119

120 GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, SACCONE, Carlo (Org. e notas) Il libro della Scala di Maometto. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, (Tradução inédita de Arrigoni M.T. e Brazzarola G.). SERMONTI, Vittorio. L inferno di Dante. Milano: Rizzoli, IMAGEM Disponível em: < Acesso em: 13 abr

121 Lúcifer e a música 121

122 O Diabo é o pai do Rock: a imagética do mal na música estrangeira Pricila Reis Franz 122

123 O DIABO É O PAI DO ROCK: A IMAGÉTICA DO MAL NA MÚSICAESTRANGEIRA Pricila Reis Franz Assim, a luta religiosa conferiu ao Diabo o seu estatuto de grandiosidade: o Demônio é o grande rebelde (NOGUEIRA, 1995, p. 157). A música, por sua evocação ao sentimento, ao sublime, sempre esteve relacionada ao âmbito do sagrado. Os anjos entoam hinos de louvores a Deus; Davi cantava e dançava no Templo. O Coisa-Ruim, 66 eterno macaco, imitador, ou como diz Zeca Baleiro, cover de Deus, não poderia deixar de ter seus seguidores também no âmbito musical. Anterior ao rock, alguns músicos foram associados ao demônio: Paganini 67 e Robert Johnson, 68 por exemplo. Contudo, nenhum movimento musical esteve tão diretamente relacionado ao mundo das trevas como o rock. Com sua origem no contexto pós-guerra, entre 1950 e 1960, tornou-se símbolo da rebeldia juvenil, contestando a moral da sociedade e valorizando os vícios. A associação com o satanismo foi quase imediata. Afinal, no universalismo cristão, a figura do Coxo assume o papel de Pai da Desobediência, remetendo a sua existência a uma perspectiva muito mais ampla: a livre opção de todos, e de cada um dos homens, entre o Bem e o Mal (NOGUEIRA, 1995, p. 71). Dessa forma, segundo Calvani (2003), tudo o que fosse diferente e não se enquadrasse ao cristianismo era visto com desconfiança e associado ao mal: O diabo, em todo caso, sempre foi considerado como o princípio de contestação da ordem, de desarticulação de uma sociedade, de desequilíbrio ou de degradação moral da mesma. A ele foram 66 Alguns dos vários nomes utilizados neste artigo para o Diabo foram criados ou retirados da cultura popular e aproveitados por Guimarães Rosa em sua obra-prima Grande sertão: veredas. 67 Segundo a crença popular (conforme descrito no site acessado em 08 de dezembro de 2006), ele juntara um grupo, matando diversos maridos das mulheres com quem teve casos. Pessoas juravam que viram Satanás guiando sua mão, segurando o arco sob as cordas do violino durante seus espetáculos. Outros diriam que viram assistentes do demônio partindo do teatro de onde Paganini acabara de se apresentar, seguindo de carroça, por uma estrada que sequer existia. 68 Artista de blues da década de 1930 que influenciou direta ou indiretamente todo o cenário do rock. Gravou pouco mais de 20 canções. Robert Johnson dizia ter feito um pacto com o demônio em troca de sua musicalidade e do sucesso, tendo abordado este tema em suas músicas. O filme Crossroads (A Encruzilhada, com Ralph Machio, o garoto de Karatê Kid) aborda superficialmente a história de Robert Johnson, que morreu envenenado por um marido traído. 123

124 atribuídos os vícios alcoolismo, jogos de azar, prazeres do corpo, atividade sexual extra-conjugal, etc. O diabo é a personificação de tudo o que representa a oposição a um padrão tido como divino. A ele estão associadas as imagem de rebeldia, irreverência, ironia, falsidade, dissimulação, etc. Enfim, o diabo cumpre ainda a excelente função de bode-expiatório da sociedade: ele carrega nossos impulsos e é a causa final de nossos desequilíbrios. Não é de espantar que durante o contexto de pós-guerra e guerra fria anos 50 e 60, quando alguns setores jovens do primeiro mundo começam a questionar antigos valores morais e religiosos através do rock and roll, os grupos mais conservadores não hesitaram em qualificar como de inspiração demoníaca tais atos de rebeldia juvenil. O novo gênero musical serviu como luva para os questionamentos de muitos jovens desestruturados socialmente e que encontraram nas guitarras elétricas e baterias suas armas de contestação a um sistema rígido que não oferecia muitas oportunidades de sucesso senão o enquadramento e a submissão à lógica do sistema. E tal como acontecia na Idade Média quando após várias sessões de tortura física, psíquica e religiosa, algumas mulheres e homens "confessavam" ter feito pactos com o ser sinistro, alguns grupos aceitaram a provocação e incorporaram o substantivo "diabo" como fonte de inspiração para toda sua insatisfação social (CALVANI, 2009, s/p). Assim, desde suas raízes, o rock sempre foi associado de uma forma ou de outra ao ocultismo. Mesmo quando não associado diretamente a adoração ao demônio, o rock tem sido frequentemente acusado de incitar a rebeldia contra os costumes e sistemas vigentes, de valorizar o hedonismo, o individualismo, 69 e de despertar sentimentos violentos nos jovens. Valorizar o prazer e o divertimento sempre esteve relacionado ao mal, a vida terrena deve ser de desterro, um vale de lágrimas, para que, com o sofrimento, possa-se merecer o céu eterno. Por isso, durante muito tempo no cristianismo, o riso e o prazer foram relacionados ao satânico e infernal: Por toda parte, o demônio dirige esse triste concerto; os divertimentos não são dons de Deus, mas do diabo (MINOIS, 2003, p. 130). O rock imita o Marrafo, o que significa então, segundo Cousté (1996, p. 282). [...] rebelar-se contra a opressão, recusar-se à submissão entendida como uma fatalidade inamovível, conhecer em vez de repetir, ser consciente do uno entre a multidão, fornicar com alegria, gozar dos 69 Resumo do pensamento do polêmico satanista inglês Aleister Crowley: "Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei" (ANDRADE, 2006). Seu trabalho influenciou composições ao longo da carreira de bandas de rock e escritores. Autoproclamado amante de drogas e sexo, autor de livros sobre o oculto, poeta; líder de um culto chamado Ordo Templis Orientis (OTO), cujas bases ele defendeu num dos seus escritos, Thelema, que afirma lhe ter sido ditado por um espírito chamado Aiwass. 124

125 sentidos, só se arrepender de ter deixado de aproveitar uma experiência, negar os dogmas em benefício da investigação. Com as acusações já existentes, algumas bandas resolveram levar a polêmica adiante, propositalmente ou não. O maior motivo das acusações de satanismo nas duas últimas décadas deve-se ao fato de muitos rockstars terem adotado abertamente uma atitude, ou ao menos uma aparência, demoníaca, como a banda Kiss, em que o baixista Gene Simmons inclusive vomitava sangue, Ozzy Osbourne, conhecido como Príncipe das Trevas chegou a arrancar a cabeça de um morcego a dentadas nos palcos, Alice Cooper, Wasp etc. Outros abordam com certa frequência o tema do oculto, do satanismo, como Rolling Stones, Iron Maiden, Metallica, Venom, Trust, Slayer, Poison, Megadeth, Black Sabbath, AC/DC, Doors (o vocalista Jim Morrison casou-se em um ritual pagão com uma bruxa, e dizia trazer dentro de si o espírito de um feiticeiro índio, um "xamã"), Beatles (John Lennon foi um estudioso do bruxo inglês Aleister Crowley, que inclusive aparece na capa do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band) e Led Zeppelin (acusado de ter temas satanistas escondidos em suas letras gravados de trás para frente; o guitarrista Jimmy Page foi um profundo estudioso do bruxo inglês Aleister Crowley, chegando a comprar a mansão deste), entre muitos outros. As letras das canções de rock possuem então uma ampla ligação com o diabólico, reafirmando seus conceitos, sua rebeldia ao bem, ou descrevendo a própria essência do mal. O presente artigo priorizará essa última categoria, analisando de que forma a figura do Cão é apresentada nas composições. Conforme Northrop Frye (2004, p. 19), em O Código dos Códigos, o objetivo acadêmico é o de ver o que algo significa, e não o de aceitá-lo ou rejeitá-lo. Observamos que há inúmeras músicas relacionadas ao malévolo, sendo uma tarefa exaustiva selecionar apenas algumas para análise. Optamos por destacar aquelas que foram consideradas mais significativas e que demonstravam um aspecto diferente do maligno. Além disso, o campo de pesquisa foi restringido às canções produzidas fora do Brasil, buscando um olhar generalizado produzido por roqueiros do mundo. Dessa maneira, é possível notar que não há apenas uma forma de apresentar o Tisnado nas canções, mas várias formas: desde o anjo de 125

126 Luz decaído, ao bestiário medieval, até a personificação humana, sábia, elegante e melancólica, que pactua com Fausto. 70 Na primeira música analisada, ainda anterior e precursora do rock, de Robert Johnson, observa-se que o mal está relacionado ao desregramento social, à violência: Me And The Devil Blues (Robert Johnson) 1936 Early this morning when you knocked upon my door And I said "Hello Satan I believe it's time to go" Me and the Devil was walking side by side I'm goin' to beat my woman until I get satisfied She say you don't see why that I will dog her 'round It must be that ol' evil spirit so deep down in the ground You may bury my body down by the highway side So my old evil spirit can get a Greyhound bus and ride 71 A transgressão do homem é justificada pela possessão demoníaca, praticamente retirando a culpa do humano e aplicando-a ao velho espírito demoníaco que tomou conta do corpo. A partir do pacto com o demônio, este assume o corpo do homem e passa a apresentar um comportamento doentio para a sociedade, o que está de acordo com Wegner (2003, p. 89): A ação dos demônios [...] restringe-se a provocar doenças, seja de ordem física, seja de ordem psíquica O ANJO DECAÍDO Entre as diversas imagens do Maligno apresentadas nas músicas de rock, encontra-se a do Anjo Decaído, que ainda mantém sua áurea e seus atributos angelicais degradados durante a Idade Média, chegando a bestialização e 70 Todas as letras das canções foram obtidas no site: acessado em 08 de dezembro de Tradução livre - Blues Sobre Eu e o Demônio: Hoje de manhã cedo / quando você bateu na minha porta / E eu disse "Olá, Satan, acho que é hora de ir" / Eu e o demônio andávamos lado a lado / Eu vou bater em minha mulher até ficar satisfeito / Ela diz que não sabe porque isto / Vou tratar ela como um cachorro / Deve ser aquele velho espírito demoníaco / tão enterrado no chão / Você pode enterrar meu cadáver / na beira da estrada / Então meu velho espírito demoníaco pode / pegar um ônibus e dirigir. 126

127 recuperados a partir do Romantismo. A canção Angel of Light, de Mercyful Fate, banda dinamarquesa cujas marcas principais são a utilização de ossos humanos na decoração do palco e o visual satânico do vocalista King Diamond hoje em carreira solo, famoso por dormir em caixão e ser capaz de falar de trás para frente (característica também considerada demoníaca), traz essa caracterização de anjo de luz decaído: Angel Of Light (Mercyful Fate) 1994 I have seen Him there Master of Light, Master of the night Master of all the things that shine Oh I believe... I believe in all that I have seen And I have seen the Angel Of Light I have seen the Angel Of Light... Lucifer I have seen Him there Deep down where the Devils dwell Deep down in the darkest well I will make a second deal with the Prince Of Light Never will break the Oath I gave that night Shine in all your glory, shine your light on me I have seen Him there Deep down where the Devils dwell Deep down in the darkest well 72 Nesta canção observamos Lúcifer com suas características originais, como Mestre da Luz, de todas as coisas que brilham, enfim, o Anjo de Luz. Contudo, sua degradação começa a se fazer presente, visto que agora se encontra nas profundezas, no poço mais profundo. O eu-lírico se propõe a pactuar novamente com o Príncipe da Luz (outro título de Lúcifer), pedindo que sua luz e glória brilhem em seu seguidor. Segundo Cousté, 1996, p ). A idéia de que o Diabo não perdeu seus atributos angélicos não é nova. Ao contrário, a decadência de sua imagem e a necessidade que a cultura teve de atribuir-lhe o papel de protagonista no drama da expiação fizeram simplesmente com que este conceito saísse 72 Tradução livre - Anjo da Luz: Eu O tenho visto lá / Mestre da Luz, / Mestre da Noite / Mestre de todas as coisas que brilham / Oh Eu acredito... / Eu acredito em tudo / o que eu tenho visto / E eu tenho visto o Anjo da Luz / Eu tenho visto o Anjo da Luz... Lúcifer / Eu O tenho visto lá / Nas profundezas onde o demônio reside / Nas profundezas no poço mais escuro / Eu farei um segundo trato com o Príncipe da Luz / Jamais quebrarei o / juramento que fiz nessa noite / Brilhe em toda sua glória, brilhe sua luz em mim / Eu o tenho visto lá / Nas profundezas onde o demônio reside / Nas profundezas no poço mais escuro. 127

128 de moda, mas viera à tona, embora timidamente, no pensamento e na obra daqueles que refletiram sobre o tema.[...] Lúcifer, o portador da luz, é pelo contrário a personificação da Gnose, que livra o homem das cadeias da ignorância e permite-lhe libertar-se da escravidão em que o mantém o criador deste mundo mau (grifo nosso). Não é à toa então que o rock esteja relacionado ao Anjo da Luz, visto que ele seja a personificação da Gnose, livrando o homem da ignorância e de todas as regras estabelecidas pela sociedade vigente. Assim como Lúcifer, os roqueiros desejavam rebelar-se contra o sistema, buscando libertar os jovens da moral e alienação em que viviam, e não há nada [...] que irrite ou desassossegue mais o poder e a Igreja não é uma exceção que o exercício desse atributo da espécie. [...] Na grandiosa, e provavelmente interminável, luta da espécie pela conquista da liberdade, o homem intui que o Diabo é o seu antecessor, seu espelho, talvez mesmo o seu cúmplice. É do interesse da cultura, do poder e da repressão que a morfologia de toda ordem gregária supõe, que essa intuição não se converta numa certeza. Se isso ocorresse, a identificação do homem com o Diabo seria inevitável, e o Grande Rebelde coroaria finalmente a obra de sua incansável paciência: a liberdade do indivíduo para além de qualquer reflexão que a limite; a dissolução das formas no caos (COUSTÉ, 1996, p. 104). Alice Cooper apropria-se também dessa rebeldia e satanismo do rock, inclusive criando uma maquiagem grotesca que servirá de inspiração para grupos como Kiss, Lordi e Marilyn Manson. A composição Prince of Darkness (1987) traz a imagem de Lúcifer como um anjo de luz que cai para as profundezas. A decadência, contudo, faz-se mais forte nessa letra: Prince Of Darkness (Alice Cooper) 1987 An angel fell one stormy night From Heaven's Glory He split the earth to reign in Hell He fears the light He fears the truth He fears what's going to be He spits on life He spits on God He spits up death for you and me Prince of Darkness Studies the world with hungry eyes 128

129 Prince of Darkness Ready to baptize you in lies Heart of evil, soul of blackness Prince of Darkness He saw that man was just a boy With a baby's mind He swore damnation of God's creation He lives for hate He lives for tears He lives up to his name He knew the light He knew the one Who was crucified in pain Prince of Darkness Studies the world with hungry eyes Prince of Darkness Ready to baptize you in lies Heart of evil, soul of blackness Prince of Darkness Prince of Darkness He smells the breath Of sweet human sin And deeply breathes it in Prince of Darkness 73 Nesta canção é possível observar um anjo que teme justamente aquilo do que é feito ( luz ), ligado às imundícies do mundo ( escarra ), instintivo, Pai da Mentira e que olha a criação de Deus (o homem) como uma criança, de mentalidade infantil, marionete dos jogos divinos e diabólicos. O Príncipe das Trevas de Alice Cooper possui uma imagem semelhando ao do Diabo de Milton, o qual, segundo Cousté (1996, p. 31) afirma [...] é um Diabo que nunca deixou de ser Lúcifer a estrela da manhã, o mais belo e perfeito dos anjos e que se consome no espantoso fracasso de sua potestade. Digno, não pode admitir a derrota; derrotado, não pode afastar a melancolia; melancólico, a própria apatia mergulha-o no infinito vazio de seu amor: ali onde a beleza já não conta e lhe é esquiva; exercita-se apenas para a sua taciturna certeza de possuí-la. (1996, p. 31, negrito nosso) 73 Tradução livre - Príncipe das Trevas: Um anjo caiu da glória do céu em uma noite tempestuosa / Ele despreza a Terra para reinar no inferno / Ele teme a luz / Ele teme a verdade / Ele teme aquilo que vai ocorrer / Ele escarra na vida / Ele escarra em Deus / Ele escarra a morte para você e para mim / Príncipe das trevas / que examina o mundo com olhos famintos / Príncipe das trevas / Pronto para batizar você na mentira / Coração do mal, alma da escuridão / Príncipe das trevas. / Ele viu que o homem era apenas uma criança / com mentalidade infantil / Ele jurou danar a criação de Deus / Ele vive para o ódio / Ele vive para as lágrimas / Ele vive para exaltar seu nome / Ele conheceu a luz / Ele conheceu o Um / Que foi crucificado em dores / Príncipe das trevas / que examina o mundo com olhos famintos / Príncipe das trevas / Pronto para batizar você na mentira / Príncipe das trevas / Ele cheira a respiração / do doce pecado humano / profundamente o inala / Príncipe das trevas 129

130 Já com a canção Simpathy For the Devil, 74 de 1968, a Rolling Stones foi a primeira banda de rock a abordar o tema do satanismo em suas letras (tais como Dancing With Mr. D. ) e em títulos de discos, como Their Satanics Majesties Request (Serviço de Sua Majestade Satânica), de Em diversos discos colocaram referências a satanismo ou vudu, como nos álbuns Goats Head Soup (nas gravuras do encarte) e no álbum Voodo Lounge. Além disso, o vocalista Mick Jagger explora sua sexualidade e sedução nos palcos e na mídia, sendo muitas vezes comparado a Fausto. Na música Simpathy For The Devil, o personagem principal é o Galhardo, cantando em primeira pessoa. Tal música teria sido inspirada por Anthony LaVey, o mais influente satanista do século XX, fundador e líder da Igreja de Satan: Simpathy For The Devil (Rolling Stones) 1968 Please allow me to introduce myself I'm a man of wealth and taste I've been around for a long, long year Stole many a man's soul and faith And I was 'round when Jesus Christ Had his moment of doubt and pain Made damn sure that Pilate Washed his hands and sealed his fate Pleased to meet you Hope you guess my name But what's puzzling you Is the nature of my game I stuck around St. Petersberg When I saw it was a time for a change Killed the Czar and his ministers Anastasia screamed in vain I rode a tank held a general's rank When the Blitzkrieg raged And the bodies stank I watched with glee While your kings and queens Fought for ten decades for the Gods they made I shouted out "Who killed the Kennedys?" When after all It was you and me Let me please introduce myself I'm a man of wealth and taste And I laid traps for troubadors Who get killed before they reached Bombay Just as every cop is a criminal 74 Segundo os compositores, é um samba criado após uma visita a um terreiro de Umbanda na Bahia. 130

131 And all the sinners Saints As heads is tails just call me Lucifer 'Cause I'm in need of some restraint So if you meet me have some courtesy Have some sympathy, and some taste Use all your well-learned politesse Or I'll lay your soul to waste Tell me baby, what's my name Tell me honey, baby guess my name Tell me baby, what's my name I tell you one time, you're to blame 75 O Lúcifer nomeado e descrito nesta canção dos Rolling Stones é um ser presente em todos os acontecimentos cruciais da história do homem, principalmente nos momentos mais cruéis, marcados pelas guerras (representadas pela Segunda Guerra Mundial, descrita nos versos I rode a tank held a general's rank / When the Blitzkrieg raged / And the bodies stank) e violência (pelos versos I stuck around St. Petersberg / When I saw it was a time for a change / Killed the Czar and his ministers / Anastasia screamed in vain, que se referem à derrubada do czarismo na Rússia e o nascimento das raízes do comunismo. Anastasia era a filha do último Czar, que teve toda a família morta). Apresenta características humanas (I'm a man of wealth and taste): é irônico, descontrolado, exige que se seja cortês e polido em sua presença, que se tenha bom gosto. É uma imagem maléfica contemporânea, reformulada a partir do Romantismo, em que o Diabo deixa der ser a Besta para se tornar o Mefisto de Fausto, ou seja, um ser com características humanas, possuidor e distribuidor de grande conhecimento e sabedoria. Além disso, Lúcifer nesta canção mostra sua ambiguidade (But what's puzzling you Is the nature of my game), pois apenas o Bem pode ser relacionado ao puro e nítido. 75 Tradução livre Simpatia Pelo Demônio : Por favor deixe que eu me apresente / Eu sou um homem rico e de bom gosto / Eu estou por aí há muitos, muitos anos / Roubei as almas e a fé de muitos homens / E eu estava por perto quando Jesus Cristo / Teve seu momento de dúvida e dor / Fiz com que Pilatos / Lavasse suas mãos e selasse seu destino / Prazer em te conhecer / Espero que saiba o meu nome / Mas o que te confunde é a natureza de meu jogo / Eu apunhalei São Petesburgo / Quando vi que era hora para algumas mudanças / Matei o Czar e os ministros / Anastasia gritou em vão / Eu comandei um tanque, tive uma insígnia de general / Quando a guerra relâmpago explodiu / E os corpos amontoavam-se / Eu observei com alegria / Enquanto seus reis e rainhas / Lutaram por 10 décadas pelos deuses que criaram / Eu gritei "Quem matou os Kennedys?" / Quando depois de tudo era apenas eu e você / Por favor deixe eu me apresentar / Sou um homem rico e de bom gosto / Eu deixei armadilhas para os mercadores / Que morreram antes de chegar a Bombain. / Assim como todo policial é um criminoso / E todos os pecadores santos / Assim como cabeças são caudas, me chame Lúcifer / Pois eu sou um pouco descontrolado / Então se você me encontrar seja cortês / Tenha simpatia e tenha bom gosto / Use toda a sua bem aprendida polidez / Ou vou deixar a sua alma penando / Me diga, baby, qual o meu nome? / Me diga querida, baby, qual o meu nome? / Me diga, baby, qual o meu nome? / Eu vou te dizer uma vez, você é culpada. 131

132 A composição é, enfim, um desabafo de Lúcifer, questionando quem é o verdadeiro culpado da tragédia humana, isto é, o próprio homem mesmo. É possível também estabelecer um paralelo com a canção Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, 76 de Raul Seixas (1978), criada provavelmente sob inspiração da composição dos Rolling Stones, pois ambas trazem essa onisciência e onipresença de Lúcifer nos momentos mais impactantes da humanidade. Calvani (2003) comenta que Uma publicação da época, por exemplo, afirmava que o Espírito Santo revelara que a canção "Eu nasci há dez mil anos atrás" manifestava quem era seu verdadeiro compositor: o próprio diabo que confessava ter sido criado por Deus antes da fundação do mundo e que estivera por trás dos principais acontecimentos da história da humanidade descritos na canção, como a crucificação de Jesus e a segunda guerra mundial. 77 Marilyn Manson também traz uma outra imagem do Sujo, pois o próprio artista apresenta-se como um ser andrógino, hermafrodita, caracteristicamente diabólico. Conforme Cousté (1996, p. 35), Supor o Diabo hermafrodita como de fato o é, na medida em que pode manifestar-se na forma masculina ou feminina não é outra coisa senão render culto à velha nostalgia do andrógino, esse mito auto-suficiente que remonta aos ritos primordiais da humanidade (1996, p. 35). 76 Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada / Com uma cuia de esmola e uma viola na mão / O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas / E cantou essa música, que contava uma história / Que era mais ou menos assim: / Eu nasci há dez mil anos atrás / e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais (2x) / Eu vi cristo ser crucificado / O amor nascer e ser assassinado / Eu vi as bruxas pegando fogo pra pagarem seus pecados, / Eu vi, / Eu vi Moisés cruzar o mar vermelho / Vi Maomé cair na terra de joelhos / Eu vi Pedro negar Cristo por três vezes diante do espelho / Eu vi, / Eu nasci / (eu nasci) / Há dez mil anos atrás / (eu nasci há dez mil anos) / E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais (2x) / Eu vi as velas se acenderem para o Papa / Vi Babilônia ser riscada do mapa / Vi conde Drácula sugando o sangue novo / e se escondendo atrás da capa / Eu vi, / Eu vi a arca de Noé cruzar os mares / Vi Salomão cantar seus salmos pelos ares / Eu vi Zumbi fugir com os negros pra floresta / pro quilombo dos palmares / Eu vi, / Eu nasci / (eu nasci) / Há dez mil anos atrás / (eu nasci há dez mil anos) / E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais (2x) / Eu vi o sangue que corria da montanha / quando Hitler chamou toda a Alemanha / Vi o soldado que sonhava com a amada numa cama de campanha / Eu li, / Eu li os símbolos sagrados de Umbanda / Eu fui criança pra poder dançar ciranda / E, quando todos praguejavam contra o frio, / eu fiz a cama na varanda / Eu nasci / (eu nasci) / Há dez mil anos atrás / (eu nasci há dez mil anos atrás) / E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais / não, não porque / Eu nasci / (eu nasci) / Há dez mil anos atrás / (eu nasci há dez mil anos atrás) / E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais / Não, não / Eu tava junto com os macacos na caverna / Eu bebi vinho com as mulheres na taberna / E quando a pedra despencou da ribanceira / Eu também quebrei e perna / Eu também, / Eu fui testemunha do amor de Rapunzel / Eu vi a estrela de Davi brilhar no céu / E praquele que provar que eu tou mentindo / eu tiro o meu chapéu / (eu nasci) / Eu nasci / (há dez mil anos atrás) / Eu nasci / há dez mil anos atrás / (e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais) 77 < Acessado em 21 fev

133 Na composição Mister Superstar, de 1996, observa-se que Marilyn Manson traz uma versão moderna do Cramulhão, como um ídolo e ícone dos tempos atuais: Mister Superstar (Marilyn Manson) 1996 Hey. Mr. Superstar: "I ll do anything for you" "I m your number one fan" Hey Mr. Porno star, I, I, I, I want you Hey Mr. Sickly star I want to get sick from you Hey Mr. Fallen star Don't you know I worship you? Hey Mr. Big rock star "I wanna grow up just like you" I know that I can turn you on I wish I could just turn you off I never wanted this Hey Mr. Superhate I just want to love you Hey, hey, hey Mr. Superfuck I wanna go down on you Hey mr. SuperGod Will you answer my prayers? Hey, hey, hey Mr. Superman I want to be your little girl Hey Mr. Superstar I ll kill myself for you Hey Mr. Superstar I ll kill you if I can't have you Superstar, superfuck baby Nesta canção, o Temba é apresentado como uma estrela de TV, um astro de rock, um resumo de todos os vícios da atualidade: sexo, suicídio, pornografia, ódio, prazer desenfreado. É o Super-Fausto, o retrato da sociedade atual, que cultua os ídolos da mídia. Manson transforma esses ícones em símbolos do Mal. Outro grupo de rock conhecido por uma suposta ligação com o satanismo, principalmente por causa de seu mascote, The Eddie, que seria um ser maligno, é o Iron Maiden. Várias de suas canções tratam da temática de Satã. Na canção 78 Tradução livre Senhor Superstar : Ei, Sr. Superstar / "Eu farei qualquer coisa por você" / "Sou seu fã número um" / Ei Sr. Estrela Pornô, eu, eu, eu, eu quero você / Ei Sr. Estrela doentia / Eu quero pegar doença de você / Ei Sr. Estrela Caída / Você sabia que eu te idolatro? / Ei Sr. Grande Estrela do Rock / "Eu quero crescer igualzinho a você" / Eu sei que não posso virar você / Eu queria poder simplesmente virar você / Eu nunca quis isso / Ei Sr. Super-Ódio / Eu só quero te amar / Ei, ei, ei, Sr. Super-Foda / Eu quero fuder com você / Ei Sr. Super-Deus / Você responderá minhas orações? / Ei, ei, ei, Sr. Super-Homem / Eu quero ser sua garotinha / Ei, Sr. Superstar / Eu vou me matar por você / Ei, Sr. Superstar / Vou te matar se não puder ter você / Superstar, super-foda, baby

134 The Fallen Angel, de 2000, nota-se a presença de Azazel, 79 um dos primeiros nomes de Satanás na Bíblia, ou seja, prefiguração do Diabo: The Fallen Angel (Iron Maiden) 2000 Azazel is beside you and hes playing the game Demons are inside you and theyre making their play Watching and theyre hiding as they wait for the time For a devil to get ready and take over your mind You and only God would know what could be done You and only God will know I am the only one You and only God would know what could be done You and only God will know I am the chosen one Could it be its the end of our world? All the things that we cherish and love Nothing left but to face this all on my own Cause I am the chosen one Could it be its the end of our world? All the things that we cherish and love Nothing left but to face this all on my own Cause I am the chosen one Beaten fallen angel but Ive risen again And the power is inside me, Ive decided to pray As I wait for armageddon and its coming my way Its an honour to be chosen and I wait for the day 80 Nesta canção, o outrora derrotado anjo caído, aqui descrito como Azazel, dialoga com o ouvinte, afirmando que os demônios estão ao seu redor, que vão possuí-lo, que o Armagedon está próximo, que ele foi escolhido para esse tempo final, para reaparecer de forma gloriosa A LUXÚRIA E PAIXÃO DIABÓLICAS 79 Conforme descrito no Levítico : Deitará sortes sobre os dois bodes, uma para o Senhor, e outra para Azazel. Oferecerá o bode sobre o qual caiu a sorte para o Senhor e oferecê-lo-á em sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte para Azazel, será apresentado vivo ao Senhor, para que se faça a expiação sobre ele, a fim de enviá-lo a Azazel no deserto. (...) Havendo terminado a expiação do santuário, da tenda de reunião e do altar, Aarão trará o bode vivo. Imporá as duas mãos sobre a sua cabeça, e confessará sobre ele todas as iniqüidades dos israelitas, todas as suas desobediências, todos os seus pecados. Pô-los-á sobre a cabeça do bode e o enviará ao deserto pelas mãos de um homem encarregado disso. O bode levará, pois, sobre si, todas as iniqüidades deles para uma terra selvagem. (Lev. 16, 8-10 e p. 160). 80 Tradução livre O Anjo Caído : Azazel está perto de você / E ele está fazendo alguma coisa / Demônios estão dentro de você / E estão fazendo alguma coisa / Eles observam e se escondem / Ao esperarem pela hora certa / Para um diabo se preparar / E possuir sua mente / Você e apenas deus saberiam o que poderia ser feito / Você e apenas deus saberão que eu sou o único / Você e apenas deus saberiam o que poderia ser feito / Você e apenas deus saberão que eu sou o escolhido / Será possível, é o fim do nosso mundo? / Todas as coisas que apreciamos e amamos / Nada mais além de encarar tudo isso por mim mesmo / Porque eu sou o escolhido / Será possível, é o fim do nosso mundo? / Todas as coisas que apreciamos e amamos / Nada mais além de encarar tudo isso por mim mesmo / Porque eu sou o escolhido / Ora um derrotado anjo caído, mas eu reapareci / E o poder está dentro de mim, eu decidi rezar / E espero pelo Armageddon, que virá como eu quero / É uma honra ser escolhido e espero pelo dia. 134

135 O vício da paixão e da luxúria também estão estreitamente relacionadas ao Azarape. Por isso, em várias canções, Lúcifer aparece apaixonado, como por exemplo, a composição N.I.B., do Black Sabbath: N.I.B. (Black Sabbath) 1970 Some people say my love cannot be true please believe me, my love, and I'll show you I will give you those things you thought unreal The sun, the moon, the stars all bear my seal Follow me now and you will not regret leaving the life you led before we met You are the first to have this love of mine forever with me 'till the end of time Your love for me has just got to be real before you know the way I'm going to feel I'm going to feel I'm going to feel Now I have you with me, under my power Our love grows stronger now with every hour Look into my eyes, you will see who I am my name is Lucifer, please take my hand 81 A banda Black Sabbath foi a primeira a adotar abertamente uma temática e visual satânicos. O nome Black Sabbath é uma referência a encontros de feiticeiras. Seus álbuns são algumas vezes adornados com cruzes e demônios. Por exemplo, na capa do disco Reflection se lê: "Você, pobre tolo, você que está segurando este disco em suas mãos, saiba que com ele você vendeu sua alma, porque logo ela estará presa neste ritmo infernal, pela força diabólica desta música". O próprio Ozzy Osbourne (ex-vocalista) desenvolveu um visual demoníaco, com maquiagem pesada e mesmo lentes de contato vermelha. Sua música Suicide Solution, embora não fale de Satanás, foi acusada de gerar suicídios de jovens. Na música N.I.B. (que, embora alguns afirmassem que significasse Nativity In Black, na verdade, de acordo com a banda, é apenas o apelido da 81 Tradução livre N.I.B. / Algumas pessoas dizem que meu amor não pode ser real / Por favor, acredite-me, meu amor, e vou te mostrar / Vou te dar as coisas que você julgava impossíveis / O sol, a lua, as estrelas, todas trazem meu selo / Siga-me agora e você não vai se arrepender / Deixando a vida que tinha antes de nos encontrarmos / Você é o primeiro que teve este meu amor / Sempre comigo até o fim dos tempos / Seu amor por mim tem que ser real / Antes que você entenda a maneira como sinto / Eu vou sentir / Eu vou sentir / Agora tenho você comigo, sob meu poder / Nosso amor se fortalece a cada hora / Olhe em meus olhos, você verá quem sou / Meu nome é Lúcifer, segure minha mão 135

136 barba do baterista Bill Ward...), Lúcifer está apaixonado pela primeira vez, um amor possessivo, que doa todas as estrelas, o sol, as coisas impossíveis, mas que impõe submissão. Já na canção She is my Sin, da banda finlandesa de metal Nightwish, observa-se a paixão diretamente relacionada à luxúria: She is my Sin (Nightwish) 2000 Take heed, dear heart Once apart, she can touch nor me nor you Dressed as one A wolf will betray a lamb Lead astray the gazers The razors on your seducing skin In the meadow of sinful thoughts Every flower s perfect To paradise with pleasure haunted by fear A sin for him Desire within A burning veil For the bride too dear for him A sin for him Desire within Fall in love with your deep dark sin I am the Fallen You are what my sins enclose Lust is not as creative As its discovery To paradise with pleasure haunted by fear A sin for him... Bless me, undress me Pick your prey in a wicked way God I must confess... I do envy the sinners 82 A personagem ela do título, possível analogia a um súcubo, 83 é o motivo de pecado do eu-lírico. Segundo Cousté (1996, p. 44) 82 Tradução livre Ela é o meu Pecado / Tome cuidado, querido coração / Uma vez partido, ela não pode nos tocar / Vestida como / Um lobo que trairá o cordeiro / Desvie do caminho daqueles que observam / As lâminas na sua pele que seduz / Na relva de pensamentos pecadores / Toda flor é perfeita /Para o paraíso com prazer, morto de medo / Um pecado para ele / Um desejo dentro de si / Um véu que queima / Por sua noiva muito querida / Um pecado para ele / Um desejo dentro de si / Apaixone-se pelo seu pecado sombrio / Eu sou o Anjo Caído / Você é o que os meus pecados incluem / A luxúria não é tão criativa / Quanto sua descoberta / Para o paraíso com prazer, morto de medo / Um pecado para ele... / Me abençoe, tire minha roupa / Escolha sua presa de um modo pecaminoso / Deus, eu tenho que confessar... / Eu realmente invejo os pecadores 83 Demônio feminino que vem à noite copular com um homem, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos. 136

137 No dizer do númida Lactâncio digno servidor de Deus de fins do século III daquela união angélico-humana, que não estava prevista na Criação, surgiu a raça dos íncubos e súcubos, cuja carnadura admitiria todos os estados intermediários da matéria: não são inteiramente homens ou mulheres nem demônios, estão submetidos à morte, mas possuem igualmente o dom da metamorfose; não têm acesso ao céu nem ao inferno, e sua permanente morada é a terra. Dotados, sem dúvida, de alma imortal, uma vez perecida sua carne, não têm outro remédio senão ficarem indefinidamente na ambigüidade do limbo, de onde se manifestam em formas esporádicas e elementais. Seriam, portanto, os fantasmas, trasgos, silfos, duendes e similares que, como uma procissão de sombras, acompanham os seus meiosirmãos desde o começo da espécie. Assim como as letras falam dessa luxúria, o ritmo do rock, seu swing, balanço remetem à sexualidade PARÓDIA DE DEUS Ainda outra imagem do Tristonho que aparece nas canções de rock é como imitador, que faz paródia dos atos e das coisas de Deus. Por exemplo, a banda Mercyful Fate compôs Lucifer, que nada mais é que uma paródia da principal oração cristão, o Pai Nosso: Lucifer 84 (Mercyful Fate) 1996 Our father who are in Hell Hallowed be thy name Thy kingdom is come Thy will is done On earth as it is in Hell We take this night our rightful due And trespass not on the path of He Lead us unto temptation And deliver us from false piety For thine is the Kingdom And the Power And the Glory Forever Shemhamforash! Tradução livre Lúcifer : Pai nosso que está no Inferno / Venerado seja seu nome / Seu reino chegou / Sua vontade será feita / Na terra como no Inferno / Receba essa noite nossa devoção / E não atravesse em caminhos de dor / Nos guie para a tentação / E livrai-nos da falsa piedade / Pois seu é o Reino / o Poder e a Glória / Para sempre / Shemhamforash! 137

138 Observa-se um sarcasmo na letra ao parodiar a maior oração cristã. Até mesmo a palavra Shemhamforash, que seria o nome secreto de Deus, é surrupiada e utilizada para nomear o imitador, o macaco de Deus, ou seja, o Canho. Por imitar Deus, Satã, segundo Cousté (1996, p. 30) deve ter um nome espantoso e secreto, cuja enunciação bastaria para desencadear as mais ferozes consequências. Lúcifer debocha de Deus ao roubar seu nome, ao parodiar sua oração. Conforme Minois (2003, p ), o riso não é natural no cristianismo, religião séria por excelência. [...] é ligado à imperfeição, à corrupção, ao fato de que as criaturas sejam decaídas, que não coincidam com seu modelo, com sua essência ideal. Então os risos, guitarras elétricas, distorções, gritos e vozes guturais também se referem ao diabólico, visto que recordam o que de mais instintivo o ser humano possui, justamente o que está mais afastado do divino. Dessa forma, o riso também está fortemente presente nas canções de rock. De acordo com Minois, Agora, pode-se rir. Há de quê: rir do outro, desse fantoche ridículo, nu, que tem um sexo, que peida e arrota, que defeca, que se fere, que cai, que se engana, que se prejudica, que se torna feio, que envelhece e que morre um ser humano, bolas!, uma criatura decaída. O riso vai se insinuar por todas as imperfeições humanas (p ). As festas, o prazer, a selvageria fazem parte do reino do mal, já que segundo o Minois quem passa seu tempo em alegria passará em sofrimento a eternidade (2003, p. 144). Canções como Mysteria 86 passam a descrever sabás, festas diabólicas realizadas na Idade Média por bruxas, e que aqui serve para invocar Lúcifer, que aparece quando o eu-lírico deseja, de modo similar à invocação de Fausto: 85 It is translated from a Hebrew phrase meaning "the explicit name." It refers to a name of the Hebrew God. Most commonly, it refers to the name "Yahweh." It has also been used to refer to a 72-letter name of the Hebrew God. [...] "Shemhamforash" is also used in Anton LaVey's "The Satanic Bible" to refer to the LaVeyan Satan or to say "Hail Satan." It is commonly questioned why LaVey used a Hebrew phrase used to refer to a white-light God as a Satanic Statement, but today, "Shemhamforash" is usually used as a Satanic statement instead of Hebrew. < Acessado em: 24 fev. 2007). 86 Palavra em latim que significa mistérios, ou seja, a canção descreve as coisas misteriosas que acontecem na noite. 138

139 Mysteria (Edguy) 2004 Ladies and Gentlemen Welcome to the Freakshow The world around is killing me No thunder wind and rain Eel are crawling everywhere Compounding with the game Grind the army, the living dead Without destination The faceless crowd is out to kill All kinds of variations You're trying to trample down my dreams A shot in the dark Mysteria - the spirit arising Eldritch cries from the hill Mysteria - fires are blazing Their wicked feast is shattering the still oh Seven days and nights a week Spinning like a wheel You try to buckle, bend and break And polish stainless steel Raging fury in the sky Burning with desire Self-determination rising from the fire You're trying to trample down my dreams My disdained ideals Beware of the difference You've savage and mean - we're a Evil is the dreamer to pit himself Against the forces of the tide You pay the seer to portray What you wanna hear What he has seen that night Oh - unholy is the feast Watch and dance Around the blazing hellfire And Lucifer arises He appears at my desire Tradução livre Mysteria : Senhoras e senhores / Bem-vindos ao show de horrores / O mundo ao redor está me matando / Sem trovão, vento e chuva / Enguias rastejando por todos os lados / Formando o jogo / Afie o exército, os mortos vivos / Sem destino / A multidão sem rosto saiu para matar / Todos os tipos de variações / Você está tentando pisotear meus sonhos / Um tiro no escuro / Mysteria o espírito se erguendo / Gritos sobrenaturais vindo das colinas / Mysteria chamas estão ardendo / Seu festim maligno está quebrando a paz / Sete dias e noites por semana / Girando como uma roda / Você tenta se curvar e se quebrar / E polir o aço inoxidável / Fúria devastadora no céu / Queimando com vontade / Autodeterminação surgindo do fogo / Você está tentando pisotear meus sonhos / Meus ideais / desdenhados / Fique atento à diferença / Você é selvagem e mau nós somos... / O mal é o sonhador que enterra a si mesmo / Contra as forças da maré / Você paga o vidente para que ele retrate / O que você quer ouvir / O que ele viu naquela noite / Oh - profano é o festim / Observe e dance / Ao redor do ardente fogo do inferno / E Lúcifer se ergue / Ele aparece quando eu desejo. 139

140 O cenário em que se realiza o sabá é das festas profanas realizadas antigamente ao redor das fogueiras, durante a noite, horário propício para o onírico, para o mistério. Prazer, mistério, luxúria e violência misturam-se, ajudam a criar o ambiente em que Lúcifer se ergue. Ambiente onírico e infernal semelhante ao descrito na canção The number of The Beast, um dos grandes hits da banda de metal inglesa Iron Maiden: The Number Of The Beast (Iron Maiden) 1982 Woe to you, Oh Earth and Sea, for the Devil sends the beast with wrath, because he knows the time is short... Let him who hath understanding reckon the number of the beast for it is a human number, its number is Six hundred and sixty six. (Revelations ch. xiii v. 18) I left alone my mind was blank I needed time to get the memories from my mind What did I see can I believe that what I saw that night was real and not just fantasy Just what I saw in my old dreams were the reflections of my warped mind staring back at me Cos in my dreams it's always there the evil face that twists my mind and brings me to despair The night was black was no use holding back Cos I just had to see was someone watching me In the mist dark figures move and twist Was all this for real or some kind of hell 666 the Number of the Beast Hell and fire was spawned to be released Torches blazed and sacred chants were praised as they start to cry hands held to the sky In the night the fires burning bright the ritual has begun Satan's work is done 666 the Number of the Beast Sacrifice is going on tonight This can't go on I must inform the law Can this still be real or some crazy dream but I feel drawn towards the 140

141 evil chanting hordes they seem to mesmerise me...can't avoid their eyes 666 the Number of the Beast 666 the one for you and me I'm coming back I will return And I'll possess your body and I'll make you burn I have the fire I have the force I have the power to make my evil take its course 88 Após terem lançado o disco The Number of The Beast (O Número da Besta), passaram a ser frequentemente taxados de satanistas embora raramente abordem o tema. O mascote Eddie (um simpático morto-vivo) das capas dos discos é frequentemente associado a um demônio. A letra foi baseada no filme The Omem II ( A Profecia II ). Um aspecto relevante a considerar é o recurso sonoro, em que no início, durante a narração de trecho do apocalipse, ouve-se uma voz grave, sombria, e depois, entre os primeiros versos cantados, escuta-se um grito desesperador, criando um clima de agonia exigido pelo teor da canção. Trata-se de uma interpretação livre do que é citado sobre a besta no livro do Apocalipse. Como São João, o eu-lírico é testemunha e vai narrando os fatos extraordinários que vão acontecendo ao seu redor. Novamente, é na noite, nos sonhos, na imaginação (ou não) da mente pervertida do eu-lírico que as figuras aparecem sob neblina. O mal provoca maior medo quando é desconhecido, quando apenas subentendido, do que quando claramente é descrito. Aparece o número que seria o da Besta (666, conforme descrito no Apocalipse ), que assume a voz da canção no final da música, a partir do verso I'm coming back I will return. É um Lúcifer de fogo, com força e poder, o Satanás da guerra dos fins dos tempos. 88 Tradução livre O Número da Besta : Ai de você todos sobre a terra e o mar, / pois o demônio enviou a besta com ódio, / porque ele sabe que o tempo é curto... / Aqueles que tenham o entendimento conheçam / o número da besta, / é um número de homem, / seu número é seiscentos e sessenta e seis. / ( Apocalipse Capítulo XIII versículo 18) / Fiquei só, minha mente estava vazia Precisava de tempo para tirar / as memórias de minha mente / O que eu vi, posso acreditar, / que o que vi naquela noite / era real e não apenas fantasia / O que eu vi, nos meus velhos sonhos / eram reflexões da minha / mente pervertida me encarando / Porque em meus sonhos, está sempre lá, / a face demoníaca que deforma minha mente / me leva ao desespero / A noite estava negra, não adiantava impedir / Pois eu só tinha de ver, alguém estava me observando / Na neblina figuras escuras se moviam e rodavam / Seria tudo isso de verdade ou algum tipo de inferno / 666 o número da besta / Inferno e fogo são gerados para serem liberados / Tochas brilhavam e cantos secretos eram entoados / Quando eles começavam a gritar, / Mãos eram erguidas ao céu / Na noite o fogo queimando brilhante / O ritual tinha começado, / o trabalho de Satã estava feito / 666 o número da besta / Sacrifício está acontecendo esta noite / Isso não pode continuar, devo informar a lei / Isto pode ser real ou algum sonho maluco / Mas me sinto atraído pelas hordas demoníacas que cantam / Eles parecem me hipnotizar... não posso evitar seus olhos / 666 o número da besta / 666 o único para você e eu / Eu estou voltando, eu irei retornar / E eu irei possuir seu corpo e irei fazê-lo queimar / Eu tenho o fogo, eu tenho a força / Eu tenho o poder de fazer o meu mal seguir seu curso. 141

142 Por meio dessa pequena seleção de canções, foi possível verificar a relação, algumas vezes intencional, outras não, entre o satanismo e o rock, movimento musical que confronta o que a sociedade prefere ignorar, celebra o que é renegado e é indulgente com o que é mais temido pelas pessoas. O Diabo, como símbolo da rebeldia, é a melhor imagem para representar essa atitude de rejeição a regras e, por estas canções, pode-se ver que sua caracterização é reconstruída de várias maneiras, desde o anjo decaído ao ser grotesco e bestial, ou ainda detentor do conhecimento e da liberdade, símbolo da luxúria, dos excessos e do riso, ao modelo superstar da mídia, retornando, assim, novamente à pauta da sociedade contemporânea. Observemos o texto de Ezequiel 28:13 Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônia, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados (grifo nosso). Baseados neste texto, e em uma longa tradição, alguns teólogos afirmaram há tempos que Lúcifer era o maestro das cortes celestiais... Parece que o problema da humanidade começou mesmo com a música, com o Diabo, o Pai do Rock. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, João Paulo. Ocultismo no Rock e Metal. Disponível em: < Acesso em: 08 dez BÍBLIA Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico ed. São Paulo: Ed. Ave Maria, CALVANI, Carlos Eduardo Brandão. Imagens do Diabo na MPB. Revista Correlatio, n.3. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Abr Disponível em:< Acesso em: 16 abr COUSTÉ. Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo como a sombra de Deus na história. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, FRYE, Northrop. O Código os códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo,

143 KROUT, Cam. Urban dictionary: Shemhamforash. Disponível em: < dictionary.com/define.php?term=shemhamforash>. Acesso em: 24 fev MESSADIÉ, Gerald. História geral do Diabo: da antigüidade à época contemporânea. Tradução de Alda Sophie Vinga. Portugal: Europa-América, MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. Bauru: EDUSC, O nascimento da bruxaria: da identificação do inimigo à diabolização de seus agentes. São Paulo: Ed. Imaginário, WEGNER, Uwe. Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos. In: Estudos Teológicos. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia. vol. 43, n. 2, p IMAGEM Disponível em: < Acesso: 25 jul

144 Drácula, o filme 144

145 Vlad Drácula 145

146 Vampiro, o duplo do Demônio: da literatura para a tela do cinema sob o olhar de Francis Ford Coppola Dante Luiz de Lima 146

147 VAMPIRO, O DUPLO DO DEMÔNIO: DA LITERATURA PARA A TELA DO CINEMA SOB O OLHAR DE FRANCIS FORD COPPOLA Dante Luiz de Lima O diabo e sua legião de demônios são entidades que povoam o imaginário do povo cristão há muitos séculos. Este ser rebelde criado por Deus para ser o mais belo dos anjos foi até chamado por alguns de anjo de luz, 89 mas sua beleza física não foi suficiente para compensar toda a maldade que emanava desta criatura tão perfeita. De acordo com o Cristianismo, ele pode ser o culpado por toda maldade existente no mundo. Por ser uma criatura polêmica, sem forma definida, com nomes variados e chefe de um batalhão de demônios, tornou-se uma personagem bastante atraente para artistas em geral: Satan has been an obliging model for artists of the calibre of Dürer, Bosch and Goya, later materializing on the decadent canvases of many great Symbolist painters. The first sculptures of the Devil were seen in 12 th century churches, and secular Satans of stone were molded by the romantic Rodin (SCHERECK, 2000, p. 5). 90 De acordo com esta afirmação, percebe-se que o diabo já fascinava o homem há vários séculos. E a nova arte chamada cinema, nascida no final do século XIX, não podia deixar de ignorá-lo. The Prince of Darkness stars in one of the very first films, France s La Manoir Du Diable (1896) by cinema pioneer George Méliès. (SCHERECK, 2000, p. 5). 91 Depois deste filme, inúmeros outros surgiram. Schreck enfatiza que: It would require an encyclopedia to chronicle every diabolical production, and limitations of space simply forbid listing them all (SCHERECK, 2000, p.10). 92 Isso prova a popularidade do tema do maligno na telona. 89 [...] o que não é de espantar. Pois, se o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz [...] (II Coríntios 11, 14-14) 90 Satã foi um modelo obrigatório para artistas do calibre de Dürer, Bosch e Goya, mais tarde se materializou na tela de muitos dos grandes pintores Simbolistas. As primeiras esculturas do diabo foram vistas em igrejas do século XII, Satãs seculares de pedra foram também moldados pelo romântico Rodin. (Tradução livre) Deste ponto em diante todas as traduções de nota de rodapé serão feitas pelo articulista. 91 O Príncipe das Trevas estrelou um dos primeiros filmes feitos, o filme francês La Manoir du Diable (1896), do pioneiro do cinema George Méliès. 92 Seria necessária uma enciclopédia para catalogar todas as produções diabólicas feitas até hoje, limitações de espaço impedem que esta listagem seja feita neste artigo. 147

148 O diabo foi e é mostrado no cinema de várias maneiras porque a história dele propicia várias interpretações, segundo Cousté (1996, p. 42), no livro Biografia do Diabo, o diabo tem [...] o dom da metamorfose, o duplo estado angélico e humano, a deslumbrante inteligência e beleza, como pálida indenização pelo seu paraíso perdido, e a sua, desde então, imperiosa nostalgia do Céu. Ele, às vezes, aparece como todos o conhecem com chifres e calda como no filme A Lenda (1985), do diretor Ridley Scott, e, às vezes, ele aparece por meio de um espiríto maligno como é o caso de O Exorcista (1973), de William Friedkin, em outras ocasiões ele nem aparece, mas sua presença é implícita como no caso de O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, ou na figura de uma mulher, como em Endiabrado (2000), de Harold Ramis. Enfim, ele aparece de várias formas e múltiplas personalidades. O diabo é uma grande figura para os cineastas. O que o torna tão atrativo é justamente isso, seu poder de se metamorfosear, ninguém sabe exatamente como ele é: The overall debate about Satan and popular ignorance of him allows filmmakers the opportunity to illustrate varying interpretations. Films become a way to investigate the Devil s character. Movies have the ability to fill a void of knowledge about the Devil. In the Bible, Satan plays a minor role, and his personality is not discussed in its text. Movies and filmmakers become the creators of images and beliefs people adopt about Satan. Cinema not only reinforces values and conceptions, it also creates standards (WYMAN, 2003, p. 17, grifo nosso). 93 Este outro ponto levantado por Wyman, de que o diabo aparece muito pouco na Bíblia e que sua personalidade não é discutida dentro do texto bíblico, torna-se um aval para a imaginação dos cineastas. O diabo torna-se uma fonte riquíssima para inspiração dos criadores de filmes. Portanto, o vampiro também pode ser interpretado como uma das possíveis materializações do diabo. Os autores do livro O que é Vampiro, José Luiz Aidar e Márcia Maciel, explicam que: 93 Devido ao grande debate que existe sobre a figura de Satã e a grande ignorância popular que existe sobre sua figura, os criadores de filmes permitem-se mostrá-lo de várias maneiras. Os filmes tornaram-se uma maneira de investigar o Diabo. Os filmes vêm preencher uma lacuna de conhecimento sobre o Diabo que muitos desconhecem. Na Bíblia, Satã tem um papel muito pouco notável e sua personalidade não é discutida dentro do texto bíblico. Filmes e criadores de filmes tornaram-se os perpetuadores de imagens e crenças que as pessoas adotam sobre Satã. O cinema não apenas reforça valores e concepções, como também cria padrões. 148

149 do diabo. Na Idade Média, nossos noctívagos malfeitores eram representados sob a forma de um horrível diabo ou morcego. Na verdade as imagens de vampiros, diabos e morcegos se confundiam e se associavam, havendo inclusive lendas que descreviam também satanás sob o aspecto de um enorme morcego. A associação com a figura de um morcego prende-se ao fato de estes animais se esconderem durante as horas de luz, havendo espécies que vivem do sangue do gado e dos homens (AIDAR; MACIEL, 2006, p. 16). 94 Assim, é perfeitamente plausível associar a imagem do vampiro à imagem Este artigo tem como objetivo investigar o personagem do diabo na figura do vampiro usando para isso o filme Drácula (1992), do cineasta Francis Ford Coppola. O filme foi baseado na obra do escritor irlandês Bram Stoker. O romance Drácula e o cinema nasceram praticamente juntos no final do século XIX, a primeira exibição de um filme deu-se em 1895, e o romance foi publicado dois anos mais tarde. O vampiro sempre despertou interesse por ser uma criatura dúbia e envolta por muitos mistérios. Mistérios que intrigam e instigam a imaginação de muita gente. Mas somente adentrou realmente o imaginário da cultura ocidental a partir do século XIX com a publicação de várias obras sobre seu personagem. Por meio do vampiro, valores são questionados, a sexualidade é discutida, a religião é posta em julgamento e a luta entre o bem e o mal é trazida à tona novamente. Coppola, em seu filme Drácula, ardilosamente transformou uma besta secular em um ser que questiona o significado da vida e a origem da maldade. O Conde Drácula de Coppola é um príncipe que sofre por amor e parece ter sentimentos puros, mas ao mesmo tempo mostra-se maligno e maldito, questiona Deus e se pergunta por que é filho das trevas. Coppola parece querer mostrar o lado humano de Drácula, um ser poderoso que não consegue entender a origem da sua maldade. Os diálogos e as imagens do filme estão abertos a várias interpretações, o filme é repleto de analogias e simbologias que só mesmo o espectador mais atento consegue perceber. As várias transformações que Drácula sofre durante o filme sugerem que ele tem os mesmos poderes de 94 Todos os grifos e negritos são de autoria do articulista. 149

150 transformação do demônio. Poderia Drácula, na leitura de Coppola, ser o próprio demônio? Apesar de Stoker não ser o primeiro escritor a escrever sobre estas criaturas que habitam as trevas, seu personagem é tão intrigante que o romance Drácula nunca deixou as prateleiras das livrarias desde a sua publicação. Antes de Stoker, William Polidori escreveu The Vampyre (1819), e J. Sheridan Le Fanu escreveu Carmilla (1872), e alguns outros escritores já haviam escrito estórias com vampiros, mas nenhum deles conseguiu dar ao mito a notoriedade que Stoker alcançou. O cinema, por sua vez, desde a sua concepção sempre manteve uma relação muito forte com a literatura. A maioria dos filmes produzidos até hoje é baseada em obras literárias. Portanto, o livro de Stoker foi inspirador de vários filmes sobre vampiros. Entre os mais famosos estão: O Vampiro (1913), dirigido por Robert Vignola; Nosferatu, uma sinfonia de horror (1922), do famoso diretor alemão W. Murnau, este último tornou-se um dos maiores representantes do expressionismo alemão; Drácula (1931), dirigido por Tod Browning; e Drácula (1992), do diretor Francis Ford Coppola. Dezenas de filmes abordando o tema do vampiro foram feitos desde o início do século passado até os dias de hoje. De acordo com o professor David Rogers, que escreveu a introdução para uma das publicações do romance Drácula em 2000, More than two hundred and fifty films and innumerable stories and comics owe their inspiration to this figure [...] (ROGERS, 2000, p. vi). 95 Esse recorde de mais de duzentos e cinquenta filmes feitos para dar vida a um só personagem, fazem do vampiro um dos mais populares na história do cinema. Mas o que é um vampiro e porque essa criatura se tornou tão popular? Segundo Claude Lecouteux no livro História dos Vampiros: Para um vasto público, o vampiro é um sugador de sangue que se aproxima à noite de quem está dormindo e provoca-lhe morte lenta aspirando sua substância vital. Romances e filmes nos familiarizaram com esse personagem que supostamente teme o alho e a cruz, com esse morto-vivo que tem medo da luz do dia; 95 Mais de duzentos e cinquenta filmes, inumeráveis estórias e estórias em quadrinhos devem sua inspiração a esta figura [Drácula]. 150

151 enquanto o sol brilha, ele permanece em seu caixão ou numa caixa repleta de terra de sua própria sepultura, onde dorme de olhos abertos, enquanto os ratos inibem qualquer aproximação. Verdadeiro morto-vivo, o vampiro tem a tez pálida, os caninos longos e pontudos, os lábios vermelhos, as unhas compridas; sua mão é gelada e seu pulso, forte. Ele deixa seu esconderijo acompanhado do ruído de cães ou de lobos uivando para a morte e, quando se infiltra numa casa, provoca o irreprimível torpor das pessoas acordadas. Alguns afirmam que ele pode metamorfosearse em mosca, rato ou morcego para vir espiar a conversa de seus perseguidores sob essa forma animal; enfim, que é capaz de comunicar-se com seus semelhantes por telepatia. Ele desce pelos muros de seu castelo como uma lagartixa (LECOUTEUX, 2003, p. 10). Para Lecouteux (2003, p.10), Stoker selecionou alguns dos dados mencionados acima [...] reuniou-os e organizou-os de maneira feliz para produzir aquilo que viria ser o mito do vampiro. Stoker, para escrever seu romance, estudou lendas antigas e também valeu-se de obras já publicadas que falavam sobre essas criaturas sugadoras de sangue. Pela descrição dada por Lecouteux sobre vampiros, já é possível deduzir o porquê destas criaturas serem relacionadas a demônios. Primeiramente, estas criaturas são seres mortos que perambulam pela terra, algo inconcebível para os seres humanos, principalmente para os cristãos, já que, segundo a Bíblia, só a Jesus Cristo foi dado o poder da ressurreição. Dormem em caixões porque são mortos-vivos, têm a tez pálida que significa a ausência de sangue nas veias e, consequentemente, a falta de vida dentro deles. A mão gélida é também uma característica de seres desprovidos de vida, e o pulso forte pode estar representando o calor que eles recebem vindo do inferno. Um morto não poderia estar andando na terra a não ser que seu corpo tivesse sido tomado por um demônio: Paras os teólogos, o vampiro, que põe em causa a dualidade alma/corpo, sendo uma ofensa às leis naturais, é um pecador morto sem remissão, um excomungado. Seu cadáver é, então, uma presa fácil para os demônios e se ele parece voltar à vida é porque estes o possuem e o animam (LECONTEUX, 2003, p. 161). 151

152 A posição dos teólogos revela claramente que os vampiros são criaturas demoníacas, e segundo James B. Twitchell (1988, p. 108) no livro Dreadful Pleasures: Since the vampire is the devil inside an already dead human carcass, he must be destroyed, not killed. There is simply nothing alive left to kill. That is why he cannot be shot or knifed or bludgeoned to death. 96 Essa afirmação é mais um indício de que o vampiro é um ser demoníaco que não pode ser destruído de maneira tradicional. Outras características que tornam os vampiros criaturas infernais é que eles temem a cruz, que é o símbolo maior do cristianismo. Um bom católico deve ter apego a este símbolo de religiosidade e não refutá-lo. Eles também temem o sol que simboliza a vida e a luz divina, demônios vivem nas trevas. Uma das mais marcantes características do seu diabolismo são os caninos longos e pontudos, revelando uma característica animalesca. Se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, um ser humano normal jamais viria à Terra com tais características. As metamorfoses do vampiro o fazem ainda mais demoníaco, pois, segundo a Bíblia, só o diabo pode assumir várias formas. Seus poderes telepáticos o fazem ainda mais assustador, pois eles conseguem penetrar na cabeça dos homens e assim compreendê-los melhor para poder levá-los consigo. O alho, segundo Lecouteux (2003, p. 27): Como todas as plantas que possuem forte odor, põe em fuga os demônios que, como sabemos, se infiltram nos cadáveres para animá-los. O alho foi uma das inovações do romance Drácula: Stoker introduz um novo detalhe no mito, o alho, cuja popularidade foi imensa (Id. Ibidem, p. 26). Quanto às criaturas que protegem e reverenciam o vampiro, só podem ser demônios disfarçados de animais. A popularidade do vampiro deve-se ao fato de ele envolver com uma das partes mais sensíveis do questionamento humano: a fé. Por meio do vampiro, a fé cristã consegue mostrar que há um antídoto para o mal. Acreditando-se que um ser supremo existe, o mal pode ser combatido com o uso de armas que têm a benção dos céus. Sendo assim, a igreja tem sido uma importante perpetuadora do mito do vampiro. Twitchell (1998, p. 108) salienta que: 96 Já que o vampiro é o diabo dentro de uma carcaça já morta, ele deve ser destruído, e não morto. Não há nada vivo para matar. Por isso ele não pode ser baleado, esfaqueado ou morto a pauladas. 152

153 [...] he might never have survived in Western horror art had he not been adopted by the Holy Roman Church. The results of this sponsorship are still visible in the myth as the principal symbols used in destroying the vampire: holy water, the sign of the cross, church icons of all sorts and, of course, the vampire s most common enemy, the parish priest. 97 Além de todos os símbolos tradicionais conectados ao sagrado, Twitchell também menciona a figura do padre como o combatente humano e portador das armas celestiais. Stoker não usa um padre para enfrentar o maligno, e sim um catedrático que sabe tudo sobre a arte do mal e o poder da religião sobre ele. Talvez, a escolha de um professor deve-se ao fato de o romance ter sido escrito no final do século XIX, quando as grandes descobertas tecnológicas e científicas estavam acontecendo, conflitando-se desta maneira com a fé. O filme de Francis Ford Coppola, produzido em 1992, traz uma grande inovação para o mito do vampiro. Ele tenta explicar coisas que não ficaram muito claras no romance de Stoker, como, por exemplo, a história do nascimento dos vampiros, para tanto, Coppola mistura história e ficção. Especula-se que Stoker escreveu seu romance baseado na história de Vlad III, um príncipe sanguinário que viveu na Romênia no século XV. A história diz que: Historicamente provado, ele existiu, mas não como vampiro. Seu nome é Vlad Tepes ou Vlad Drácula, mais exatamente Vlad III. Vlad Drácula tem sido tão confundido com a moderna lenda dos vampiros que é difícil ignorá-lo, mas com a razão de corrigir o conceito popular sobre esta personagem tão conhecida. Todos sabem quem Vlad Drácula foi. Ou pelo menos pensam que sabem. De acordo com a opinião popular, Vlad Drácula, também conhecido como Vlad o Empalador (Tepes) foi um príncipe no país da Transilvânia durante o séc. XV. Por causa de sua extrema crueldade ele ficou conhecido como Drácula que significa filho do diabo. Ele era tão maléfico que as pessoas acreditavam que ele era vampiro, ou pelo menos tinha um acordo com o diabo Ele talvez não tivesse sobrevivido dentro da arte de horror ocidental se não tivesse sido adotado pela Sagrada Igreja Romana. Os resultados deste patrocínio ainda estão visíveis no mito como os principais símbolos usados para destruir o vampiro: água benta; o sinal da cruz; símbolos religiosos de todos os tipos; e certamente, o inimigo mais comum do vampiro, o padre

154 Stoker não menciona o nome de Vlad no romance, mas devido ao fato de a história se passar na mesma região em que Vlad III viveu e ter o apelido de Drácula, é muito provável que ele tenha inspirado Stoker. O nome é outro fator que vem endossar tal teoria, Vlad III herdou o nome Drácula de seu pai que tinha o título de Dracul, o qual era dado às pessoas que pertenciam a uma ordem religiosa chamada Ordem do Dragão, e seu objetivo era defender os interesses da igreja católica. Como a adição do sufixo a ao nome Dracul, Vlad III virou Dracula, que significa filho do dragão. Mas, como o dragão pode também ser interpretado como diabo, ele por sua maldade virou o filho do diabo. Kelly J. Wyman utiliza em seu estudo as palavras de Léon Cristiani, para afirmar que There is no doubt that the Serpent that tempted Eve was Satan in person. The Serpent is the Dragon of the Apocalypse. And the Dragon is either Satan or Lucifer (Wyman, 2003, p.15). 99 Provavelmente Stoker usou deste conhecimento para dar título à sua obra mais importante, Dracula. O filme de Coppola começa mostrando Drácula como um servidor fiel da igreja católica, ele luta em nome de Deus, sua batalha é para defender seu país contra a invasão turca. Drácula vai para uma de suas batalhas deixando para trás sua linda noiva Elisabeta. Os turcos ardilosamente mandam uma mensagem para Elisabeta dizendo que Drácula foi morto. Elisabeta desesperada suicida-se para supostamente poder se encontrar com o amado. Quando Drácula retorna da guerra, encontra o corpo de sua amada. A cena acontece dentro de uma capela, o padre presente diz que a alma de Elisabeta não poderá ser salva, pois ela cometeu suicídio, algo inconcebível para a igreja católica. Drácula revoltado enfia a espada em uma cruz, a qual sangra como um ser humano, ele toma um cálice em suas mãos e bebe o sangue derramado. Obviamente, isto é uma alusão à eucaristia da Igreja Católica. Depois de beber o sangue de Cristo, Drácula renega a igreja e promete viver eternamente tomando o sangue de outras pessoas. Essa é sua porta de entrada para o mundo da escuridão. Mais uma vez, como na Bíblia, a mulher é culpada pela origem de um grande mal. Elisabeta não checou os fatos, ela recebeu a notícia da morte de seu amado e suicidou-se, isso quer dizer que 99 Não há dúvida que a Serpente que tentou Eva era o próprio Satã. A Serpente é o Dragão do Apocalipse. E o Dragão é Satã ou Lúcifer. 154

155 ela foi tão imprudente como Eva no Gênesis. Drácula transforma-se em vampiro e terá vida eterna, sua missão é reencontrar Elisabeta. Copolla vale-se de uma crença para explicar a espera de Drácula. Os espíritas acreditam na reencarnação, ou seja, que os espíritos sempre voltam à terra em outros corpos. Coppola usa a mesma atriz (Wynona Rider) para fazer o papel de Elisabeta e Mina, quatro séculos mais tarde. O Padre (Anthony Hopkins) que condena Elisabeta também reencarna, desta vez na figura de Van Helsing, o caça-vampiros. Drácula espera desde o século XV até o século XIX para reencontrar sua amada. A partir daí, o filme de Coppola torna-se bastante fiel ao enredo do romance, mas como todo filme baseado em um romance, a leitura dos adaptadores acentua mais alguns aspectos da obra literária do que outros. No caso de Drácula, o erotismo e a figura do vampiro como um demônio são os principais destaques. Nossa análise não tem como objetivo a comparação do romance de Stoker e o filme de Coppola, o que está sendo analisado é a figura do vampiro como demônio no filme Drácula, e Stoker foi mencionado por ter sido a fonte inspiradora de Coppola. Deste ponto em diante, somente o filme será analisado, algumas cenas são fiéis ao romance, outras não. Estaria a história de Drácula sendo comparada à história de Jesus? Como dito anteriormente, a palavra Drácula significa filho do diabo. Portanto, pode-se fazer uma analogia entre a história de Jesus e a história de Drácula. Uma das hipóteses desta análise é que Deus mandou Jesus ao mundo para que ele o salvasse, e o Diabo mandou Drácula para infestá-lo de demônios morto-vivos. A primeira vampira criada em Londres por Drácula chama-se Lucy. Não seria esta uma alusão ao nome do próprio Lúcifer? Jesus tentou salvar o mundo começando pelas classes mais baixas. Jesus foi concebido por Maria e teve como pai adotivo José, os quais eram pessoas extremamente humildes. Sua intenção de salvar o mundo não foi bem aceita e ele foi crucificado. O Diabo provavelmente viu que a tática de Deus não funcionou. Então ele cria Drácula dentro da aristocracia e com título de nobre, desta maneira ele poderia começar sua infestação pelas classes mais altas. Portanto, com mais chances de atingir seu objetivo, já que o mundo sempre foi capitalista. Jesus Cristo usou a oratória para convencer as pessoas do 155

156 reino dos céus. Drácula também usou uma via oral, pois para que seres humanos se tornem vampiros, eles só precisam beber o sangue de um vampiro. Jesus promete vida eterna depois da morte, já o vampiro é bem mais rápido, ele mata sua presa, e se quiser, ele dá vida eterna à vítima imediatamente, independentemente da sua idade, até mesmo crianças podem tornar-se vampiros. Quando Jonathan Harker, o agente imobiliário, chega ao castelo na Transilvânia para fazer negócios com o conde, a cena da chegada de Harker pode ser comparada a sua chegada ao próprio inferno: Jonathan gets at the immense gate of his ancient Gothic and old castle surrounded by fog and darkness; the gate opens by itself not really a thick wooden door as in other versions of the story, a suggestion perhaps of a more seductive welcome and he is received by Dracula himself. The figure of Dracula is extremely impressive as he presents himself in the form of a very old man, wearing a red cape with a long train and a prominent horn-like hairdo of white hair that resembles some of the fifteenth century pictorial representations of the devil (DA SILVA, 2005, p. 49). 100 Depois de ter chegado a este suposto inferno, que é o castelo de Drácula, Jonathan irá sofrer muito para poder escapar desta armadilha demoníaca. Sendo um homem vitoriano cheio de pudores e valores morais, ele será tentado por três súcubos, que o fazem tremer de medo e delirar de prazer. Jonathan atrairá os olhares do próprio conde Drácula que também o deseja. O filme é provocante e sensual. No filme, o erotismo é o ponto central. O prazer carnal foi sempre encarado pela Igreja Católica como algo diabólico e Coppola, certamente, quis enfatizar este aspecto em seu filme. Georges Bataille afirma que: In the history of eroticism, the Christian religion had this role: to condemn it. To the extent that Christianity ruled the world, it attempted to liberate it from eroticism (2002, p. 79). 101 Coppola usou o erotismo da troca de fluídos sanguíneos para criar cenas altamente eróticas, e com certeza 100 Jonathan chega ao imenso portão do velho e Gótico castelo, envolto em neblina e escuridão; o portão se abre sozinho desta vez não é uma porta grossa de madeira como em outras versões da estória, talvez isto tenha sido feito para sugerir uma recepção mais sedutora ele é recebido pelo próprio Drácula. A figura de Drácula é extremamente impressionante, ele é mostrado na forma de um homem bem idoso, usa uma capa vermelha com uma calda longa, ele tem cabelos brancos arrumados em um penteado que parece chifres, isto tudo faz lembrar algumas das representações do diabo na pintura durante o século xv. 101 Na história do erotismo, a religião Cristã teve seu papel, condená-lo. Até a extensão em que o Cristianismo governou o mundo, tentou também livrá-lo do erotismo. 156

157 condenáveis pelos cristãos. Mina depois de manter uma relação sexual com Drácula sente-se impura. O vampiro não tem relações sexuais com seres humanos normais: For the vampire, however, food and sex become one in drinking of the victm s blood (Chandler, 1997, p. 30). 102 Portanto, subtende-se que quando o vampiro suga o sangue de uma vítima ele não está apenas se alimentando, está, também, aliviando-se do desejo sexual. Quando assistimos a um filme de vampiro, podemos notar o prazer estampado no semblante do possuidor (vampiro) e do possuído (vítima). Os prazeres sexuais rejeitados pelos cristãos tornam-se ainda mais demoníacos na figura do vampiro, porque este não apenas suga mulheres. Drácula mostra um desejo enorme em relação a Jonathan Harker. Lucy depois de transformada em vampira passa a se alimentar de bebês. Estes dois tipos de comportamentos nos levam a pensar em homossexualismo e pedofilia. Vários estudiosos escreveram trabalhos sobre a figura do vampiro, alguns chegam a dizer que o demonismo do vampiro se deve ao fato de beber sangue, e o sangue, por sua vez, pode ser comparado, por alguns deles, ao sêmen. James B. Twitchell (1988, p. 133) salienta que: Although blood and semen are elixirs, they are most definitely not to be drunk. The vampire drinks blood and so signals his demonism; [...]. 103 Os atos demoníacos praticados pelos vampiros podem ser comparados às praticas sexuais não aceitáveis pela igreja. Na Biografia do Diabo Cousté ressalta que: [...] polêmicas intricadas sobre limites dos poderes do Diabo no que diz respeito à sexualidade, há pelo menos um ponto em que teólogos e demonólogos se mostram unânimes: o objetivo central que o Astuto persegue nesses misteres, como em qualquer outro campo em que se manifeste, é a condenação das almas. Por essa razão, além da cópula, os demônios buscam também qualquer outra forma de promiscuidade sexual com os mortais, de preferência aquelas condenáveis para os critérios da Igreja (1996, p. 53). 102 Para o vampiro, entretanto, comida e sexo se tornam um só quando bebe o sangue da sua vítima. 103 Embora sangue e sêmen sejam elixires, eles definitivamente não são bebíveis. O vampiro bebe sangue e isso é um sinal de seu demonismo. 157

158 Cousté menciona a condenação das almas, o vampiro também é um amaldiçoador de almas, um ser humano depois de transformado em vampiro também é condenado a viver uma vida na escuridão. Pois se torna: Personagem nem morto nem vivo, que freqüenta as regiões do além, mas permanece em meio aos homens, capaz de sair de dia e de noite, reunindo em si todos os contrários, ódio e amor, bem e mal, transgredindo todas as normas, redentor e danador, Cristo negro que pretende dar Vida na morte, 104 emanação das forças das trevas, possuído por uma fome e sede monstruosas, habitado pelo temor e desejo de morrer, temendo a solidão... (LECOUTEUX, 2003 p. 157). Coppola usou todas as contradições citadas por Lecouteux para criar seu personagem e seu filme, apesar das cenas violentas, faz com que o espectador sinta certa simpatia por Drácula. Não é à toa que este foi vendido como uma história de amor. Com relação à cópula, como dito anteriormente, o vampiro copula oralmente com sua vítima, e esta pode gerar novos seres. Portanto, o vampiro pode ser visto como um demônio procriador. Para explicar as práticas sexuais do Diabo abominadas pela igreja, Cousté usa as palavras de Frederik Koning, que diz que entre as práticas condenáveis achava-se a de adotar a forma de um animal, de modo que a cópula com eles tornava o homem ou mulher culpáveis também pelo pecado de bestialismo. Ou induziam os amantes a praticarem com eles o fellatio ou o cunnilingus, e isto, sobretudo, nos dias santos (1996, p. 53). O vampiro parece fazer a mesma coisa. Algumas das cenas mais chocantes do filme de Coppola retratam estes atos. A primeira cena se passa na casa de Lucy, amiga de Mina. Ela acorda, como se estivesse em um transe, levanta-se, abre as portas enormes do seu quarto, o qual fica tomado pelo vento. Em seguida, ela adentra o belo jardim de sua casa, este parece estar envolto em uma névoa maligna, e o vento sopra 104 Depois desta citação, Lecouteux coloca a seguinte nota de rodapé: MICHOUX, C. Magie, dent et vampirisme, Frénésie, v.3. p. 208, Essa dimensão blasfematória assume toda a sua força no filme de Coppola. 158

159 fortemente. Lucy vestida sensualmente com uma camisola vermelha, a qual devido ao vento marca profundamente os contornos do seu corpo sensual. Uma silhueta perfeita, corpo esguio e longilíneo, com seios fartos. A imagem de Lucy é extremamente sensual e erótica. Depois de percorrer o jardim e passar por um labirinto feito de arbustos naturais, ela chega até o mausoléu da sua família, deitase em um banco em frente à porta de entrada da tumba, seu semblante emana desejo. Drácula aparece, não como humano, mas como um enorme animal, meio cachorro, meio lobo e com rosto de lobisomem. A imagem mostra o animal entre as pernas de Lucy, que geme de prazer. Talvez, esta cena tão impactante tenha sido usada por Coppola como uma alusão a antigos relatos, que afirmavam que algumas mulheres mantinham relações sexuais com o Diabo, e também endossa a teoria mencionada anteriormente, a qual diz que o Diabo transformava-se em um animal para praticar o bestialismo com suas vítimas. Como já dito, os vampiros não usam seus órgãos genitais para manter relações com suas vítimas, o prazer deles é totalmente oral. No entanto, Coppola, nesta cena do filme, simula um ato de penetração concomitantemente com o prazer oral. Outra cena marcante do filme é quando Drácula possui Lucy pela última vez, para transformá-la em vampira para sempre, a câmera alterna-se, mostrando o casamento ortodoxo de Mina e Jonathan. Coppola, dentro da sua simbologia, mostra o contraste do bem e do mal ou do certo e errado. Mina casando-se virginalmente e Lucy entregando-se à luxuria. Quanto ao fellatio e o cunnilingus mencionados por Cousté, alguns estudiosos também conseguem detectá-lo nas relações vampirescas. Magaret Montalbano no seu artigo intitulado From Bram Stoker s Dracula to Bram Stoker s Dracula, explica que: As Mina sucks at Dracula s breast, imbibing the fluid necessary for her new life, the image echoes that of a child suckling at the mother s breast for the nourishment of milk. Yet Dracula s ecstatic response to Minas s sucking his bodily fluid permits the image to be read as one of fellatio, while the bleeding wound at which she 159

160 sucks also allows for a reading of the act of cunnilingus (2004, p. 393). 105 Esta explicação de Montalbano, com base no que foi dito por Cousté, levanos, mais uma vez, a reforçar a figura de Drácula como demônio. No vampiro, o ato de doar seu próprio sangue a um humano não é apenas indecoroso, mas é também a concretização da transformação do humano em vampiro. Depois de beber o sangue de um vampiro, a vítima começa a se transformar em um deles. A cena em que Mina suga Drácula é a mais erótica do filme de Copolla, embutida de um alto grau de erotismo. A cena começa com Mina assistindo à queima de uma das casas de Drácula. Mina está no quarto do Dr. Seward, na parte de cima do hospício, onde o médico trabalha. O hospício é em frente à casa de Drácula. O objetivo de Mina ter ficado lá é para se proteger de Drácula, enquanto Van Helsing, Jonathan, Arthur, Quincey e Dr. Seward vão matar a besta. Eles ateiam fogo à casa e Van Helsing faz um tipo de exorcização em frente ao fogo. As imagens lembram o inferno. Drácula aparece primeiro grudado no teto de sua casa de cabeça para baixo como um morcego, ele já não é o conde, mas sim um demônio. Ele não ataca Van Helsing e seus parceiros, mas transforma-se em névoa verde, e deixa sua casa em direção ao asilo. Segundo Cousté (1996, p. 34): [...] o Diabo podia desfazer a concentração do vapor que constituía a sua carnadura e deixar-se levar pelo vento. Este é mais um dos indícios de que o vampiro pode ser o próprio diabo. Depois de matar um dos internos do hospício, ele entra como névoa verde no quarto de Mina. Cousté quando fala das metamorfoses do diabo explica que: [...] o Anjo Decaído conservará parte de seus poderes o dom metamorfose, o duplo estado angélico e humano, a deslumbrante inteligência e beleza, como pálida indenização pelo seu paraíso perdido, e a sua, desde então, imperiosa nostalgia do Céu (1996, p. 42). O conde Drácula, assim como o Diabo, usa de vários disfarces. Quando ele entra no quarto de Mina, a névoa percorre todo corpo dela por debaixo dos 105 Enquanto Mina suga o peito de Drácula, bebendo o fluído necessário para sua nova vida, a imagem pode ser comparada a de uma criança sugando o seio de sua mãe para se alimentar de leite. Pode-se dizer, ainda, que a resposta estática de Drácula, deixando-se ser sugado por Mina, possa ser lida como fellatio, por outro lado a ferida que sangra, a qual Mina suga, permite uma leitura de um ato de cunnilingus. 160

161 cobertores, Mina geme de prazer. Logo em seguida, o vampiro se transforma em um homem novamente, um homem bonito e sensual com um corpo bem delineado: Para os cristãos das catacumbas, e mesmo para os primeiros padres do deserto, não havia dúvida de que o Diabo mantinha todas as suas características angélicas; por isso, quando aparecia aos homens, fazia-o usando uma forma humana, como o tinham feito outros anjos da Bíblia (os que apareceram a Abraão, Agar e Lot, ou o arcanjo Rafael, companheiro de viagem de Tobias e vencedor do sensual Asmodeus) ou como ele mesmo fizera nas tentações a Jesus no deserto (COUSTÉ, 1996, p. 33). Drácula, assim como o Diabo, usa da sua mais bela forma humana para seduzir Mina, ele se transforma em príncipe, como se fosse um personagem de um conto de fadas. Durante o filme há várias alternâncias na imagem do Conde, ele passa por várias etapas. Quando Jonathan chegou à Transilvânia, ele está velho e repugnante, com um rosto que lembra o próprio Satanás, quando ele vem a Londres ele rejuvenesce, fica atraente e elegante e se intitula príncipe Vlad. Na cena de sedução de Mina, ele se transforma de névoa para príncipe Vlad. Ela pede perdão a Deus por desejar tanto aquele príncipe. Este é o maior conflito de Mina, desejar tanto uma criatura que ela sabe que faz parte do mundo das trevas. O vampiro, por amá-la tanto, explica que, se eles finalizarem o ato de amor que tanto anseia naquele momento, ela será condenada a andar pelas trevas como ele por toda a eternidade. Mina, impulsionada pelo desejo que a corrói por dentro, naquele momento diz: Quero ver o que você vê, quero sentir o que você sente e quero amar o que você ama (Drácula, Columbia Pictures, 1992). Drácula morde o pescoço de Mina, ela geme novamente como se estivesse no ápice de um orgasmo. Em seguida, o vampiro fica arrependido, mas Mina implora para adentrar ao mundo dele. Drácula faz um corte no seu peito e Mina suga o sangue do corpo do morto-vivo veementemente. Enquanto Mina realiza este ato, que como dito anteriormente pode ser comparado a fellatio ou cunnilingus, o vampiro contorce-se de prazer. A conotação de cunnilingus é dada pelo fato de o corte feito por ele no seu próprio peito ter a forma do orifício vaginal. Outra coisa que chama atenção nesta cena é o posicionamento do vampiro em 161

162 cima da cama de Mina: In Coppola s extremely active symbolic scheme, Messianic allusions can be interposed with sexual imagery, as when the Dracula figure kneels with arms outstrectched on Mina s bed in a crucified posture (URSINI; SILVER, 1997, p. 157). 106 A posição de crucificado é mais um indício deixado por Coppola para contrastar o religioso e o profano. No final do ato, o vampiro desaparece e os cinco salvadores entram no quarto e encontram Mina com a boca toda suja de sangue. Logo em seguida, o vampiro reaparece no teto do quarto, já transformado em demônio novamente. A imagem da criatura é horripilante, na cabeça tem duas orelhas que mais parecem chifres e o corpo é todo disforme. Na discussão com Van Helsing o demônio diz: Eu fui traído, veja o que seu Deus fez a mim (Drácula, Columbia Pictures, 1992). Esta frase é mais um indício de que Coppola realmente assimilou como verdadeira a ideia de que o vampiro é o próprio Diabo. Ele culpa Deus por ser uma criatura com aquele visual tão repugnante. A história de Drácula pode ser uma analogia da relação entre Deus e o Diabo. Deus também criou Lúcifer bonito e depois o expulsou do céu. A transformação de Lúcifer de anjo para uma criatura feia não foi feita por Deus. A Igreja Católica não teve permissão de Deus, nem de ninguém, nem mesmo do Diabo para controlar sua imagem, mas ela se apossou do Diabo, e manteve rigidamente o monopólio de sua representação. Quem criou o Diabo? Foi Deus? Por que Deus criou o Diabo? Lúcifer tinha o livre-arbítrio? Deus, de acordo com a Bíblia, tem a onipotência e a onisciência. A única explicação plausível é que o mal só pode ter sido criado pelo próprio Deus. Portanto, Lúcifer foi criado por Deus com a função de ser maligno. Deus quando o criou sabia que haveria a possibilidade deste rebelar. No caso do príncipe Vlad do filme de Coppola, sabemos que ele foi provocado por Deus, ele tirou o bem mais precioso do príncipe, sua amada Elisabeta. Não poderia o Deus da história da criação também ter provocado Lúcifer para que ele se rebelasse? Deus criou Lúcifer como a mais perfeita das criaturas, depois disso, ele resolve povoar o planeta Terra. Porque ele não mandou Lúcifer para povoar o planeta? 106 Dentro do esquema altamente ativo e simbólico de Coppola, alusões Messiânicas são interpostas com o imaginário sexual, um exemplo é quando Drácula se ajoelha na cama de Mina, de braços abertos como se estivesse crucificado. 162

163 A cena da sedução de Mina termina com ela se sentindo impura por ter se relacionado com o maligno. Ela praticou atos não aceitáveis para uma mulher cristã. Van Helsing usa um crucifixo para espantar o vampiro/demônio. Uma das características das mulheres mordidas por vampiros é que depois de começarem sua transformação elas ficavam mais voluptuosas, e assim propensas ao pecado carnal tão condenado pela Igreja. Depois da fuga de Drácula, todos se empenham para caçá-lo, o mal precisa ser destruído. Mina, por ter ingerido o sangue do vampiro, agora também se transformará em um deles. Portanto, Drácula precisa ser encontrado e morto imediatamente, pois só assim Mina será salva. Ela fica ligada ao vampiro telepaticamente, com isso, os heróis conseguem seguí-lo. Eles viajam para Transilvânia para encontrar a besta. Mina fica cada vez mais próxima de tornar-se uma vampira. Em uma das suas crises, ela parece arder de desejo e, nesse transe, ela tenta seduzir Van Helsing. O casal se beija arduamente, e em seguida Mina tenta morder o pescoço de Van Helsing. Ele, apesar de estar ardendo de desejo, tanto quanto Mina, percebe o perigo. Sua arma de defesa é uma hóstia. Ele prensa a hóstia contra a testa de Mina, a hóstia queima e fere a pele da jovem senhora. Mais uma vez o sagrado é usado para fazer o maligno recuar, já que a hóstia simboliza o corpo de Cristo, que arma melhor que o próprio corpo de Cristo poderia ser usada para espantar o Diabo (vampiro)? Depois de conseguir controlar os ataques de Mina, a qual fica com a marca da hóstia tatuada na sua testa, Van Helsing vai até o castelo e mata os três súcubos que o habitam. Mina e Van Helsing esperam a chegada do vampiro na porta do castelo, o qual chega dentro de seu caixão e com uma aparência monstruosa, escoltado por serviçais ciganos e perseguido pelos outros heróis da história, Jonathan, Quincey, Dr. Seward e Arthur. No confronto final, em frente ao castelo, Quincey fere o vampiro com sua faca, a qual fica cravada no peito de Drácula. Mina, ainda sob o domínio de Drácula, impede que os outros acabem com o vampiro. O marido de Mina, Jonathan, pede a todos que deixem Mina ficar com o vampiro, pois o destino deles precisa ser cumprido. 163

164 Mina entra no castelo e leva Drácula até a capela. A figura do vampiro é repugnante, ele parece velho, enrugado e está todo ensanguentado. Mina o beija e ele volta a ser o príncipe Vlad que ela encontrou em Londres. O vampiro pede a ela que o liberte de todo o sofrimento. Mina relutante faz o que seu amado pede, empurra a faca que está cravada no peito do vampiro e em seguida corta-lhe a cabeça. Logo depois, a câmera exibe uma pintura na abóbada da igreja, mostrando Elisabeta e Vlad de mãos dadas voando nos céus, cena que lembra a subida de Jesus aos céus. Como o filme de Coppola é cheio de simbolismos, deduzimos que de vítima Mina passa à redentora. Talvez Coppola esteja fazendo uma alusão à figura de Maria mãe do salvador. Pois a imagem de Mina ao lado de Drácula lembra a imagem de Maria aos pés da Cruz. O mal foi destruído por uma mulher, talvez como recompensa, como dito anteriormente, já que no filme de Coppola a mulher é que foi culpada pela origem do mal. Outra cena interessante é a final, quando o vampiro morre, a cruz que havia sido ferida por Drácula no século XV cicatriza e a ferida se fecha lentamente. Como se Drácula tivesse ferido o próprio Jesus, a cicatrização significa que agora o mal está morto. Jesus Cristo já pode voltar novamente e tentar salvar o mundo outra vez, seu pior adversário já não habita entre nós. A marca da hóstia tatuada na testa de Mina também desaparece. O filme parece mostrar que Drácula é o próprio Diabo, ou então alguém bem próximo dele, seu filho talvez. Como o tema do vampirismo é extremamente complexo, ainda existe bastante espaço para pesquisadores que queiram investigar as várias facetas do vampiro. Se o vampiro suscita tanto interesse por parte de estudiosos é porque essa figura lendária, assim como o Diabo, pode ser interpretada de diversas formas. Talvez o vampiro seja o mais famoso de todos os monstros do cinema porque ele instiga as pessoas a se questionarem sobre várias coisas tais como: vida, morte, sexualidade e fé. Todos os questionamentos insolúveis do ser humano estão presentes em filmes ou em romances que trazem a figura do vampiro. Podemos afirmar que o vampiro é a reencarnação do Diabo, filho do Diabo, o duplo do Diabo, uma espécie de anticristo, um Cristo negro doador de morte, num Armagedon eterno

165 BIBLIOGRAFIA AIDAR, JOSÉ LUIZ; MACIEL MÁRCIA. O que é Vampiro. São Paulo: Editora Brasiliense, BATAILLE, GEORGES. The Tears of Eros.Tradução de Peter Connor. San Francisco: City Lights Books, BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição Claretiana. Tradução e Revisão de Frei João José Pedreira de Castro, O. F. M., e pela equipe auxiliar da Editora. São Paulo: Editora Ave-Maria, CHANDLER, ANTHONY N. Vampires Incorporated: Self-definition. In: Anne Rice s Vampire Chronicles. Montreal: McGill University, COUSTÉ, ALBERTO. Biografia do Diabo: O Diabo como sombra de Deus na história. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, DA SILVA, ANA CRISTINA ALVES. The Fog Era a Jungian and Post-Jungian Interpretation of Dracula and its filmic version Bram Stoker s Dracula. Florianópolis: Editora da UFSC, LECOUTEUX, CLAUDE. História dos Vampiros. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, MONTALBANO, MARGARET. From Bram Stoker s Dracula to Bram Stoker s Dracula. In: A Companion to Literature and Film. Edit. por Robert Stam e Alessandra Raengo. Cornwall: Blackwell Publishing Ltd, NOGUEIRA, CARLOS ROBERTO F. O Diabo no Imaginário Cristão. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, SCHRECK, NIKOLAS. The Satanic Screen: An Illustrated Guide to the Devil in Cinema. New York: Creation Books, SILVER, ALAIN; URSINI, JAMES (Orgs.). The Vampire Film. 3. ed. New York: Limelight Editions, STOKER, BRAM. Dracula.(1897). London: Wordsworth Editions, TWITCHELL, JAMES B. Dreadful Pleasures. New York: Oxford University Press, WYMAN, KELLY J. Representations of Satan: An Illustration of the Devil in American Cinema. Kansas City: University of Missouri, FILMES A Lenda. Dir. Ridley Scott. 20 th Century Fox, Drácula. Dir. Francis Ford Coppola. Columbia Pictures, Endiabrado. Dir. Harold Ramis. 20 th Century Fox,

166 O Bebê de Rosemary. Dir. Roman Polanski. Paramount Pictures, O Exorcista. Dir. Willian Friedkin. Warner Brothers Pictures, RECURSO ON-LINE < Acesso em: 12 jan IMAGENS Disponível em: < Acesso em: 01 ago

167 Lúcifer 167

168 O Diabo Pede Perdão: a Redenção do Diabo por Saramago Salma Ferraz 168

169 O DIABO PEDE PERDÃO: A REDENÇÃO DO DIABO POR SARAMAGO 1 - O Diabo: a dor de Deus na Literatura Salma Ferraz O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. Assim, Eça de Queirós começa o conto O Senhor Diabo. Baudelaire, em um poema em prosa Le Spleen de Paris (1869), afirma que a maior astúcia do Diabo é nos persuadir de que ele não existe: La plus belle ruse du Diable est de nous persuader qu il n existe pas. Além de Eça e Baudelaire, muitos escritores consagrados já elegeram o chamado Anjo de luz para personagem de suas páginas, já que sua trajetória, sua antiodisseia, mostra-se mais que pertinente para a ficção. Entre as mais conhecidas obras e autores citamos: A Divina Comédia, de Dante Alighiere; O Paraíso Perdido, de John Milton; Casamento do céu e do inferno, de Willian Blake; Fausto, de Goethe, que a transformou na versão mais conhecida do mito e tornou o pacto com o Diabo uma temática universal; Baudelaire, que por meio de seus poemas malditos nas Litanias de Satanás invoca a piedade deste. Shakespeare, Thomas Mann e Paul Valéry também se ocuparam do anjo caído. Na Literatura Portuguesa, além de Eça, Fernando Pessoa cria o conto, que dá nome a obra enigmático A Hora do Diabo (PESSOA, 1997). No Brasil, citamos: 107 Álvares de Azevedo com Macário; Machado de Assis, com A Igreja do Diabo e O Anjo Rafael ; Guimarães Rosa, com Grande sertão: veredas; por meio de Riobaldo, nosso Fausto sertanejo, afirma que Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele (ROSA, 1988, p. 32). Não poderíamos nos olvidar de Obras do Diabinho da Mão Furada atribuída a Antônio José da Silva, o Judeu. Brasileiro de 107 Consulte as referências bibliográficas dos livros a seguir na bibliografia geral do presente artigo. 169

170 nascença, judeu de origem, foi batizado assumindo a posição sempre perseguida de cristão-novo. Foi preso, torturado, garrotado e queimado numa fogueira em auto de fé pela Inquisição portuguesa em Eis algumas das máscaras que o Diabo assume na Literatura. 109 Se a Teodiceia já foi proposta por Leibniz, estes escritores, cada um a sua maneira, ajudaram a narrar a epopeia de Lúcifer, ou a antiépica de Lúcifer, ou ainda aquilo que denominamos antiodisseia de Lúcifer, sua Sataniceia. Segundo Giovanni Papini (1954), em sua obra O Diabo, São Tomás elaborou sua Summa Teologica, mas ninguém ousou construir uma Summa Diabológica. Na realidade, o próprio Papini elaborou a primeira Summa Diabológica da modernidade, da qual analisaremos alguns aspectos. Nessa surpreendente obra, Papini afirma que os teólogos (por vergonha da obsessão temática) e os filósofos (por terem mais o que fazer) desertaram do assunto diabo e o posto desertado foi assumido pelos poetas que [...] há séculos são atraídos pela terrível imagem do grande adversário, pela sua grandeza tétrica e sua tristeza atroz (PAPINI, 1954, p. 14). O Anjo Fulminante, na definição precisa do crítico, inspirou poemas, tragédias, odes, romances, pactos, faustos e muitos filmes. Karl Max dizia que vivemos num mundo que cria deuses. Podemos acrescentar que vivemos no mundo que cria diabos, muitos. Não existe um Diabo, um Satanás, um Lúcifer. Cada época, cada povo, cada mentalidade constrói o Diabo que merece, a sua imagem e semelhança, concede a ele a máscara mais propícia para aquele momento. Cabe lembrar que o Demônio é uma criação cristã. Os chamados espíritos maus, na civilização judaica, grega e romana são entes vagos, múltiplos, contraditórios. Foi a Igreja Católica quem consagrou o ente do mal, tenebroso, inimigo de Cristo, da Igreja, às vezes com rabos, cornos e cheirando a enxofre, metido sempre em luta cósmica contra o Filho de Deus e a 108 Sobre a polêmica em torno da autoria deste texto, consultar o artigo Uma novela Diabólica: as Obras do Diabinho da Mão Furada, de Antônio José da Sivla, de autoria de Odil José de Oliveira Filho, disponível em: < >. Aessado em: 02 ago Também existem várias antologias de contos sobre o Diabo, da qual citamos o livro O Diabo existe? (MAGALHÃES JR, 1973), com um rico acervo de escritores que escreveram sobre o Diabo, como: O Arquiinimigo Belfegor, de Machiavel; O Diabo Coxo, de Luiz Vélez de Guevara; O Recibo do Diabo, de Walter Scott; Os três cabelos de Ouro do Diabo, dos Irmãos Grimm; O Moinho do Diabo, de Andersen; O Diabo no Campanário, de Edgar Allan Poe etc. 170

171 tentar eternamente o homem. É Messadié (2001, p. 303) que, em sua História geral do Diabo afirma que Deus é assim, no Antigo Testamento, simultaneamente o Bem e o Mal. Ou seja, o Diabo está ausente do Antigo Testamento. Não temos tempo nem espaço para discutir a longa trajetória de Lúcifer na Teologia, mas destacamos a afirmação do exegeta jesuíta J. M. Martins Terra (1975), em sua obra Existe o Diabo? Respondem os Teólogos: A existência do Diabo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio, nem nunca foi posta em dúvida por nenhum heresiarca. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé (MARTINS TERRA, 1975, p ). 110 A crença na existência do Diabo é, portanto, um dogma de fé. Se uma pessoa não acredita em Deus, ela é ateia, mas se não acredita no Diabo é igualmente ateia. Tanto os sem-deus como os sem-diabo são ateus. Cabe aqui algumas perguntas milenarmente inquietantes, para as quais a Teologia não acha as respostas adequadas: Como surgiu o mal? Se Lúcifer era perfeito, poderia ter pecado? Se pecou, então ele não era perfeito? Como falar em anjo caído, em anjo mal, em anjo maldito? Se caiu era imperfeito e Deus, então, falhou no seu projeto de criação? Se é anjo, não pode ser mal? A serpente era uma enviada de Lúcifer ou o próprio Lúcifer? Por que Deus não destruiu imediatamente o Anjo Rebelde e seus seguidores extirpando o mal para sempre desde o princípio? Qual foi o pecado de Lúcifer? Por que o Diabo está ausente no Antigo Testamento? Por que o Mal, tanto quanto o bem no Antigo Testamento, procede de Deus? Por que, no Livro de Jó, Satanás aparece como um dos seus filhos, entrando tranquilamente nos céus? Por que Deus se permite disputar com o Diabo um grande Big Brother em cima do miserável, fiel e demasiadamente humano Jó? Por que Deus tenta Satanás no episódio de Jó, se sabia, já que é onisciente, que Satanás partiria para o ataque? Por que o Diabo e Jesus têm íntimas relações no Novo Testamento? Por que, justamente o Diabo, é o primeiro a reconhecer o mistério de Jesus como Filho de Deus, antes mesmo dos discípulos e do próprio Jesus? Se o Diabo tentou 110 Todos os negritos presentes neste artigo são de autoria da articulista, desta forma, não referiremos mais essa informação entre parênteses nas citações a seguir. 171

172 Judas, este era inocente? São tantas as perguntas e tantos os porquês quando se trata da assustadora trajetória de Lúcifer, que a resposta na maioria das perguntas acima é o silêncio. Cousté (1996), na obra Biografia do Diabo, faz uma revisão da atuação de Lúcifer no Novo Testamento, baseado nos relatos evangélicos, e afirma: Menos um inimigo que um colaborador, o Diabo evangélico desempenha à perfeição o papel que lhe foi destinado no drama do universo, secundando inclusive a tarefa do demiurgo redentor. Entra no corpo de Judas para levá-lo à traição que era o que Jesus necessitava para consumar sua obra e ter acesso à Paixão. As misteriosas palavras de Lucas (4:13), ao final do seu relato sobre as tentações, quando afirma que o Diabo três vezes repudiado se retirou pelo tempo determinado, sugerem uma continuação, um ou mais atos pendentes de realização no projeto teogônico (1996, p. 177). Para Cousté, o Diabo é um demiurgo coadjutor do plano da redenção, necessário à paixão de Jesus e ao projeto teogônico, e estas ideias ele retirou não da ficção, mas dos relatos evangélicos. Para o crítico, o Diabo é a dor de Deus, a mais alta potência da criação e tem nostalgia do céu (COUSTÉ, 1996, p. 22). Papini (1954) segue a mesma linha de raciocínio e acrescenta que Jesus foi muito mais cristão com Satã que todos os teólogos e Pais da Igreja. 172

173 Anjo Caído O Diabo é um dos personagens que, devido ao papel desempenhado nos Evangelhos, tem merecido o maior número de adjetivos do milênio. Relacionemos os mais interessantes: O Semi-hazad, Azazel, Belial, Asmodeu (hebreus); o Eblis (muçulmano); The Old Man (Escócia); o Macaco de Deus (Idade Média); o Maligno, o Inimigo, o Tentador, o Maldito, o Pai da Mentira, o Príncipe das Trevas; adjetivos usados em quase todas as línguas; o Cão, o Arrenegado, o Beiçudo, o Azucrim, o Tinhoso, o Porco, o Sujo, o Tição, o Coxo, o Anhangá, o Rabudo, como é chamado no Brasil, ou ainda, segundo a linguagem rosiana, não precisa existir, para haver (GUIMARÃES ROSA, 1988, p. 48). E, afinal, como era identificado o Diabo durante a Idade Média? Conforme Manso e Luna: Na Idade Média, o Diabo tinha formas tão espetaculares quanto aterrorizantes. Os olhos ora se encontravam na ponta das asas, ora na barriga. A língua era comprida como a de um réptil. O cheiro insuportável de enxofre anunciava a presença de Lúcifer, Satanás, Belzebu, Macaco de Deus ou outra qualquer das centenas de denominações do Demônio (MANSO; LUNA, 1999). 2 - Um Lúcifer Filósofo Interessa-nos, neste artigo, a reapropriação que Saramago faz de Lúcifer, Satanás, o Diabo, e a forma como o redime, transformando-o primeiro num Pastor enigmático, depois no grande Salvador do Salvador, novamente Anjo de Luz. Esse ser, nomeado por adjetivos tão pejorativos, já há muito tempo contava com a admiração e o respeito de Saramago, que lhe concede dimensões bem mais humanas, como pode ser observado em outras obras, como em Memorial do Convento (1983). No Evangelho segundo Jesus Cristo (1992), ele é o protagonista e está presente nos momentos mais cruciais da narrativa, passando de anti-herói para herói. Isso, de certo forma, faz-nos recordar o satanismo no sentido atribuído por John Milton (1967) que, em seu grande poema O Paraíso Perdido, reserva a Satanás o papel de protagonista, transformando a rebelião do Anjo Caído em um tema glorioso, privilegiando o pecado e a revolta, deixando a Adão, praticamente, 173

174 um papel secundário. Teria chegado finalmente a hora e a vez de Lúcifer? Nomodiabopadrofilhospritossantamêin! A simpatia de Saramago pelo Diabo é um sentimento não muito herético, pois está ancorado em verdades presentes na própria Bíblia. É Pompeu de Toledo quem constata, após analisar os Evangelhos, que há um número excessivo de encontros e diálogos entre Jesus e Satanás. Neles, há uma convivência até certo ponto tranquila entre os dois, ocorrendo uma certa maleabilidade no entrechoque de propostas. Segundo o autor, nos evangelhos bíblicos: Jesus suporta pacientemente as investidas do inimigo, não desdenha sua companhia, não o intima a desaparecer, aceita inclusive ser transportado por ele até os telhados do templo: tem por assim dizer, uma relação dialética com o rival, na qual este também se mostra à altura do tratamento, sem ofuscar-se em nenhum momento (TOLEDO, 1996, p ). Cousté ainda acrescenta que este encontro é anedótico e arquetípico, como qualquer outra lenda medieval ou a especulativa saga do ciclo fáustico (1996, p. 165), e também aponta para o fato de que, se existe certa relevância histórica para o Diabo, isto se deve ao fato de que nenhuma outra religião concedeu uma intimidade tão inquietante em relação ao seu protagonista como a que teve com Jesus (COUSTÉ, 1996, p. 176). Ou seja, há uma fraternidade preconcebida entre os dois demiurgos. Antes de entrarmos na análise dos diálogos tensos que ocorrem na chamada cena da barca, nos quais observaremos como o narrador simpatiza com o Diabo e com Jesus, e como rejeita Deus, citaremos alguns detalhes que auxiliarão o entendimento deste episódio, por demais importante, e no qual se situa o clímax do romance. Muito antes da narração dos momentos cruciais da barca, já notamos uma certa predileção especial do narrador pelo Diabo e como aquele se esforça para delinear, claramente, um novo perfil para essa personagem. Todas as suas aparições no texto são descritas como a aparição de um anjo: alto, grande, com as roupas resplandecentes. Suas palavras são palavras da verdade, carregadas de sabedoria, poeticidade e filosofia, sempre à procura da verdade: "Ainda a 174

175 barriga não cresceu e já os filhos brilham nos olhos das mães [...]." (SARAMAGO, 1992, p. 33). 111 As três primeiras características do Diabo são: tem a aparência de Lúcifer, é sábio e é filósofo. O Pastor apodo pelo qual o Diabo é sempre identificado no romance, maneja com preciosidade o diálogo, provoca a palavra e leva seu interlocutor ao desespero. O autor implícito utiliza sua fala para revelar também sua aversão a Deus: Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco [...]. Deus não vive, é. Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada [...]. Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares do Senhor. E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem... (SARAMAGO, 1992, p. 233). Eis aqui a excepcional liberdade de invenção temática e filosófica do Pastor que vence Jesus nesta discussão, mostrando e questionando o caráter de Deus e o absurdo do sacrifício de ovelhas. O quarto atributo do Diabo é o domínio absoluto da palavra. O narrador concede ao Diabo uma estranha sabedoria que se opõe, brutalmente, ao humor grotesco atribuído classicamente ao Diabo, e que remonta ao folclore medieval. 112 Se no cristianismo "Satanás desempenha um papel tão importante quanto o Messias" (NOGUEIRA, 1986, p. 18), neste desevangelho o Pastor/Diabo é muito mais importante que aquele. Ao Diabo caberá o papel de legítimo salvador da raça humana e do próprio Jesus, ou seja, ele é o único herói deste romance. É o Diabo quem, durante quatro anos, ensinará as verdades necessárias à iniciação do Filho do Homem. Um dos principais testes para essa iniciação era o não sacrifício de ovelhas, teste esse no qual Jesus foi reprovado. O quinto atributo está posto: uma espécie Abba, pai espiritual e iniciador de Jesus. 112 Sobre as diversas faces e máscaras do Diabo, consultar O Diabo - A Máscara sem rosto (LINK, 1998). 175

176 leitor: Em uma das falas do Pastor, o narrador dá uma pista muito importante ao Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo, e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro (SARAMAGO, 1992, p ). O leitor deve estar atento a essas indicações, pois tudo leva a crer que se trata de cara e coroa de uma mesma moeda, já que nunca se viu uma amizade igual àquela... Essa questão da ligação íntima entre os dois torna-se evidente em outro diálogo: Disse Tiago, Messias ou filho de Deus, o que eu não compreendo é como soube o Diabo, se o Senhor nem a ti declarou. Disse João, pensativo, Que coisas que nós não sabemos haveria entre o Diabo e Deus (SARAMAGO, 1992, p. 359). Na revisão carnavalizada que o autor faz do texto bíblico, há uma subversão ideológica do texto parodiado, o leitor é levado a antipatizar com o Deus sanguinário e cruel do Antigo Testamento, tendo em vista a exploração de pontos nunca antes questionados de sua biografia e caráter. Quando Deus começa a participar dos acontecimentos que são parodiados do Novo Testamento, o narrador é implacável em seus comentários irônicos e depreciativos: "Deus não perdoa os pecados que manda cometer" (SARAMAGO, 1992, p. 161). Para o autor, Deus é mal tanto no Antigo como no Novo Testamento. Assim sendo, temos o retrato de uma personagem caprichosa e maquiavélica. Saramago corrobara a ideia de Jack Miles em Deus, uma Biografia, quando afirma: É estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo (1997, p. 17). A antipatia do narrador, e agora provavelmente também a do leitor, evidencia-se fortemente no episódio em que Deus obriga Jesus a sacrificar a ovelha antes negada. Após essa prova tão cruel, Jesus fica estarrecido, a ovelha morre em silêncio e o narrador nos informa qual foi a reação de Deus: "[...] apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação" (SARAMAGO, 1992, p. 264). 176

177 Na narração do sacrifício da ovelha, a carnavalização da personagem Deus é clara, pois é ele quem tenta Jesus no deserto e o derrota. De todos os personagens com as quais o narrador não simpatiza, Maria, José e Deus, este último é o que lhe causa maior aversão. 3 - Demiurgos na Barca O clímax do livro acontece na barca onde estão Jesus, Deus e o Pastor, e é narrado em mais trinta páginas. O tenso diálogo entre os três ocorre durante quarenta dias, no tempo cronológico, tempo esse marcado pelos outros discípulos, pois na barca, o sentido do tempo se perde, ou melhor, o tempo não existe, visto que "Deus é o próprio tempo" ou "para Deus o tempo é todo um" (SARAMAGO, 1992, p. 49). A descrição da aparência de Deus é digna de um deus do Olimpo, sem se esquecer, contudo, do toque "humano" da abastança: como um judeu rico. À tanta magnificência opõem-se as sandálias, levando-nos a pensar que se os seus pés não são de barro, o seu calçado é, ao menos, demasiado rústico. E é só nesse diálogo, no limiar, na terceira margem do mar, que a paternidade dupla de Jesus é confirmada: "Bem vês, eu tinha misturado a minha semente na semente de teu pai antes de seres concebido, era a maneira mais fácil, a que menos dava nas vistas [...]" (SARAMAGO, 1992, p. 366). Por essa explicação, nesse desevangelho ficamos sabendo que, além de não ter sido concebido por uma virgem, esse Jesus é um personagem híbrido, um semideus por excelência, e isso explica o seu destino fatalista. Sua origem, portanto, remete ao mito pagão de filho de um deus e de uma mãe humana, 113 reunindo em si "o alto" da divindade e o "baixo" da humanidade. E, sob esse particular, o personagem Jesus coloca-se, ele próprio, no limiar entre o divino e o humano, fato que engendra os seus profundos conflitos existenciais. 113 Sobre este particular, Antônio Martins Gomes informa-nos que a figura de Cristo "continua a ser de alguém que se eleva acima da raça humana, mas que não chega à categoria de deus. Jesus Cristo é, assim, visto como um herói que, numa perspectiva mítica, pode ser filho de um deus e de um ser humano, se coloca a um nível intermédio, tal como os heróis Ulisses, Hércules, Ájax ou Aquiles. Daí a importância do destino fatalista, condicionante da ação das personagens [...]" (1992, p. 13). 177

178 Nosso semideus híbrido tenta esclarecer os detalhes do seu destino trágico, pois já sabe que herdou de seu pai terrestre a culpa e que é responsável, de certa forma, pela morte dos inocentes de Belém. A condição de semideus híbrido é explicitada no texto. Deus continua irônico e Jesus questionando sobre sua dupla paternidade. A essa altura das especulações e revelações sobre o destino desse herói trágico, o Diabo/Pastor chega à barca e a sua descrição cinematográfica também se iguala ao deus grego Poseidon, O Senhor dos Mares: As mãos agarraram-se à borda da barca enquanto a cabeça estava ainda mergulhada na água, e eram umas mãos largas e possantes, com unhas fortes, as mãos de um corpo que como o de Deus, devia ser alto, grande e velho. A barca oscilou com o impulso, a cabeça ascendeu da água, o tronco veio atrás escorrendo qual catarata, as pernas depois, era o leviatã surgindo das últimas profundidades, era, como se viu, passando todos estes anos, o Pastor [...] (SARAMAGO, 1992, p. 367). A descrição é cromática, metafórica, e o narrador a faz mais grandiosa que a descrição destinada a Deus, e não se refere à personagem como Diabo, Satanás, Lúcifer, mas sim Pastor, é esse o nome pelo qual desde o início do romance o Diabo é identificado: aquele que conduz as ovelhas ao aprisco. Não estamos mais diante de um monstro repugnante, deformado, com chifres e cabeças, pernas e garras de uma ave de rapina, com uma segunda face no abdômen ou no traseiro, tal como nas iconografias e quadros medievais, mas diante da imagem de um Diabo luciferino que é descrito como semelhante a Deus. Há uma nova pista para o leitor, "as mãos de um corpo como o de Deus" (SARAMAGO, 1992, p. 367). O narrador compara o Diabo a Deus, e o Diabo, ao entrar na barca, ocupará uma posição estratégica entre Deus e Jesus: é a posição de mediador e de intercessor, que no cristianismo é ocupada pelo Espírito Santo. É como se uma nova trindade começasse a se delinear, talvez uma trindade dupla ou uma unidade dupla, ou ainda um monoteísmo com gêmeos siameses... Melhor ainda: heterônimos e nada mais! As relações perigosas entre os dois intensificam-se pelas constantes pistas fornecidas pelo narrador: 178

179 Jesus olhou para um, olhou para o outro, e viu que, tirando as barbas de Deus, eram como gêmeos, é certo que o Diabo parecia mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele induzido... (SARAMAGO, 1992, p. 388). O sexto e sétimo atributos do Diabo são fornecidos: igual a Deus (gêmeo), mediador e intercessor. Satanás aqui é descrito como gêmeo de Deus, confirmando nossa desconfiança de que os dois são faces diferentes da mesma moeda. O verdadeiro desvelamento da face divina aparece pela primeira vez no romance ESJC, justamente no momento em que é feita a comparação com o semblante do Diabo. Assim, começam a se acentuar as relações perigosas entre Deus e o Diabo. Jesus, ao tomar conhecimento de que Deus sabia que ele havia passado quatro anos em companhia do Diabo no deserto, diz: "Quer dizer, fui enganado por ambos, como sempre sucede aos homens [...]" (SARAMAGO, 1992, p. 368). Deus responde a Jesus, dizendo que todos os homens são enganados pelos dois e complementa, esclarecendo as dúvidas de seu filho e do leitor, que tanto Jesus como os seres humanos não passam de objeto de disputa nas mãos dele e do Diabo: "Meu filho, não esqueças o que vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessa ao Diabo..." (SARAMAGO, 1992, p. 369). Deus reconhece que foi ele quem colocou a insatisfação no coração do homem, mas isso ele retirou do seu próprio coração, que andava insatisfeito, pois era Deus de um povo pequeno e insignificante, queria ampliar seus domínios na terra e, para isto, precisaria que Jesus morresse como vítima. Temos aqui a deturpação paródica do plano da salvação. Deus, insatisfeito com sua pouca influência na terra, resolve alargar seus domínios, sendo que jamais passou pela sua cabeça a expiação de seu único filho em favor da salvação da espécie humana. Jesus precisaria morrer para que o número de seguidores aumentasse e, dessa maneira, o ego divino fosse massageado. Para corroborar seus intentos despóticos, aos homens, tal como a Jesus, só restaria o papel de cobaia. Jesus, a quem só restaria uma glória incerta e futura, compreende as estreitas relações existentes entre Deus e o Diabo: "Percebo agora por que está aqui o Diabo, se a tua autoridade vier a alargar-se a mais gente e mais países, também o poder dele 179

180 sobre os homens se alargará, pois os teus limites são os limites dele (SARAMAGO, 1992, p. 371). Em contraposição aos atos e atitudes de Deus, o oitavo atributo do Diabo é fornecido: tudo quanto interessa a Deus interessa ao Diabo, os limites de um são os limites do outro. O filho de José percebe que é uma cobaia e tenta buscar maiores esclarecimentos sobre o labirinto que terá de cruzar. Recebe como resposta a informação de que sua morte será infame, na cruz. Tudo é planejado maquinalmente, com riqueza de detalhes cruéis, por uma mente maquiavélica. Jesus, desesperado perante seu futuro trágico, suplica o rompimento do contrato. De nada adianta, como cobaia só resta aceitar o destino trágico que lhe aguarda. O filho de José, supremo no manejo do diálogo, tenta, desesperadamente, sair do labirinto em que se encontra e sugere a Deus que faça ele mesmo esse papel, que conquiste as gentes e os países, ao que Deus responde, ironicamente, que não pode se dar ao ridículo de sair por aí, pregando em praça pública que ele é o deus verdadeiro e não os outros deuses pagãos. A posição de cobaia dos seres humanos é explicitada, novamente, por Deus, ao informar que o homem é pau para toda a colher [...] é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses (SARAMAGO, 1992, p. 372). Deus é irônico, insiste em explicitar, em tom sarcástico, o destino de Jesus e da raça humana: cobaias. A dessacralização da figura divina é absoluta, pois Deus merece uma relação enorme de adjetivos: tirano, sarcástico, cruel, soberbo, irônico, maquiavélico, perverso. Não pensa em expiação, em redenção para o ser humano, apenas, como um bom déspota e tirano, em poder e glória para si, mesmo que isso custe a vida de milhões de pessoas. Jesus, em angústia, começa a remar e se apossa, temporariamente, da ironia divina: "[...] sim senhores, levo-os até à borda para que todos possam, finalmente, ver Deus e o Diabo em figura própria, o bem que se entendem, o parecidos que são [...]" (SARAMAGO, 1992, p. 372). O diálogo recomeça mais tenso e dramático. Jesus, a cobaia inexorável, tenta de todas as maneiras livrar-se da carga que lhe está sendo imposta, diz que 180

181 não fará milagres, ao que Deus responde que não adianta Jesus debater-se como um cordeiro que não quer ser sacrificado. Deus continua seu discurso, dizendo que só a visão de um filho de Deus, na cruz, sensibilizaria as opiniões, que Jesus lhes deveria contar histórias, parábolas, nem que precisasse torcer um bocadinho a lei. Deus situa-se acima da lei mosaica, permite que ela seja subvertida quando é interessante para os seus propósitos malignos. Jesus exige saber o que vai acontecer após a sua morte, já que será obrigado a aceitar o seu destino de cobaia. O Pastor enxerga algumas sombras no tempo que há de vir, mas não se atreve a pronunciar palavra alguma. Deus se sente encurralado, numa armadilha, criada por suas próprias palavras, e continua tentando não responder a Jesus, utilizando-se de evasivas: Começaste a morrer desde que nasceste (SARAMAGO, 1992, p. 378). A hora é tão trágica que Deus adquire um repentino respeito pela figura de Jesus, pois se sente pressionado por ele e não tem como fugir mais às suas inquietadoras perguntas. Assim, Deus humaniza-se e consente em responder-lhe, tentando amenizar suas colocações, falando do surgimento de uma igreja e que os homens teriam uma esperança futura. Jesus percebe o estratagema, irrita-se e informa que quer saber como viverão os homens depois dele. A agonia é tão intensa que Jesus, em desespero, praticamente grita com Deus, no afã de saber o que ocorrerá aos homens após seu sacrifício. Torna-se mais que, em toda a sua vida, um perseguidor da sua verdade e a da dos seres humanos. No limiar da barca, no deserto, 114 feito um animal acuado entre Deus e o Diabo, ele busca desesperadamente o propósito da sua vida e da dos homens. Deus pretende ser dono de uma verdade única, monológica, oficial e ditatorial, à qual Jesus se opõe, não concordando e questionando-a. Dessa forma, ele é forçado a ouvir o ponto de vista de Jesus, que se contrapõe ao seu, gerando, por meio das réplicas, das tréplicas, uma grande polêmica, e instaurando o dialogismo no texto: 114 O termo "deserto" aqui não é utilizado no sentido metafórico, pois segundo o próprio narrador de ESJC "[...] o deserto não é aquilo que vulgarmente se pensa, deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens [...]" (ESJC, p. 79). Segundo Toledo "a palavra não deve ser tomada em sua acepção geográfica, de extensão de terra arenosa e árida, mas apenas de lugar não habitado" (1991, p. 96). 181

182 Podem os deuses mentir, Eles podem, E tu és, de todos, o único e verdadeiro, Único e verdadeiro, sim, E, sendo verdadeiro e único, nem assim podes evitar que os homens morram por ti, eles que deviam ter nascido para viver para ti, na terra, quero dizer, não no céu, onde não terás, para lhes dar, nenhuma das alegrias da vida (SARAMAGO, 1992, p. 380). A essa altura, Jesus perde a paciência e exige: De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros [...] (SARAMAGO, 1992, p. 380). Pela maneira como o filho de José conduz as perguntas, percebemos que ele se conformou com seu destino. Sua preocupação agora se volta para o futuro dos seres humanos. Deus não tem saída, mas tenta, pela última vez, evitar o relato do seu estranho desejo de matar. Jesus insiste e quer saber tudo. 4 - Dicionário de mortes Jesus: O exterminador do Futuro A partir da página 381 do ESJC, somos jogados diante de uma das mais horrendas descrições das inúmeras e sangrentas maneiras de se morrer de toda a literatura portuguesa e, por que não dizer, universal, reportando-nos a inúmeros filmes de terror consagrados pelo cinema. Utilizando uma narração por posteridade ou narração ulterior, o leitor é colocado diante de um parágrafo ininterrupto, de cento e quarenta linhas, começando pela letra A e terminando na letra W, nos quais são descritos os diversos e inúmeros tipos de morte de mártires do cristianismo, numa amostragem tétrica do mais legítimo horror, da qual reproduzimos só um pequeno trecho: Agrícola de Bolonha, morto crucificado e espetado com cravos [...] Anastásia de Sírmio, morta na fogueira e com os seios cortados [...] Áurea de Síria, morta por dessangramento, sentada numa cadeira forrada de cravos [...] Barnabé de Chipre, morto por lapidação e queimado [...] Cristina de Bolsano, morta por tudo quanto se possa fazer com mó, roda, tenazes, flechas e serpentes [...] (SARAMAGO, 1992, p ). 182

183 A barbárie e a sanguinolência da narração ocupam cento e quarenta linhas e deixam o leitor perplexo, mas, para Deus, isso é tudo muito enfadonho. Depois de narrar os mortos cujos nomes começam pela letra C, ele diz: Para diante é tudo igual, ou quase... fiquemo-nos por aqui (SARAMAGO, 1992, p. 382). Jesus, porém, exige a continuação do relato da carnificina e Deus continua abreviando o máximo que pode a explicação dos motivos das mortes, numa demonstração de enfado por essa parte do seu plano. Numa alusão à Lista de Schindler, a Oscar Schindler poderíamos falar em uma Lista de Yavé, com uma diferença básica: a de Schindler salvou mais de mil judeus durante o holocausto, e a Yavé condenou centenas, milhares e milhões de seres humanos à morte. O Dicionário de Mortes, a Lista de Yavé continua, até que Deus se mostra cansado e apenas acrescenta depois da letra T: e outros, outros, outros, idem, idem, idem. basta. Jesus quer saber quem são os outros, o que vem depois desse idem. Diante de tanta carnificina, o leitor pode perguntar qual o significado do homem nos planos divinos. E a resposta é dada pelo próprio narrador, num intertexto perfeito com diversas passagens da bíblia: o homem é semelhante a um sopro, os seus dias passam como a sombra... (SARAMAGO, 1992, p. 172). Na sequência da narração dos mortos, com a mesma ironia, Deus passa a relatar a morte dos mártires que tiveram que mortificar a carne e o espírito para suportarem as tentações: "[...] um tal John Schorn, que passou tanto tempo ajoelhado a rezar que acabou por criar calos, onde, nos joelhos evidentemente, e também se diz, isto agora é contigo, que fechou o Diabo numa bota, ah, ah, ah, Eu, numa bota [...] isso são lendas [...]" (SARAMAGO, 1992, p. 386). É interessante notar que Deus ri, mas o Diabo não ri. Georges Minois em História do Riso e do Escárnio informa que o riso não é algo natural no cristianismo, por isso sempre foi atribuído pelos pais da Igreja ao Diabo, que é considerado o Pai do Riso e Pai da Mentira. Aqui, no entanto, é Deus quem ri, o Diabo permanece sério. Temos então o nono atributo do Diabo: o Diabo não ri. O peso do elemento irônico e cômico nas colocações feitas pela personagem Deus é surpreendente, e cabe lembrar que "a ironia, é, sem dúvida, um dos fortes elementos da paródia. É a consciência agindo sobre a tradição" 183

184 (ARAGÃO, 1980, p. 21). Em sua perversidade, a personagem discute com o Diabo os purgatórios futuros de seus filhos, ironizando-os e zombando galhofeiramente deles. Ele continua sua narrativa tétrica, às vezes patética, contando os sacrifícios dos anacoretas, dos monges, suas vidas piedosas para enfrentar demônios, tentações, flagelos, vigílias, orações, até chegar às ordens monásticas da Idade Média. É um sumário perfeito que abrange, praticamente, 1500 anos. Em meio a essa narrativa marcada pelo sangue dos inocentes, o filosófico luciferino Pastor intromete-se na conversa: Observa, como há, no que ele tem vindo a contar, duas maneiras de perder-se a vida, uma pelo martírio, outra pela renúncia, não bastava terem de morrer quando lhes chegasse a hora, ainda é preciso que, de uma maneira ou outra, corram ao encontro dela, crucificados, estripados, degolados, queimados, lapidados, afogados, esquartejados, estrangulados, esfolados, alanceados, escorneados, enterrados, serrados, fechados, amputados, escardeados, ou então, dentro e fora das celas, capítulos e claustros, castigando-se por terem nascido com o corpo que Deus lhes deu, e sem o qual não teriam onde pôr a alma, tais momentos não os inventou este Diabo que te fala. (SARAMAGO, 1992, p. 387). Se a narrativa por posteridade, feita por Deus, sumariando aproximadamente 1500 anos, constrange o leitor pela carnificina ali presente, o sumário do sumário, que se volta para as últimas questões, feito pelo Diabo, tem um efeito desevangelizador definitivo sobre ele. O décimo atributo do Diabo é fornecido por ele próprio: o Inferno e os tormentos foram inventados por Deus, o Inferno não existe, é a própria religião cristã. No Evangelho segundo Jesus Cristo, o sentido da barca é totalmente contrário ao seu significado bíblico, pois aqui ela representa a insegurança e a perdição de todos os homens "nascidos e por nascer". No Velho Testamento a barca salva a família de Noé do Dilúvio, é um espaço de salvação e proteção. Se, no Novo Testamento, os pescadores que remavam nas barcas do mar da Galileia transformam-se em pescadores de homens, aqui dois personagens, presentes na barca, representam o caminho da destruição e da perdição: Deus, aquele por quem os homens se perdem; e Jesus, aquele por meio do qual os homens se perdem. Lúcifer é a única alternativa de salvação. 184

185 Pelo relato que Deus faz, friamente, das centenas de mortes, essa barca remete-nos à barca dos mortos, encontrada em quase todas as civilizações e à figura do barqueiro Caronte, pois [...] a barca dos mortos desperta uma consciência do erro, assim como o naufrágio sugere a idéia de um castigo, a barca de Caronte vai sempre para os infernos. Não existe barqueiro da felicidade. A barca de Caronte seria, assim, um símbolo que permanecerá ligado à indestrutível infelicidade dos homens (CHEVALLIER; CHEERBRANT, 1982, p. 122). O papel desempenhado por Deus na barca assemelha-se ao de Caronte: o barqueiro da morte. Saramago escolhe a barca como cenário do mais importante e tenso momento de todo o livro, e cremos que essa escolha não é aleatória, pois a imagem da barca, representando a dialética do Bem (Deus/Anjo) e do Mal (Diabo/Tentador), pertence à tradição da literatura portuguesa. A barca do ESJC remete-nos à Trilogia das Barcas, do teatrólogo português Gil Vicente, que viveu entre o final da Idade Média e início do Renascimento ( ), em especial ao Auto da Barca do Inferno, auto este que nos apresenta a seguinte situação: num braço de mar estão ancoradas duas barcas, uma ocupada por um Anjo e outra pelo Diabo. 115 Tanto no Auto da Barca do Inferno como no Auto da Alma, o Diabo é descrito como sedutor, malicioso e, principalmente, irônico, acabando por aceitar para si, prazerosamente, os rejeitados pelo Anjo, o que nos remete de volta à fala do Diabo na barca: "[...] limitei-me a tomar para mim aquilo que Deus não quis, a carne, com a sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice, a frescura e a podridão [...]" (SARAMAGO, 1992p. 386). 5 - Deus e o Diabo: Os Heterônimos do Cristianismo 115 Fiel à doutrina teocêntrica de seu tempo e profundo conhecedor da simbologia e alegoria bíblica, Gil Vicente elege, para seus autos, a matéria sagrada e, no Auto da Barca do Inferno, utiliza-se de uma alegoria representativa do combate entre o Bem e o Mal, colocando as almas numa encruzilhada do mar, perante as duas barcas; uma que conduz ao Paraíso (Anjo) e outra que conduz ao Inferno (Diabo). Por seus diversos pecados, as almas sempre acabam sendo rechaçadas pelo Anjo e, inevitavelmente, terminam embarcando no Batel do Diabo. 185

186 Voltemos à análise das evidências do caráter maquiavélico de Deus pois para ele os fins justificam os meios. Ao continuar a narrativa das lutas nas cruzadas, Deus mesmo reconhece o seu estilo sanguinolento: [...] não, não tenho palavras bastantes para contar-te das mortandades, das carnificinas, das chacinas, imagina o meu altar de Jerusalém multiplicado por mil, põe homens no lugar dos animais, e nem mesmo assim chegarás a saber ao certo o que foram as cruzadas [...] (SARAMAGO, 1992, p. 388). Mesmo reconhecendo o seu caráter sanguinário, Deus continua exercitando sua ironia mordaz. O Deus de Saramago é único em sua violência e perversidade, tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento. O Diabo, estupefato perante tanto sangue e crueldade, assim se expressa: Digo que ninguém que esteja em seu perfeito juízo poderá vir a afirmar que o Diabo foi, é, ou será culpado de tal morticínio e tais cemitérios, salvo se a algum malvado ocorrer a lembrança caluniosa de me atribuir a responsabilidade de fazer nascer o deus que vai ser inimigo deste, Parece-me claro e óbvio que não tens culpa, e, quanto ao temor de que te atirem com as responsabilidades, responderás que o Diabo, sendo mentira, nunca poderia criar a verdade que Deus é. Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o Deus inimigo, Jesus não sabia responder, Deus, se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que disse. Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterônimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido, Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é assim, une facilmente as pessoas (SARAMAGO, 1992, p. 390). O Diabo fornece seu décimo primeiro e décimo segundo atributo: não é responsável pela morte dos cristãos, nem tão pouco pela criação do anticristo. O Diabo, em seu discurso, parece fazer referência a dois textos de profecias do Antigo e do Novo Testamento, respectivamente dos profetas Daniel e João. Esses dois livros proféticos apresentam um complexo e riquíssimo simbolismo que envolve estátuas, reinos, animais igualmente simbólicos (bodes, cavalos, carneiros), períodos proféticos (setenta semanas, tardes e manhãs), livros selados, inúmeros anjos, dragões, bestas, pragas, trombetas, 186

187 santuários. Além disso, também falam de um poder que surgiria nos últimos tempos, que se oporia a Deus, a besta, aquela que tem como marca o número 666, enfim o anticristo. Embora esteja fora de nosso alcance e objetivo a investigação mais profunda de toda essa vastíssima simbologia, citamos, para esclarecimento, alguns trechos desses livros bíblicos, que nos auxiliarão em nossas observações: E proferirá palavras contra o Altíssimo e destruirá os santos do Altíssimo [...] (Daniel, 7:25). [...] a besta que sobe do abismo lhes fará guerra, e os vencerá e os matará (Apoc., 11:7). Aquele que tem entendimento, calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis (Apoc., 13:18). Como constatamos nesses trechos, nos livros proféticos são relatados detalhes de uma batalha entre Deus e o anticristo, no final dos tempos. Uma das denominações atribuídas ao anticristo é a besta. E a maior preocupação e temor do Pastor do Evangelho segundo Jesus Cristo é que a criação do Deus inimigo, ou seja, a besta, seja-lhe, injustamente, atribuída no futuro. Novamente, a partir da fala "Parece-me claro que não tens culpa [...]" até "nunca poderia criar a verdade que Deus é" (SARAMAGO, 1992, p. 390), percebemos que estamos diante de uma voz sem dono que isenta o Diabo de qualquer responsabilidade sobre a criação do deus inimigo. Essa voz não é de Deus, nem do Diabo e nem de Jesus, pois é o Diabo quem pergunta e não poderia responder a si próprio, e Deus e Jesus permanecem calados. Surge então a pergunta: quem então está falando? Parece que essa voz sem rosto não é de nenhum dos três, mas ousar é preciso. O narrador posicionase tão favoravelmente ao Diabo e a Jesus, e tão desfavoravelmente a Deus, em virtude do seu desejo insaciável de matar milhões de inocentes, que sua voz se corporifica. O narrador outra-se, juntamente, com o autor implícito (na realidade são duas vozes) e ambos resolvem entrar na barca, tal é a importância desse momento. E entram na barca para quê? Para desevangelizar, explicitamente, o leitor: Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterônimos, De 187

188 quem, de quê, perguntou curiosa outra voz, De Pessoa [...] (SARAMAGO, 1992, p. 389). O diálogo deste trecho remete-nos, sem dúvida, à literatura portuguesa, na medida em que os termos heterônimos e Pessoa estão ligados ao poeta português Fernando Pessoa. 116 Quanto às duas vozes saídas do nevoeiro e que respondem ao Diabo, tendemos a identificá-las, respectivamente, ao narrador e ao autor implícito que sai da sua camuflagem, do seu silêncio e explicita-se, surpreendentemente, no momento mais crucial da narrativa, deixando, ainda que por alguns instantes, o disfarce (Wayne C. Booth) ou a máscara (Wolfang Kayser) 117 cair, para ganhar, se não corpo, uma voz que se mostra apreensiva tal é a gravidade do momento. Essas duas vozes pairam no ar para explicitar aos três e ao leitor o que todos provavelmente já sabiam: o deus inimigo que surgirá. A besta do Apocalipse, o anticristo, não passa de um heterônimo de Deus, reportando-nos a Pessoa, ao seu fenômeno complexo de desdobrar-se em vários outros, o esplêndido caso de sua vasta criação heteronímica. A abordagem do problema da heteronímia cristã na barca denota por si só que estamos diante de uma narrativa dialética. Todas as pistas fornecidas pelo narrador ao leitor agora se esclarecem: a sugestão de abrir Deus e encontrar o Diabo dentro dele; a fala do discípulo Tiago sobre as relações existentes entre Deus e o Diabo; a semelhança física entre os dois; e o interesse dos dois pelos mesmos assuntos. Com todas essas pistas, o narrador quer frisar para o leitor que o Diabo é simplesmente um heterônimo de Deus, ou seja, seu alter ego. Mais antigo que a heteronímia pessoana é o caso da heteronímia cristã (Deus e o Diabo), dialética por excelência. Nessa corporificação das vozes do narrador e do autor implícito, que sai dos bastidores e se desvela aliada às vozes de Jesus, Deus e Pastor, é que transparece a essência polifônica da obra, pois nos é revelado "um mundo em 116 Fernando Antonio Nogueira Pessoa, autor de Mensagem e com vasta obra heteronímica, tem desafiado os críticos da literatura portuguesa contemporânea. Na impossibilidade de citar todos os textos que abordam a questão dos heterônimos de Pessoa, remetemos a um texto clássico de João Gaspar Simões: Vida e obra de Fernando Pessoa. 2 ed. Lisboa: Bertrand, Amadora, [s.d.]. 117 Sobre esta terminologia específica consultar Remédios (1986). 188

189 processo de construção, mundo de elementos que agem e reagem uns contra os outros sem resolução possível" (HAYMAN, 1980, p. 31). É a riqueza do discurso "que se converte em palco de luta entre duas vozes" (BAKHTIN, 1981, p. 168), os múltiplos aspectos do cristianismo, a pluralidade de pensamentos, as diversas falas que se comportam como linhas cruzadas que darão a verdadeira coloração do romance: a carnavalização e a desevangelização do leitor. É um novo evangelho que se constrói por meio da releitura dos Evangelhos primeiros, um evangelho ateológico que se permite debruçar sobre si mesmo e que elabora uma "gênese destruidora" (KRISTEVA, 1974, p. 76). Após esse "susto", o narrador e o autor implícito voltam à sua condição e Deus prossegue na descrição do seu desejo absurdo de matança, revelando as mortes causadas pela Santa Inquisição e toda a sua obra nefasta: Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo será por minha culpa. Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice. Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória. Não quero esta glória. Mas eu quero este poder [...] (SARAMAGO, 1992, p. 391). Notamos que há um certo prazer perverso de Deus ao narrar esses acontecimentos sangrentos, e Jesus tenta, desesperadamente, livrar a espécie humana do papel de cobaias indispensáveis aos planos divinos. O próprio Diabo fica sensibilizado e reconhece a obsessão que Deus tem por sangue: "É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue (SARAMAGO, 1992, p. 391). 6 - O Diabo pede perdão Extremamente assustado com o futuro dos seres humanos, o Diabo resolve fazer uma proposta última e única a Deus: Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar o mundo, a minha proposta é que tornes a receber- 189

190 me no teu céu, perdoados dos males passados pelos que no futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade [...] se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acabase aqui hoje o Mal, teu filho não precisarás morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei, os teus louvores tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como dessa maneira devesse ser sempre [...] (SARAMAGO, 1992, p. 392). Eis o décimo terceiro e mais comovente atributo de Lúcifer: O Diabo pede perdão a Deus. Reconhece que foi sua ambição de ser igual a Deus que o levou à revolta, pede perdão, tenta salvar Jesus do sacrifício e por extensão todos os seres humanos nascidos e por nascer. Seu discurso é substancialmente sagrado. No limiar da barca são tratadas e experimentadas "as últimas posições filosóficas", os limites entre a vida e a morte, o sonho e a realidade, a salvação e a perdição, procedimento típico da menipeia que "procura apresentar, parece, as palavras derradeiras, decisivas e os atos do homem, apresentando em cada um deles o homem em sua totalidade e toda a vida humana em sua totalidade" (BAKHTIN, 1981, p. 99). As últimas atitudes que envolvem o destino dos deuses e dos homens são aqui desnudadas pela visão carnavalesca. O discurso do Diabo é repleto de piedade, tentando salvar o Salvador e, por extensão, toda a humanidade, bem como exorcizar o próprio mal que é Deus. É a instauração da vida às avessas. A inversão do caráter milenarmente atribuído ao Diabo é completa, pois aqui ele se apresenta generoso, arrependido, humilde, bondoso, características essas que, nos Evangelhos, são atributos divinos, ou seja, o Diabo aqui é o paradigma perfeito do Bem. Quando ele sai das águas e entra na barca da morte, temos a seguinte informação do narrador: "[...] era, o leviatã surgindo das últimas profundidades, era, como se viu, passados todos estes anos, o Pastor [...]" 190

191 (SARAMAGO, 1992, p. 367). Vale aqui nos determos sobre a sua simbologia: "Na Bíblia temos um monstro do mar comumente chamado Leviatã, que é descrito como o inimigo do messias, e que está destinado a ser morto pelo Messias..." (FRYE, 1973, p. 188). De monstro inimigo que deveria ser destruído pelo Messias, o Leviatã, pelo contrário, nesse evangelho entra na barca para salvar o próprio Jesus e todos os seres humanos. Mas são constantes, na carnavalização, as imagens biunívocas: bem x mal, dia x noite. A esse bem que o Diabo representa com a sua suma virtude, a esse caráter santo que o narrador lhe concede, Deus, cruel e maldosamente, opõe-se com veemência: Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Por quê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, [...] enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como o Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro [...] (SARAMAGO, 1992, p. 343). Estamos diante de uma outra característica da carnavalização: a profanação. O caráter de Deus, em sua postura impiedosa de não conceder o perdão, da obstinação em manter o mal, é extremamente profanado. Por mais estranho que isso possa parecer, Deus é o Diabo nesse evangelho e o Diabo é o Salvador do Salvador. Pastor, após ver seu plano de salvação frustrado, diz: "Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus [...]" (SARAMAGO, 1992, p. 393). Jesus vai ao deserto (mar), para ser tentado por Deus, durante quarenta dias, e a sua salvação é proposta pelo Diabo. É o contraste entre o sagrado e o profano, entre o bem (Diabo) e o mal (Deus). Ao não aceitar o perdão suplicado pelo Diabo, Deus condena o Filho de José e todos os seres humanos ao papel de inexoráveis cobaias e, ao Diabo, heterônimo de Deus, o pior dos castigos: sempre existir e nunca ser perdoado. Deus, o Diabo e Jesus formam uma nova Trindade, complexa, estranha e extremamente desunida. Primeiro pensamos em uma nova Trindade (Deus, Jesus e o Diabo). Descartamos esta hipótese porque o mortal Jesus não passa de uma 191

192 cobaia nas mãos de Deus, não está à altura para ombrear com Deus e o Diabo, e não poderíamos ter uma Trindade dupla. Nossa segunda hipótese aponta para o caso típico de um monoteísmo, paradoxalmente duplo, que difere do monoteísmo trinitário cristão. O monoteísmo deste evangelho profano é um monoteísmo com duas faces, calcado em gêmeos siameses. Dessa forma, Lúcifer não seria, como já chegamos a elucubrar, o quarto homem da Trindade, porque afinal o Espírito Santo não está presente no livro de Saramago. Não seria o terceiro homem da Trindade, porque o Jesus de Saramago é demasiadamente humano para se comportar como segunda pessoa da Trindade, tampouco seria o segundo homem, porque Lúcifer tem forças e poder igual a Deus, portanto, reiteramos que se trata efetivamente de um monoteísmo duplo e maniqueísta: as duas faces de uma divindade só, inseparáveis até o final de toda a existência. O que o Deus de Saramago confirma é que o mal é essencial para a existência e fundamentação do cristianismo. Manso e Luna afirmam que No cristianismo, a presença do Mal, ainda que despido de formas concretas, é essencial como em nenhuma outra religião [...] O catolicismo se define por essas oposições absolutas: o bem contra o mal, o santo versus o pecador, a salvação contraposta à condenação, a castidade de um lado, o sexo do outro... (MANSO; LUNA, 1999, p. 58). Recapitulemos alguns fatos sobre o personagem Diabo: é ele quem anuncia o nascimento de Jesus a Maria e quem deposita, na tigela, uma terra que, estranhamente, brilhava; é ele quem acompanha Maria, com aparições fantásticas, durante toda a sua gravidez; é ele quem aparece na cova após a matança dos inocentes de Belém para acusar José e, por extensão, Maria também; é o Diabo quem, treze anos após esse fato, vem a Belém para levar consigo uma planta enigmática que nascera onde a tigela fora enterrada; é ele quem aparece para Jesus em Belém na gruta e o convida para ser ovelha do seu rebanho; é ele quem, durante quatro anos, ensinará a Jesus lições de sabedoria; é o Diabo, o Bom Pastor, que salva as suas ovelhas, não permitindo que sejam sacrificadas; é ele quem sobe à barca, na condição revelada de Leviatã, com a 192

193 estranha missão de salvar aquele que seria o salvador e, por extensão, todos os seres humanos nascidos e por nascer. Com relação a seu nome Pastor, pelo qual prefere ser chamado, temos a esclarecer, segundo Cassirer (1972, p. 68) que "o nome não é nunca um mero símbolo, sendo parte da personalidade do seu portador [...]" É na barca que percebemos a extensão da sabedoria do protagonista desse evangelho ateológico. Quando pede humildemente perdão, confirma a grandeza e nobreza de seu caráter. O Diabo, realmente, tentou Deus nesse quinto evangelho: pede perdão e ele não o perdoa; pede que Deus evite a morte de Jesus e de milhares e de milhões de pessoas, e ele não evita. O Pastor quer destruir a futura Lista de Yavé, mas não consegue impedir que Jesus se torne uma espécie de exterminador do futuro, mesmo contra sua vontade. De todas as personagens discriminadas pela doutrina cristã e que são resgatadas neste desevangelho de papel e tinta, o Diabo é a que merece uma especial atenção do narrador, que se empenha em sua sacralização, redimindo-o definitivamente do papel milenar de vilão que lhe é atribuído pelos Evangelhos e pela Igreja Católica, já que o papel de vilão, aqui, é destinado a Deus. A carnavalização do Diabo é completa, pois aqui ele é o Bom Pastor, o Redentor, o Clemente, o Justo, o Humilde. Novamente estamos diante das "diversas violações da marcha universalmente aceita e comum dos acontecimentos [...]" (BAKHTIN, 1981, p. 101). Quando o narrador revela que Jesus é "o evidente herói deste evangelho" (SARAMAGO, 1992, p.240) está destilando sua ironia, pois sabe muito bem que o evidente herói desse quinto evangelho é a magistral personagem do Diabo, pois é ele quem, na barca, enfrenta Deus de igual para igual, tentando salvar todos os seres humanos nascidos e por nascer, e salvar o próprio Messias. 7. Summa Diabológica: o Diabo merece ser perdoado 193

194 A vida do italiano Giovanni Papini ( ) nos mostra a trajetória de um dos intelectuais mais polêmicos e contraditórios de seu tempo, tendo participado de diatribes de toda sorte, sido excomungado e tido dois livros no Index do Vaticano, e concluído seus dias, em 1956, como um católico devoto. Foi jornalista, crítico, teólogo à sua maneira, poeta e novelista. Seu livro O Diabo foi tema de grandes discussões e controvérsias. Esse livro, publicado em 1953, apresenta na contracapa o subtítulo Apontamentos para uma futura Diabologia. Sua previsão estava certa, já que mesmo consultando todas as biografias atuais que constam na bibliografia final deste ensaio, ninguém foi mais longe no cerne da problemática de Lúcifer que ele. Papini escreve do ponto de vista de um cristão católico e suas pertinentes colocações, assombrosas, foram elucubradas cinquenta anos antes desta temática vir à tona. Ele avisa que é um livro escrito por um cristão leal que serenamente busca entender a sina e a essência do Diabo e por isto sua perspicácia nos encanta e assombra. Só no primeiro capítulo já constatamos a pertinência de sua análise, que se não responde às perguntas que levantamos no início deste artigo, formula outras questões ainda mais constrangedoras para o cristianismo e acrescenta algumas saídas. Ele aponta os seguintes problemas na relação Teologia x Lúcifer e Cristianismo x Lúcifer: 1) os Teólogos deveriam estudar Deus e se envergonhar de suas ideias ridículas sobre o Diabo; 2) que se Teólogos (envergonhados) e Filósofos desertaram desse assunto, coube aos poetas a admiração pelo grande Adversário; 3) que o Demônio recuperou atualmente os seus direitos de cidadania; 4) que o Diabo é pouco conhecido, apesar de onipresente, ora negado, ora adorado, ora temido, ora decantado, vilipendiado, mais popular que realmente compreendido, portanto, é preciso enxergá-lo com olhos novos, acercá-lo com novo espírito (PAPINI, 1954, p. 15); 5) que o cristão não pode e não deve amar a rebeldia e o mal de Satã, mas pode e deve amar nele a criatura mais infeliz de toda a Criação; 6) se o mal não existisse, não existiriam santos e nesse sentido pode-se afirmar que o Diabo é, por vontade divina, um coadjutor de Deus; 7) que o Diabo foi o primeiro a reconhecer o caráter crístico de Jesus, antes de qualquer de 194

195 seus discípulos e antes mesmo de que o próprio Nazareno tivesse proclamado sua divindade etc. Transcrevemos em seguida algumas perguntas mais contundentes de Papini neste capítulo inicial de sua obra, a qual já nos revela como ele foi capaz de especulações teológicas muito à frente de sua época. Referindo-se a Lúcifer, ele pergunta: Mas é lícito, a um cristão, odiar o inimigo? Logo em seguida ele mesmo responde categoricamente: Os cristãos, até à data, não têm sido bastante cristãos para com Satanás. Na sequência aconselha que os cristãos devem amar o Arcanjo que um dia foi o mais próximo de Deus, acrescentando que salvando-o do ódio de todos os cristãos, todos os homens serão para sempre salvos do seu ódio (PAPINI, 1954, p. 15). Outro ponto levantado por Papini é se o sacrifício de Jesus não teria sido suficiente para a história dos homens e de Lúcifer; por que, afinal, a história da Salvação teria que ter necessariamente 3 atos (queda, redenção e Armagedom)? A cruz não foi o suficiente, o sacrifício de Jesus não foi o bastante? O polêmico crítico acrescenta: Não poderá dar-se que Ele tenha querido libertar-nos da escravidão do Demônio, na esperança de que os homens, por seu turno, possam libertar-se o Demônio da sua condenação? Não poderá dar-se que Cristo tenha redimido os homens a fim de que estes, mediante o divino preceito de amar os inimigos, venham, a ser dignos de sonhar um dia a redenção do mais funesto e obstinado Inimigo? (PAPINI, 1954, p. 17). Papini é cristão até as últimas consequências do cristianismo, até as mais temerárias. E a pergunta temerária que não pode se calar tanto para Orígenes de Alexandria, como para Papini e Saramago é: um Deus definido como absoluto amor não deveria perdoar o Diabo, já que um dos maiores mandamentos é amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem? Em sua Teologia do Ateu, Saramago redime o Pastor e transforma-o num verdadeiro e outra vez Lúcifer, No sentido daquele que tenta espalhar luz. Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, a origem do nome é esta: "Do latim Lucifer, 'o que leva o archote', 'a estrela da manhã (FERREIRA, 1986, p. 1051). Ou ainda, de acordo com a própria tradição cristã, o primeiro nome atribuído ao Diabo, antes da expulsão do mesmo dos céus, tradição essa que se baseia na esplendorosa descrição do Diabo, antes da sua queda, feita pelo profeta Ezequiel no cap. 28 de seu livro, do qual citamos apenas o versículo 14: "Tu eras querubim ungido para proteger, e te estabeleci: no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas". 195

196 aquele que porta a luz, a saída, a esperança. Orígenes de Alexandria ( ) já defendia a ideia de que no final dos tempos Deus perdoaria Lúcifer. Papini vai ao encontro das posições de Orígenes. Saramago também, em seu romance, dá essa chance para que Deus perdoe o Diabo, mas o personagem Deus rejeita a chance. No documento publicado pelo Vaticano em fevereiro de 1999, denonimado De Exorcismis et Supplicationibus Quibusdam (De Todos os Gêneros de Exorcismos e Súplicas), a Igreja Católica reafirma sua fé no Maligno, sua confiança na vitória de Cristo e, acima de tudo, uma inesgotável capacidade de reinventar, pela enésima vez, um inimigo que purga todos nós da culpa essencial. Somos mal por influência demoníaca (1999 apud MANSO e LUNA, 1999, p. 59). Para a Igreja, Orígenes, Papini e Saramago estão errados: Deus não pode perdoar o Diabo, não seria Deus se fizesse isto. Papini termina o primeiro capítulo do seu livro informando que talvez Satanás esteja desde o princípio esperando um movimento de compaixão de Deus, de Jesus, dos cristãos, dos homens. O pensamento de Orígenes, de Papini e de Saramago ecoam na bonita canção O Trem das 7, do compositor brasileiro Raul Seixas ( ), o maluco beleza que não controlava a sua maluquez, pelo contrário, tinha muita lucidez, que nasceu há dez mil anos atrás e que não tinha nada neste mundo que ele não soubesse demais, que preferia ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo 119 mistério inexplicável! Apocatastasis, do grego ἀ ποκαηάζηαζις, seria a solução para um Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons 119 Música famosa de Raul Seixas (1973) 196

197 Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral. 120 BIBLIOGRAFIA ARAGÃO, Maria Lucia P. A força do destino. In: Sobre a paródia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, AZEVEDO, Álvares de. Macário. Biblioteca virtual do Estudante de Língua Portuguesa. Disponível em: < Acesso em: jan BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, BAUDELAIRE, Charles Pierre. Litanias de Satanás. Disponível em: < Acesso em: 14 maio BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, [s.d.]. Edição revista e corrigida. CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, CHEVALLIER, Jean; CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2.ed. Tradução de Vera da Costa e Silva et alii. Rio de Janeiro: José Olympio, COUSTÉ, Alberto. Biografia do diabo. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record, (Coleção Rosa dos Tempos). FRYE, Northrop, O Código dos Códigos - A Bíblia e a Literatura. Tradução de Flavio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, Terceiro Ensaio Crítica arquetípica / teoria dos mitos. In: Anatomia da crítica. Tradução de Péricles E. da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, GOMES, Antônio Martins. A última tentação de Saramago. In: Jornal de Letras. Lisboa: [s.n.]. Jan. 1992, p. 13. HAYMAN, David. Um passo além de Bakhtin Por uma mecânica dos modos. In: Sobre a Paródia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, p. 31. KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: Introdução à semanálise.tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, Disponível em: < Acesso em: 02 ago

198 LINK, Luther. O Diabo. A máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. A Igreja do Diabo. In: Histórias sem data. Rio de Janeiro: Globo, (Obras Completas).. O Anjo Rafael. In: Banco de Dados do NUPIIL. Disponível em: < Acesso em: fev MAGALHÃES JR, Raimundo. O Diabo Existe? Tomo I. Rio de Janeiro: Arte Nova, MANSO, Bruno Paes; LUNA, Fernando. Satã entre nós. Revista Veja. São Paulo, ano 32, ed. 1583, nº 5, fev MARTINS TERRA, J. E. Existe o Diabo? Respondem os Teólogos. São Paulo: Loyola, MESSADIÉ, Gerald. História Geral do Diabo Da Antiguidade à Época Contemporânea. Tradução de Alda Sophie Vinga. Portugal: Europa-América, MILTON, John. Paraíso Perdido. Tradução de António José de Lima Leitão. Disponível em: < Acessado em 12 abr MILES, Jack. Deus Uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. 3 reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Tradução de Maria Helena Ortiz Assumpção. São Paulo: Unesp, NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no Imaginário Cristão. São Paulo: Ática, OLIVEIRA FILHO, Odil José de. Uma novela diabólica: as obras do Diabinho da Mão Furada. Disponível em: < Acesso em: 02 ago PAPINI, Giovanni. O Diabo. Tradução de Fernando Amado. Lisboa: Livros do Brasil, PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, QUEIRÓS, Eça de. O Senhor Diabo. Disponível em: < Acesso em 28 mar

199 REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. O Romance português contemporâneo. Santa Maria: Edições UFSM, GUIMARÃES ROSA João. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. 2.ed. Lisboa: Bertrand, Amadora, [s.d.]. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A atualidade de Satanás. Revista Veja, São Paulo, p , jul Cristo e o Deus cruel. Revista Veja, São Paulo, ed. 1207, p , nov IMAGENS Lúcifer. Disponível em: < _oq4vvjppmmuvzexpj5axmkmzavj2zwphgr>. Acesso em: 27 jul Anjo Caído (no meio do texto). Disponível em: < jxaswrv3mr8/tclsih0c_li/aaaaaaaaakm/un1omhhtbuy/s1600/anjo+caido.jpg>.acess ado em: 28 mar

200 Lúcifer, O Adversário 200

201 A desgraça de um Fausto sem Mefistófeles: Macário de Álvares de Azevedo Rozalir Burigo Coan & Tânia Mara Moysés 201

202 A DESGRAÇA DE UM FAUSTO SEM MAFISTÓFELES: MACÁRIO DE ÁLVARES DE AZEVEDO Rozalir Burigo Coan Tânia Mara Moysés O homem do Romantismo é aquele que se depara com a sua identidade fragmentada, em decorrência de um individualismo subjetivado pela negatividade, que, segundo Antonio Candido em A Formação da literatura brasileira (1981), é a mais significativa manifestação do espírito romântico. Essa fragmentação é fruto do pensamento burguês que se instalava. Pensamento centrado na liberdade de expressão, nas iniciativas e nas concorrências que contaminavam o novo homem que se viu em condições de buscar infinitas chances de autorrealização. O desconforto e as desilusões que essa ordem social provocou, negando aos românticos a promessa de restituir a felicidade individual, criou um distanciamento entre indivíduo e sociedade. Essa disjunção provocou, nos artistas da época, um sentimento de revolta e pessimismo que os fez recorrer ao passado, às lendas, aos estados de sonho. Essa atitude de evasão vem sublinhar a fragmentação do indivíduo. Decorre, daí, a dualidade, o desdobrar-se em outros, a comercialização da alma, da sombra. O homem-demônio é a dualidade mais cotada entre os românticos. Esses buscam Satã para fugir das imposições, com o intuito de descobrir outros mundos, como afronta à sociedade vigente, de provocar escândalos e de romper com os grilhões do Neoclassicismo. Carlos Roberto Nogueira, em O diabo no imaginário cristão, confirma esse pacto do homem com Satã e a tramitação deste no mundo literário quando diz que O Romantismo transformará Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre [...] Satanás significa liberdade, progresso, ciência [...] O diabo passa a representar rebelião contra a fé e a moral tradicional, representando a revolta do homem, mas com a aceitação do sofrimento porque este é uma fonte purificadora do espírito, uma nobreza moral, da qual só pode surgir o bem da humanidade (2000, p ). 202

203 A literatura romântica contribuiu muito para a reabilitação do Diabo. A partir de então, a relação entre o Diabo e a poesia é muito forte porque o poeta é um intérprete, pontífice, sacerdote do sagrado. Desta forma, o demoníaco tornase o símbolo do Romantismo: demoníaco como paixão, como terror do desconhecido, como descoberta do lado irracional existente no homem: a explosão da imaginação contra obstáculos excessivos da consciência e das leis (NOGUEIRA, 2000, p , grifo nosso). Objetivamos neste artigo analisar a presença do Diabo na obra literária Macário de Álvares de Azevedo, à luz dos estudos sobre teopoética, a partir do diálogo interdisciplinar possível entre Teologia e Literatura, como preconiza Karl- Josef Kuschel em sua obra Os escritores e as escrituras: Retratos teológicoliterários (1999). Nossas reflexões centram-se na obra de Kuschel, no livro O Diabo no imaginário cristão de Carlos Roberto F. Nogueira (2000), no livro Biografia do Diabo: o Diabo como a sombra de Deus na história de Albert Cousté (1996) e na Bíblia Sagrada na versão de João Ferreira de Almeida (1968). Álvares de Azevedo ( ), seguindo os passos de outros românticos, mantém em sua obra uma conversa quase amigável com o Diabo. Segundo Roger Monteiro em seu ensaio Da didática infernal: breves palavras a respeito do caráter do diabo na obra de Álvares de Azevedo, trata-se de uma das poucas aparições do Demônio personificado na literatura brasileira. Assim, dando voz ao Diabo, deixando de lado uma mera apologia, Álvares eleva o seu Diabo ao plano divino. O drama é estruturado em uma introdução e dois episódios, sendo o primeiro cenário Numa estalagem da estrada e o segundo Na Itália. Segundo José Veríssimo, em História da Literatura Brasileira (1963), o poeta quis transportar para a mesquinha vida de São Paulo, a cidade natal, em seus tempos de acadêmico de Direito, costumes e práticas do romantismo europeu. Quis praticar as façanhas sentimentais dos heróis de Musset e Byron e Macário é uma prova do que foi capaz (1963, p. 218). É interessante observar que não falta a Álvares de Azevedo a preocupação com teoria da literatura, pois esclarece, na introdução do drama que 203

204 ele nomeia Puff, 121 a sua intenção se houver tempo e vagar de publicar algumas suas ideias teóricas sobre o drama, alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro espanhol e o teatro grego (AZEVEDO, 1973, p. 97). Macário, publicação póstuma de 1855, tem sua ambientação ligada à Noite na taverna (1949), obra em que os excessos do spleen, 122 conjugados à bebida, ao fumo e às paixões de ocasião agradam ao Diabo (primeiro episódio). O jogo de espelhos, em confabulações de luz e sombra, revela o poeta dividido, por meio das imagens contrapostas de Macário 123 e Penseroso, 124 personagem do segundo episódio. Macário duro, cruel, cético; Penseroso doce, terno, frágil e crente. O primeiro episódio se passa, no início, em uma estalagem onde Macário, viajando sob uma chuva torrencial e, cansado da viagem no lombo de um burro frouxo, entra para restabelecer-se com vinho, cama e ceia. O Diabo apresenta-se primeiramente como O Desconhecido que, ao entrar como novo hóspede, mostrase cordial ao oferecer vinho e cachimbo a Macário ao longo da conversa que se inicia: Boa noite, companheiro. Logo depois, confirma a impressão de Macário de já o ter conhecido e se descreve como no primeiro encontro: Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna... (AZEVEDO, 1973, p ). Macário o reconhece também pela sensação de frio que o toque da bota lhe havia causado Tal e qual... por sinal que era fria como o focinho de um cão, e que se repete no toque das mãos: Tendes as mãos tão frias (AZEVEDO, 1973, p ). Como observa Nogueira, a partir do século XIII, Satã torna-se o Grande Destruidor e os teólogos começam a enumerar os sinais de sua presença, para 121 Tragada [de um cigarro]; nuvem [de fumaça]; sopro [de vento] sopro [ato de soprar]. LONGMAN. Dicionário Escolar. CD-Rom multimídia. Copyright Pearson Education Ltd Spleen: palavra inglesa que sugere tédio, depressão, inatividade, estando geralmente ligada à ideia do mal do século. Em Spleen e Charutos, Álvares de Azevedo aproxima um estado de espírito e um objeto concreto e prosaico, mencionado repetidas vezes em sua obra: [...] Ó lua, ó lua bela dos amores,/se tu és moça e tens um peito amigo,/não me deixes assim dormir solteiro,/à meia-noite vem cear comigo![...] (Azevedo, 1982, p. 39, também nota 23 no mesmo livro). 123 Segundo Regina Obata (1986, p.204), Macário vem do grego Machaera, espada ou o que leva a espada. Interpretado também como originado de Makarios, o que alcançou a felicidade, derivado de Makar, feliz, afortunado. Macário é também aquele que carrega as macas nos hospitais. 124 Penseroso vem de pensero (de uso obsoleto literário, pois a grafia atual é pensiero) e é o adjetivo para pensativo, no italiano atual Pensieroso: che è assorto nei propri pensieri, specialmente preoccupanti: essere, starsene pensieroso che rivela preoccupazione: avere un aria, un espressione pensierosa (De Mauro - dizionario elettronico). Vide bibliografia final. 204

205 defesa do homem, com a ajuda dos ministros da Igreja. Um desses sinais está relacionado também à sensação de frio quando o exorcizado sentisse descabidamente, um vento frio ou quente na cabeça (2000, p ). O inferno dantesco é de fogo, mas também de gelo, já que Lúcifer está nas profundezas afundado no gelo até a altura do peito. 125 Nogueira lembra também que, de acordo com a tradição, não obstante seus disfarces, o Diabo, enquanto espírito, não tem aspecto corpóreo: Sendo o homem, submergido na cultura e mentalidade próprias de cada época, quem o pinta com estas ou aquelas cores. Ou seja, se o demônio, em si, está além da história, a sua representação [...] é sempre produto da história (2000, p. 8, grifo nosso). Vale a pena observar que Álvares de Azevedo parece ser bafejado pelo espírito do futuro quando, em um lampejo, usa o termo que Bakhtin, nascido quase meio século depois, consolidou, quando observa sobre seu Macário: Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo, não importa. Não o fiz para o teatro; é um filho pálido dessas fantasias que se apoderam do crânio e inspiram a tempestade a Shakespeare [...] (AZEVEDO, 1973, p. 99). Para Bakhtin, ao tratar Marxismo e filosofia da Linguagem, toda palavra comporta duas faces ao servir de expressão a um em relação ao outro, em determinado contexto (2004, p. 113). Assim, a interação entre Macário e Satã, ou entre ele e Penseroso, ou até em seus monólogos, é retórica, enquanto persuasiva. Isso porque, ensina o linguista em Questões de Literatura e de Estética, os gêneros retóricos conhecem as formas mais variadas de transmissão do discurso de outrem, e na maioria dos casos, fortemente dialogizados. (1998, p. 152). E é a partir da leitura de Bakhtin que se pode observar a ideologia do Romantismo a conflitar consigo mesma, na dualidade representada por Macário e Penseroso, pois: Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte 125 ALIGHIERI, Dante, 1994, p. 172: Lo mperador del doloroso regno/ Da mezzo il petto uscia fuor/de la ghiaccia (Canto XXIV vv ) 205

206 influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia (2004, p. 119). Não faltam também em Macário leves traços da menipeia que, segundo Julia Kristeva, em sua obra Introdução à semanálise, por ser um gênero carnavalesco (nos termos de Bakhtin) é capaz de penetrar em outros gêneros, dado que sua característica é a de ser simultaneamente cômica e trágica (1974, p. 82). Macário está furioso com a estalajadeira (aparece como a voz ) na confusão que faz quando lhe pede para desatar a mala do burro: Desate a mala de meu burro e tragam-me aqui... O burro? A mala, burro! A mala com o burro? Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca (AZEVEDO, 1973, p. 106). É O Desconhecido que o acalma, pois conversam sobre seus (des) gostos, arte poética, mulheres desvirtuadas, amor carnal e espiritual, virgindade, prostituição, crítica aos (não)religiosos e ceticismo: Admira-me uma coisa. Tens 20 anos: deverias ser puro como um anjo, e és devasso como um cônego! Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma água pura e o mais das vezes só tem lodo. Palavra de honra, que às vezes quero fazer-me frade. Frade! Para quê? (AZEVEDO, 1973, p. 116). Nessa perspectiva, estando o Diabo dialogando por toda a obra, o autor coloca-se em uma posição particularmente estranha do ponto de vista dos outros românticos brasileiros. A natureza aqui fica em segundo plano, servindo de pano de fundo. O Diabo e a morte são os personagens centrais do mundo de Álvares de Azevedo, na voz de Macário: Gosto muito mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo do que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos pássaros, luar sonolento, as noites límpidas, acho isso tudo sumamente insípido. Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono (AZEVEDO, 1973, p. 109). 206

207 Estabelece-se um pré-pacto entre Macário e O Desconhecido Aperta minha mão. Quero ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome. [...] Aperta minha mão. Até sempre: na vida e na morte! e finalmente O Desconhecido se revela: Eu sou o diabo. Boa noite, Macário (AZEVEDO, 1973, p. 117). Monteiro esclarece que com essa frase, Álvares de Azevedo é o primeiro romântico brasileiro a dar voz ao Demônio, a conceder-lhe o dom da palavra, o Verbo (MONTEIRO, 1997, p.145). Macário alegra-se com a revelação e, desse momento e adiante, seu interlocutor é sempre identificado por ele como Satã, o que denota intimidade: Boa noite, Satã. [...] O diabo! Uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles... Olá, Satã! (AZEVEDO, 1973, p. 118). 126 Satã, no livro de Jó, lembra Nogueira, era um dos filhos de Deus antes da queda e é a causa de todos os tormentos que são enviados ao servo de Deus. O crítico esclarece ainda que Gradualmente, Satã passa de acusador a tentador, tornando-se o Diabo por excelência, em sua tradução grega Diábolos isto é, aquele que leva a juízo que rapidamente se transformará na entidade do Mal, no adversário de Deus (2000, p ). O Diabo, como propõe Cousté em Biografia do Diabo: O Diabo como a sombra de Deus na história, também sob o ponto de vista da contradição, na imitação de Deus, deve ter um nome espantoso e secreto, cuja enunciação bastaria para desencadear as mais ferozes consequências (1996, p. 30). Assim, durante todo o drama, somente dois nomes são utilizados com referência ao mal: Satã e Diabo. Macário e Satã continuam a viagem juntos em busca do burro de Macário, o qual teria se soltado e extraviado. Num caminho (é assim que continua a história), Satã aparece montado num burro preto [que lhe pertence]; Macário na 126 Essa passagem também exige um leitor modelo, ou seja, uma altíssima capacidade literária do leitor para o reconhecimento da alusão ao Fausto de Goethe. Todos os negritos neste artigo são de autoria das articulistas. 207

208 garupa e Satã revela pela primeira vez que conhece Jesus: E [...] este burro descende em linha reta do burro em que fez a sua entrada em Jerusalém o filho do velho carpinteiro José. Vês pois que é fidalgo como um cavalo árabe (AZEVEDO, 1973, p ). Satã aceita a provocação de Macário quando esse lhe fala da tradição que conta que, quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões, mas contesta a última parte: Essa história é uma mentira. O que Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas virtudes humanas senão a encarnação do orgulho? (AZEVEDO, 1973, p. 122). Neste jogo, chegam à casa de Satã, defronte do cemitério e concordam em cear antes de continuar o trajeto, por meio das paródias, respectivamente de Macário e Satã, que representam uma clara usurpação da oração que Jesus ensinou: Fiat voluntas tua. Amen! (AZEVEDO, 1973, p. 123, itálico no original). Durante o jantar, Satã revela-se além do ponche vermelho e preto, confirmando-se como tal diante da dúvida de Macário, e ironicamente cristão : [...] De certo que querias ver-me nu e ébrio como Calibã, envolto no tradicional cheiro de enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos: porque tenha luvas de pelica, e ande de calças à inglesa, e tenha os olhos tão azuis como uma alemã! Queres que to jure pela Virgem Maria? (AZEVEDO, 1973, p. 124). Satã, como lembra Nogueira, junto com seus demônios, são mestres e especialistas do disfarce. Leitor de Shakespeare, Álvares de Azevedo evoca aqui um dos disfarces de Satã, como Calibã, monstro disforme e selvagem, presente em A Tempestade de Shakespeare, que é filho da terrível bruxa Sicorax. O mago Próspero faz tudo para civilizar Calibã, mas seus esforços são inúteis. O personagem monstruoso permanece preso a sua animalidade e funciona como uma metáfora clara da face irracional e instintiva do homem (MODESTO, 2006). Porém, nessa cena de Macário, Satã se apresenta em sua reivindicação antropomórfica, que começou por volta do século XVI, a ofertar outras imagens que escapassem ao que Cousté chama de excessos medievais. 208

209 Além de conhecedor do poder do sagrado, desta feita na alusão a Maria, Satã chama a atenção para o vapor do charuto : É uma bela coisa o vapor de um charuto! E demais, o que é tudo no mundo senão vapor? A adoração é incenso e o incenso o que é? O amor é o vapor do coração que embebeda os sentidos. Tu o sabes a glória é fumaça (AZEVEDO, 1973, p. 124). Nogueira lembra o caráter difuso de Satã, cuja dissimulação se dá em convincentes corpos externos, compostos de ar, vapor, fumaça [...], assumindo qualquer forma que quisessem (2000, p. 61). Aqui, Satã usa da ironia para desdenhar o vapor nos rituais da sacralização. Satã revela-se tão ou mais culto que Macário, ambos dialogam sobre grandes temas da humanidade, como o amor e a morte, a partir da filosofia e da literatura e, diante da tristeza de Macário, Satã se oferece para alegrá-lo com guitarra e modinha. É novamente Nogueira a fazer o registro histórico da tradição cristã, quando lembra que ele pode aparecer como um homem galante [com] uma atração especial pelas conversas piedosas e argumentos teológicos (2000, p. 62). Cousté também observa que o Diabo tem um porte arrogante, maneiras suaves e pausadas e gosta de vestir-se como um cavalheiro (1996, p. 27). E tudo acontece a partir da meia-noite, a hora amaldiçoada [...] que faz medo às beatas, e que acorda o ceticismo. Macário pergunta a Satã se é verdade que é essa a hora [em que] vagam espíritos, [em] que os cadáveres abrem os lábios inchados e murmuram mistérios (AZEVEDO, 1973, p. 129). Macário sente frio, Satã nada lhe responde, mas lhe promete um sono bem profundo e fundo como o de um morto (AZEVEDO, 1973, p. 129). O anjo rebelde e os poetas do Romantismo eram caracterizados por se mostrarem insatisfeitos com seu universo, mostravam-se contra as regras que regiam seus mundos, cuja pena era a solidão e o inferno. São imagens características desse movimento, a presença de cemitérios, caveiras, a idealização da mulher, a exaltação da morte, contudo, o tema principal é a fuga da realidade. Colocando o Diabo no centro de seu universo lírico, o autor enaltece o herói romântico por excelência. Sendo o amor exacerbado e a rebeldia formal contra os modelos do Neoclassicismo a chave mestra do Romantismo, ninguém 209

210 melhor do que Lúcifer para representar tudo isso, como esclarece Cousté (1996, p.21): [...] o Diabo deixou-se dominar pela impaciência quando viu que o Senhor criava o homem à Sua Imagem e colocava sob a potestade dessa Imagem todos os seres criados. Se tivesse suportado essa decisão de Deus não teria sentido dor, e se não tivesse sentido dor não teria experimentado ciúmes do homem. Tanto é assim, que enganou o homem porque estava com ciúmes dele. O ciúme é próprio do amor romântico e como consequência vem a destruição do objeto amado. O Diabo, em Macário, veio cumprir seu papel, o de Anjo Arrebatador, o de Príncipe das Trevas. Aparece, às vezes, como mero interlocutor, às vezes, como mediador. Ambos confundem-se, são cheios de ironia e tédio. O Diabo arrasta a sua presa para um cemitério, e ali, sobre um túmulo, faz com que esta adormeça e sonhe, referência à fuga romântica da realidade por meio dos sonhos. Macário, então, mergulha nas trevas. Lá onde o ar é abafado... sem nuvens e sem estrelas (AZEVEDO, 1973, p. 131). No cemitério, deitado sobre um túmulo, com a mão de Satã sobre seu estômago, ele acorda e conta o seu sonho, fruto de meia hora de sono que lhe parece ter durado um século. Sonho horrível com uma mulher de corpo perfeito como de um anjo, lívido, olhos vidrados, lábios brancos e unhas roxeadas. Satã lhe descreve o lugar em que a viu, uma torrente que transbordava de cadáveres, e a descreve como um anjo que há 5 mil anos [...] tem o corpo de mulher e o anátema de uma virgindade eterna, [com] todas as sedes, todos os apetites lascivos, mas não pode amar [e] todos aqueles em que toca se gelam. Satã acrescenta que essa estátua ambulante é quem murcha as flores, quem desfolha o outono, quem amortalha as esperanças (AZEVEDO, 1973, p ). Macário sonha com a figura de uma mulher, aqui representada como o amor carnal, tão desdenhado pela idealização romântica. A mulher, aqui, é o anjo caído, o Diabo: mulher divina, porém pérfida. Nogueira (2000, p. 46) relata que, nas tentações de Santo Antônio, a partir do pensamento luxurioso e preocupações com dinheiro, finalmente o Diabo aparece sob a forma de mulher. 210

211 Talvez por esse motivo, Satã não responda à pergunta de Macário sobre a identidade do anjo e passa a perguntar-lhe sobre suas visões. Macário lhe descreve, então, o inferno (sem mencionar tal palavra): [...] Eram mil vozes que rebentavam do abismo, ardentes de blasfêmia! Das montanhas e dos vales da terra, das noites de amor e das noites de agonia, dos leitos do noivado aos túmulos da morte erguia-se uma voz que dizia: Cristo, sê maldito! Glória, três vezes glória ao anjo do mal! E as estrelas fugiam chorando, derramando suas lágrimas de fogo... E uma figura amarelenta beijava a criação na fronte, e esse beijo deixava uma nódoa eterna... (AZEVEDO, 1973, p.132). A menção indireta ao inferno e à figura amarelenta parece remeter também às leituras que Álvares de Azevedo fez da Divina Commedia, de Dante Alighieri, pois, no último canto do Inferno, de lo mperador del doloroso regno, entre as três faces da cabeça, aquela que ficava à direita, era de uma cor entre o branco e o amarelo, como símbolo da impotência: Oh quanto parve a me gran maraviglia, quand io vidi tre facce a la sua testa! [...] E la destra parea tra bianca e gialla; (Inferno, Canto 34, vv ) 127 Fica subentendido que Satã se revela no seu orgulho de criatura ferida, ao responder à pergunta de Macário sobre a natureza da estrela que caiu do céu : É um filho que o pai enjeitou. É um anjo que desliza na terra. Amanhã talvez o encontres. A pérola talvez se enfie num colar de bagas impuras, talvez o diamante se engaste em cobre. Aposto como daqui a um momento será uma mulher, daqui a um dia Santa Madalena! (AZEVEDO, 1973, p. 133). Satã evoca a sua mágoa por ter sido precipitado do Paraíso celeste. Aqui, o autor se vale da tradição consolidada no fim do século IV, sobre a queda do Anjo Rebelde, retomada pelos padres da Igreja nos dois séculos anteriores e formalizada pela igreja grega, conforme explica Nogueira: 127 Vidi tre facce a la sua testa: è un orribile parodia della Trinità divina, ma le tre facce rappresentano l ignoranza [aveva lo stesso colore di quegli uomini che vengono dalla valle del Nilo, dall Egitto], l odio [era vermiglia] e l impotenza [aveva un colore indefinibile tra il bianco e il giallo] (ALIGHIERI, 1994, p. 172). 211

212 [...] tanto no Oriente como no Ocidente, os cristãos concordavam em que a queda do homem não foi mais que um episódio na história e um prodigioso combate cósmico, iniciado antes da criação, quando uma parte das falanges celestiais havia revoltado contra Deus, sendo então precipitada dos céus (2000, p.28-29). Neste momento, a visão do Diabo é aquela da tradição do puritanismo, segundo ressalta Cousté, pois o Diabo de Milton é um Diabo que nunca deixou de ser Lúcifer a estrela da manhã, o mais belo e perfeito dos anjos e que se consome no espantoso fracasso de sua potestade (1996, p. 31). É a visão do Diabo como descrito em Isaías 14:12 Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações (1968, p 704). Macário quer saber de quem é o ai que gemeu nas brisas. Entre gargalhadas, Satã lhe fala daquele ai, como o último suspiro [...] a última oração de uma alma que se apagou no nada, da mãe de Macário que rezava por ele (AZEVEDO, 1973, p ). Desesperado pela perda e entre lágrimas, Macário afugenta Satã, evocando o nome de Deus e da mãe. Satã desaparece, mas deixa a fórmula para ser chamado, que aponta para um lugar oposto ao céu: Vai-te, vai-te, Satã! Em nome de Deus! Em nome de minha mãe! Eu te digo: Vai-te! É por pouco tempo. Amanhã me chamarás. Quando me quiseres é fácil chamar-me. Deita-te no chão com as costas para o céu; põe a mão esquerda no coração: com a direita bate cinco vezes no chão, e murmura: Satã! (AZEVEDO, 1973, p. 135). O primeiro episódio termina com a constatação de Macário de que sonhou (acordando às três horas da tarde), pois continua na estalagem e a mulher que o atende confirma que ninguém esteve ali, que seu burro não fugiu e que tampouco choveu. Ela repete o gesto de benzer-se, que na tradição está associado ao sinal da cruz para repelir os agentes do mal. Outro aspecto a observar é a influência de Dante, pois é S. Bernardo de Chiaravalle quem encaminha Dante para a visão da 212

213 Virgem Maria no Paraíso: 128 O que é? Ai! Ai! Uns sinais de queimado aí pelo chão! Cruz! Cruz! Minha Nossa Senhora de S. Bernardo! É um trilho de um pé... E, para surpresa de ambos, apresentam-se uns sinais de queimado [...] pelo chão : Um pé de cabra... um trilho queimado... Foi o pé do diabo! O diabo andou por aqui (AZEVEDO, 1973, p. 137). A marca do pé de cabra é uma referência ao grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica, com as imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio homem, meio bode, com chifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas pontiagudas (NOGUEIRA, 2000, p. 67). A imagem de Anjo Mau deveria ter as asas de um morcego, por viver nas trevas. O paganismo se apropriou da imagem do animal nas festas dionisíacas. Thomas Bulfinch (2000) em O livro de ouro da Mitologia: história de deuses e heróis, explica que na guerra entre os gigantes e os deuses, estes fugiram para o Egito e se esconderam sob várias formas [...] Apolo transformou-se em um corvo, Baco [Dionísio], em um bode (2002, p ). Também, Cousté (1996, p.81), lembra que mais do que qualquer outra forma animal, o Diabo guarda especial preferência pela do bode e isso remete à discussão sobre o ritual envolvendo bode expiatório explicitado no livro de Levítico. Seria mais uma usurpação, já que o animal na Bíblia era um símbolo que cumpria determinações divinas, portanto, o animal em si não era culpado, tanto é que se lançavam sortes sobre os dois bodes: um para o SENHOR, e a outro para o bode emissário, que era apresentado vivo perante o SENHOR, para fazer expiação por meio dele e enviá-lo ao deserto como bode emissário (Lev. 16:8-10). No segundo episódio, Na Itália, Macário cisma por um vale, entre montanhas e um rio, passa por uma mulher que acalenta o filho morto por afogamento. Diante da declaração de Macário de que ele está morto, a mãe 128 E la regina del cielo, ond io ardo/tutto d amor, ne farà ogni grazia,/però ch i sono il suo fedel Bernardo. (Paradiso, canto 31, vv ). S. Bernardo, detto di Chiaravalle [...] il suo spirito fu sempre pervaso da un ardente amore per Dio che lo spinse a combattere la corruzione del clero e a scrivere numerose opere di teologia. S. Bernardo si adoperò moltissimo per vivificare il culto a Maria vergine di cui era devotissimo e fu poi considerato dai fedeli il santo intercessore presso la Madre di Dio. È la terza guida di D., dopo Virgilio e Beatrice, e simboleggia la contemplazione, l ardente carità, senza le quali non è possibile avvicinarsi a Dio (ALIGHIERI, 1994, p ). 213

214 insiste em afirmar que ele dorme. Macário pensa sobre os elos entre a loucura e a felicidade: Quem sabe se a ventura não é a insânia? (AZEVEDO, 1973, p. 141). Penseroso está sentado num rochedo à beira do rio, [...] cismando sobre a doçura do sonho para quem ama. Macário passa e, sombrio, responde a Penseroso sobre o destino de sua caminhada: Vou morrer. Começam a trocar conjecturas sobre o amor, sobre a divindade da arte, sobretudo da música que [...] vibra a corda da alma (AZEVEDO, 1973, p ). Macário, nesse diálogo, deixa a ironia de lado e, talvez, por força de revelar-se momentaneamente tão harmônico com as visões românticas de Penseroso sobre o amor de uma mulher, desmaia (AZEVEDO, 1973, p ). Então, Satã aparece e o carrega nos braços, sob os protestos de Penseroso: Que loucura! Esse desmaio veio a tempo; seria capaz de lançar-se à torrente. Porque amou, e uma bela mulher o embriagou no seu seio, querer morrer! [...] Vamos... E como é belo descorado assim! Com seus cabelos castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e úmidos, e seus lábios feminis! Se eu não fora Satã, eu te amaria, mancebo... [...] Quem és tu? Deixa-o... eu o levarei (AZEVEDO, 1973, p. 145). Este trecho remete à discussão sobre a sexualidade de Satã, visto que se declara incapaz de amar um homem. Segundo Cousté, em uma extensa análise que a tradição registrou sobre o tema, os principais demonólogos não duvidaram do fato de que nos infernos os demônios se dividem em machos e fêmeas, ainda que ao encarnar-se exceto para copular com um homem o Diabo se manifeste sempre como macho (1996, p. 36). 129 Portanto, impedido o amor carnal por Macário, é por sua alma que Satã se interessa. Assim, tenta consolar Macário, oferece-se para jogar e faz uma declaração que se coaduna com a sua presença no imaginário cristão, incluindose como parte da criação e mencionando aqueles com quem primeiro jogou e ganhou, na queda do Paraíso. Depois conta uma história em que tentou ajudar um 129 O sexo do diabo é um dos capítulos da obra citada. Para o presente artigo, analisa-se somente a correspondência da observação acima de Cousté com o relatado no drama, isto é, a sexualidade masculina de Satã em Macário. 214

215 mancebo a conquistar a pura irmã da amante, mas foi vencido pelo anjo da guarda da moça, que também deu as suas cartas no jogo, embora ainda esteja na parada pela desforra (quer virar a cabeça da moça que querem tornar freira, embora saiba da dificuldade de entender os desejos de uma mulher). É importante observar que, aqui, Satã se autodenomina velhaco, como é também chamado popularmente, enquanto reconhece a alma feminina entre os mistérios da natureza, portanto, da criação de Deus: Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. É que somos como Adão e Eva, os ex ossibus, caro ex carne. A propósito de jogo, queres que te conte uma história? [...] Não contava com o anjo da guarda da moça. [...] O tal anjo que sabia orelhar a sua sota bifou-me o jogo, velhaqueou com o velhaco, surrupiou os dados, e numa risada inocente chuleou-me a parada. [...] Mas o mundo é do diabo, assim como o céu é dos tolos. Isso de mulheres, nem eu, que sou o diabo, as entendo. Quem entende o vento, as ondas e o murmurar das folhas? [...] (AZEVEDO, 1973, p ). Novamente aparecem duas das imagens/temas que se fixaram pro meio dos tempos no imaginário ocidental, nos quais Satã é o personagem principal: a meia-noite e a negociação da alma. Satã deixa Macário dormindo e sai para conquistar outra alma: [...] Vou fazer uma visita a uma bela da vizinhança que anda regateando o que lhe resta de alma para ser moça três dias. Até lá dará meia-noite (AZEVEDO, 1973, p. 149). Seguem-se diálogos em que Penseroso sofre por amor e, ao contrário de Macário (que também sofre), não quer afogar a mágoa em uma orgia esplêndida como num romance, que será a ceia oferecida por um amigo (AZEVEDO, 1973, p ). Penseroso refere-se ao diabo como homem da vingança: Não: vai só. Se tu soubesses no que penso e no que tenho pensado! Enquanto falo a minha alma desvaria, e a minha febre devaneia. Sonhei sangue no peito dela, sangue nas minhas mãos, sangue nos meus lábios, no céu, na terra... em tudo! [...] Senti a risada amarela do homem da vingança... depois minha cabeça 215

216 escureceu-se... Pensei no suicídio... Macário, Macário, não te rias de mim! [...] (AZEVEDO, 1973, p. 151). 130 Macário dá um livro a Penseroso. Esse o lê avidamente e o recebe como um copo de veneno, por causa do ceticismo ali contido, que Macário tenta defender, em um jogo de paradoxos: [...] Se aquele livro não é um jogo de imaginação, se o ceticismo ali não é a máscara de comédia, a alma daquele homem é daquelas, mortas em vida, onde a mão do vagabundo podia semear sem susto as flores inodoras da morte. [...] E o ceticismo não tem sua poesia?... O que é a poesia, Penseroso? Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo o que é belo e doloroso? [...] A natureza é um concerto cuja harmonia só Deus entende, porque só ele ouve a música que todos os peitos exalam. Só ele combina o canto do corvo e o trinar do pintassilgo, as nênias do rouxinol e o uivar da fera noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado e o canto de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo. [...] Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera (AZEVEDO, 1973, p ). Penseroso exorta Macário à esperança, contida no entusiasmo [do] rodar do carro do século, no que o progresso e a industrialização prometem ao futuro do homem, sobretudo para o americano filho de uma nação nova [...] cheia de sangue, de mocidade e verdor (AZEVEDO, 1973, p. 153). Aqui, a característica romântica do amor à natureza, revela-se na voz do italiano, que enaltece o Brasil: Não se lembra que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, suas cataratas, que tudo lá é grande e sublime? Nas ventanias do sertão, nas trovoadas do sul, no sussurro das florestas à noite, não escutou nunca os prelúdios daquela música gigante da terra que entoa à manhã a epopéia do homem e de Deus? [...] (AZEVEDO, 1973, p. 153). Macário o rebate com veemência, criticando os poetas e artistas parasitas, que nunca serão como Dante, Beethoven, Mozart, Rubens ou Michelangelo. Escritores estéreis porque 130 Novamente a obra remete a Dante, na expressão à risada amarela do homem da vingança, como já mencionado anteriormente. 216

217 Falam nos gemidos da noite no sertão [...] como se lá tivessem dormido ao menos uma noite [...] Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração; que na floresta há insetos repulsivos, répteis imundos [...] que tudo isso é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade! (AZEVEDO, 1973, p. 155). Eis aqui a genialidade de Álvares de Azevedo, que refuta a Ecocrítica que surgiria somente na década de 1990 nos EUA, propugnando o estudo da representação do meio ambiente nas obras literárias, tentanto, a partir da crise do meio ambiente, unir Literatura e Ciências. Enquanto para Macário, que critica a religião, só restam as utopias do filósofo os caminhos do dogmatismo ou o ceticismo, para Penseroso, que refuta a visão de uma poesia terrível, o ceticismo é filho do ateísmo. Para ele, não é o filosofismo que revela Deus : Não crer! E tão moço! Tenho pena de ti. [...] Crer? E no quê? No Deus desses sacerdotes devassos? Desses homens que saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta ainda alvejante do cotão do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus do templo! Crer no Deus em que eles mesmos não crêem, que esses ébrios profanam até do alto da tribuna sagrada? [...] Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino (AZEVEDO, 1973, p ). Não obstante a sua fé, a fragmentação do ser humano leva a sua parte luminosa, representada por Penseroso, a cometer suicídio, envenenando-se lentamente pelo amor da Italiana (é assim identificada na estória), cuja inocência parece evidente, pois reitera seu amor pelo poeta: O teu sonho é o meu... é o nosso amor... a minha vida por ti, a tua vida por mim: nós dois formando um único ser, uma única alma, um mundo de delícias e de mistério só para nós e por nós! (AZEVEDO, 1973, p. 166). Embora Penseroso não acredite nela, preferindo sofrer pelo desamor, que parece ser fruto de sua imaginação, ao alcançar o sentimento sublime, faz de tudo para não acreditar nele: Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrível. Ó! 217

218 Meu pai! Ó minha segunda mãe! Ó meus anjos! Meu céu! Minhas campinas! É tão triste morrer!..." (AZEVEDO, 1973, p. 167). Entretanto, Macário, a parte escura, continua a acompanhar Satã, mesmo contra vontade, pois se rebela contra Satã ao saber da morte de Penseroso. Satã o captura de vez, por força do desespero e promete-lhe os bens de seu reino: És uma criança. Ainda não saboreaste a vida e já gravitas para a morte. O que falta? Ouro em rios? Eu to darei. Mulheres? Tê-la-as, virgens, adúlteras, ou prostitutas. O amor? Dar-te-ei donzelas que morram por ti, e realizem na tua fronte os sonhos de seu histerismo... Que te falta? [...] Vai-te, maldito!... [...] Abrir a alma ao desespero é dá-la a Satã. Tu és meu. Marqueite na fronte com meu dedo. Não te perco de vista. Assim te guardarei melhor. Ouvirás mais facilmente minha voz partindo de tua carne que entrando pelos teus ouvidos (AZEVEDO, 1973, p. 169). Para a perdição de Macário, a fidelidade de Satã o persegue e o drama termina em Uma Rua, com Macário [que cambaleia] e Satã de braços dados, caminhando em direção a uma orgia (AZEVEDO, 1973, p. 169, grifo no original). No primeiro episódio, Macário mostrava-se antirromântico, pois sua posição em relação à poesia era a de que enquanto ela era a moeda de ouro, que corria na mão dos ricos, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintém azinhavrado (AZEVEDO, 1973, p. 110). O Diabo, por sua vez, deveria ensiná-lo a ser romântico, já que ele, o Diabo, era o próprio Romantismo, em tudo o que ele representa. No segundo episódio, Macário parte em defesa da poesia, na frase que aqui se reitera: O que é a poesia? [...] Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo o que é belo e doloroso? (AZEVEDO, 1973, p. 152). Sendo assim, o Diabo consegue o que queria, a alma de Macário, e, para confirmar o feito, mostra a ele [...] uma sala fumacenta. À roda de uma mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali 218

219 mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas... Que noite! (AZEVEDO, 1973, p. 170). Assim, Álvares de Azevedo realiza em sua obra o que Cousté chama de espaço autônomo e não precisamente precário que é o testemunhar a marca do Diabo, [...] no coração e na memória, esses dois instrumentos fundadores do literário. Isso porque [...] a partir de Milton, num processo que culminaria com os românticos do século XIX, o Diabo recuperou sua dignidade física na literatura e na arte, e o repertório completo de suas tentações e maldades já não era mais inconveniente para o reconhecimento simultâneo de sua majestade e beleza (1991, p ; 33). Portanto, Macário e Penseroso se exaurem, a seu modo, na ânsia pela mulher, imagem e desejo que os leva ao desvario, ainda que situados em esferas extremas, entre a fé e a descrença. Embora Macário pareça buscar em mulheres quaisquer a realização do amor, a sua mágoa é a não realização de um amor puro; Penseroso, ao buscá-lo na mulher idealizada, constata que não é amado por ela... De uma forma ou de outra, ambos são derrotados: Macário pela morte da alma; Penseroso pela morte do corpo. Porém, é impossível esquecer o fato de que, em outras situações, conforme relato do próprio Diabo, houve a interferência de anjos da guarda na defesa de seus protegidos. No caso de Macário e Penseroso, terá Satã vencido o jogo? BIBLIOGRAFIA ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. Illustrazioni di Gustave Doré. Varese: Edizioni Polaris, AZEVEDO, Manuel Antonio Álvares de. Noite na taverna Macário. São Paulo: Três, Poesia. Prefácio de Maria José da Trindade Negrão. Rio de Janeiro: Agir,

220 . Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Bárbara Heller, Luís Percival Leme de Brito e Marisa Lajolo. São Paulo: Abril Educação, BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. 4.ed. Tradução de Bernardini A.; Pereira Júnior J.; Góes Júnior A.; Nazário H.; Freitas de Andrade H. São Paulo: Unesp, Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Hucitec, BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de David jardim Júnior. 28.ed. Rio de janeiro: Ediouro, CANDIDO, Antonio. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo como a sombra de Deus na história. Tradução de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, DE MAURO, Tullio. Il dizionario della língua italiana. Milano: Paravia, CD-Rom. FALCO, Mary. Dioniso dio dell ebbrezza e poi del vino. Disponível em: < mondogreco.net/dioniso.htm>. Acesso em 26 nov FERRAZ, Salma. Teopoética: Los Estudios literarios sobre Dios. Florianópolis: UFSC, KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: Retratos teológico-literários. Tradução de Paulo Astor Söethe. São Paulo: Loyola, LONGMAN. Dicionário Escolar. São Paulo: Copyright Pearson Education Ltd CD- Rom. MODESTO, Renato. O sobrenatural em Shakespeare parte 2. Jornal eletrônico. Disponível em: < Acesso em 26 nov MONTEIRO, Roger. Da didática infernal - breves palavras a respeito do caráter do diabo na obra de Álvares de Azevedo. Cadernos do IL. Porto Alegre: UFRGS, n. 18, p. 145, dez NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: EDUSC, OBATA, Regina. O livro dos nomes. São Paulo: Círculo do Livro,

221 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4.ed. Brasília: Editora da UNB, IMAGEM Disponível em: < html>. Acesso em: 20 jul

222 Querubim Ungido 222

223 Um Diabo de papel e tinta, mais nada? Marcos Lopes 223

224 UM DIABO DE PAPEL E TINTA, MAIS NADA? Marcos Lopes Julien Green dizia que Deus não é um personagem de romance e que é extremamente raro ele manifestar-se na vida (Journal, V, 352). Poderia ter dito o mesmo do diabo. Poder-se-ia perguntar se os romances onde Deus e o Diabo agem por demais manifestamente não são (estética e humanamente) romances ruins! (HARVÉ ROUSSEAU, 1976, p. 497) 1 - UMA MOLDURA Dentre as obras de José Saramago, pode-se afirmar com segurança que a mais polêmica é O Evangelho segundo Jesus Cristo. Palco de disputas infindáveis na época de seu lançamento, principalmente em Portugal, quando um eminente prelado da Igreja Católica chegou mesmo a vir a público em defesa da fé cristã classificando o livro de uma grande merda, 131 esse romance, do escritor português, tornar-se-ia um cavalo de batalha entre alguns críticos sensíveis ao estatuto do sagrado e do profano na modernidade. Para uma parte significativa da recepção portuguesa e brasileira, o ESJC seria expressão de um ateísmo do autor empírico Saramago. Tome-se, por exemplo, o ensaio de Gilberto de Mello Kujawski, O sagrado existe (1994), que acusava no romance um débito com o ideário anticlerical do século XIX. Em contrapartida, Waldecy Tenório, em um artigo presente na coletânea de ensaios Saramago segundo terceiros, de autoria de Lílian Lopondo, sublinhava o possível diálogo do romancista com alguns teólogos do século XX, para os quais a morte de Deus no mundo moderno, antes de ser um fardo para a consciência cristã, significaria uma experiência autêntica da fé. A recriação de um sagrado não institucional, leitura latente ou manifesta de muitos leitores críticos do ESJC, propunha reler as diatribes ateias do narrador saramaguiano como uma crítica da ideia de um Deus moral. Na esteira de algumas considerações de Tenório ou mesmo de um outro crítico como Fernando Segolin, em coletânia organizada por Beatriz Berrini, outros comentadores 131 Conf.: BARRAL (1992); GEORGE (2002). 224

225 desenvolviam o argumento segundo o qual esse romance realizaria em seu percurso narrativo a destruição de um sagrado violento. No cômputo geral, a narrativa saramaguiana proporia ao leitor não uma negação da existência de Deus, mas uma avaliação contundente das nossas representações ocidentais da noção da divindade. Ora, é no âmbito das representações literárias e ficcionais que caberia, então, uma retomada da figura do Diabo, não mais pensada exclusivamente como o adversário ou aquele que divide. Basta verificar que, no ESJC o Diabo mais do que um oponente é um ajudante de Jesus. Desde suas primeiras insinuações como expressão codificada do Mal, o Diabo não deixa de assumir um papel no mínimo contraditório. Afinal, ele irá iniciar Jesus na vida adulta (é preciso esclarecer que Jesus passa uma temporada com o Pastor/Diabo) e quem vai sugerir algumas regras que não deveriam ser quebradas (o Pastor pede para não sacrificar as suas ovelhas). Portanto, o personagem Pastor/Diabo embaralha as clássicas dicotomias entre justo e injusto, verdade e mentira, sagrado e profano e, a mais decisiva, o Mal e o Bem. O que me faz propor a seguinte hipótese de análise: em grande medida, a formulação agostiniana de que o Mal é a ausência do Bem será o grande carro-chefe do intricado jogo de ações dramáticas a que estarão submetidas as principais personagens, como, por exemplo, José, Jesus, Deus e o Pastor/Diabo. As aparições deste último e a revelação de Deus no nevoeiro são glosas ao construto conceitual de Santo Agostinho: o Mal não tem consistência ontológica, apenas lembrando que, para o narrador desse romance, o Bem é a ausência do Mal. O que implicaria a seguinte conclusão: Bem e Mal são pensados dialeticamente ou não possuem uma substância como poderia postular uma metafísica cristã. Diante disso, a matriz filosófica de Agostinho seria posta na berlinda a favor de uma visada mais humanista, nas quais as identidades de Deus e do Diabo seriam as duas faces de uma mesma moeda, a saber, a própria condição humana. Sem o apelo a uma transcendência divina, Deus e o Diabo manifestariam o embate entre dois poderes que em princípio, para a economia da existência humana e da própria narrativa, não poderia ser suprimido. Afinal, o 225

226 conflito entre esses poderes é o motor da história ou aquilo que deflagra a dialética. Colocando a representação do Diabo no ESJC nestes termos, o leitor ficaria com a sensação de que o narrador teria levado a um bom termo um projeto de emancipação do homem em relação às duas paixões da religião: o medo do inferno e a esperança do céu. Não haver ressurreição ao fim do romance de Saramago é um protocolo básico de uma leitura humanista sem transcendência. É propor que o lugar da correção do mal (as distorções, as assimetrias, as doenças, as violências, em suma tudo aquilo que ameaça não apenas o bem estar individual, mas a base da própria sociedade) se faz na imanência das lutas sociais. É, em última instância recusar-se a pensar alegoricamente o mundo com as categorias da religião, ainda que a matéria ficcional do romance seja de extração mítica. Ocorre que, e este será o objeto de estudo deste artigo, ao inverter os papéis tradicionais de Deus e do Diabo, não estará o romance apenas trabalhando com os sinais trocados? Ao invés de uma dialética dessas figuras, ou de um olhar irônico que vai até a raiz e coloca em dúvida o ato de enunciação do narrador, não haveria com a inversão dos papéis apenas uma amostra dos limites da dialética da ótica romanesca? 2. OS LIMITES E AS POSSIBILIDADES DA DIALÉTICA Compreensão do bem Em si, como todas as coisas, o bem não existe: Pelo mal se define e contradiz. Cada ser se limita em outro território, Onde sobrevive idêntico e contraditório. Indivisos são DEMO/DIVINO, Seres dividendos de um só sentido. E com o tempo poderemos um Deus tão puro, Que o mataremos Ao exterminar o demônio que traz em si, Por se haver divino. (CAPINAN, 1995, p. 98) 226

227 A lucidez dialética dos versos acima, aliás, expressão de Ênio Silveira presente na "orelha" de Inquisitorial, obra de José Capinan, pode nos servir como uma entrada no núcleo de uma concepção não ontológica das noções de Bem e Mal. Mas, talvez, mais do que isso, o que tais versos apontam é para o próprio modus operandi de um pensamento estético que ambiciona ser dialético. E se estiver certa esta espécie de intuição, da radicalidade gnoseológica do poema, então teria um bom termo de comparação com a suposta dialética das figuras de Deus e do Diabo no ESJC. Obviamente, as modalidades poesia e romance são distintas, basta evocar aqui o pensamento seminal de Gaston Bachelard, quando, a propósito da diferença entre tais modalidades, diz que a prosa precisa de muitas palavras para dizer o que pensa, sobretudo o discurso filosófico, ao passo que a poesia, com pouco diz muito e num átimo, se quisermos ser fiéis à nomenclatura do filósofo, num instante (1970, p ). Todavia, o fio condutor da nossa discussão, além de ser o que chamei de glosa ficcional ao construto conceitual de Santo Agostinho sobre a questão do Mal, também será a imagem poética do nevoeiro, presente no ESJC. Novamente é Bachelard quem nos diz que a imagem poética constitui uma metafísica do instante. O que há de ostensivamente compreensível logo de imediato nos versos citados há pouco? Não há o Bem em si. Este se define na relação com o Mal, e a tentativa de purificá-lo no processo, acaba por reintroduzir o seu contraditório. Isto significa uma visão autenticamente dialética e aberta, segundo as palavras de José G. Merquior na introdução de Inquisitorial (1995, p ). Não há aqui no poema uma vitória tranquila do Bem ao superar o Mal; há sim supressão e conservação ao mesmo tempo. Sublinho a expressão "visão autenticamente dialética e aberta" e proponho estendê-la a algumas passagens de ESJC, para verificar se a elaboração no romance é da mesma monta do poema citado, ou se a glosa feita pelo narrador, ao tomar a célebre formulação agostiniana do Mal visto como privação do Bem, não acaba por enfraquecer 132 a relativização em curso na narrativa do próprio conceito de um Deus transcendente. Como resultado deste processo, ter-se-ia uma caricatura de Deus e do Diabo, ficando manifesta a 132 Sobre os limites da especulação dialética do Bem e do Mal, conferir: CEIA (1997). 227

228 tentativa do narrador em provocar a adesão e a simpatia do leitor às ideias deste último. A narrativa procura dialetizar tais noções, mas com o custo de tornar Deus o "mau da fita" e o Diabo "o mocinho". Porém, ao fazer isto, não acaba por fechar tal processo e até mesmo cessar a relativização? Quero dizer que, ao revelar o que há de maldade em Deus e bondade no Demônio, não termina o narrador por tipificar tais personagens, e, como resultado, teríamos apenas a inversão de lugares? A ótica romanesca continuaria gozando de estatuto privilegiado, na medida em que ela não se colocaria em questão. Portanto, ela seria o local da boa enunciação daquilo que deve ser relativizado no romance. No poema de Capinan, lemos os versos Indivisos são DEMO/DIVINO/ Seres dividendos de um só sentido, um enunciado poético que leva às últimas consequências a afirmação da inexistência do Bem em si, aliás, como todas as coisas, segundo o eu-lírico. Isso significa incluir neste conjunto até mesmo a voz que enuncia tal conceito. Além disso, mediante a aliteração das consoantes d e s obtém-se o efeito de sentido que sugere a identidade entre os dois seres. A repetição é tanto uma forma de produção do ritmo quanto um modo de indicar a interpenetração entre Demônio e Deus. As recorrências dos sons d e s e das sílabas di e vi, presentes em divino e em dividendos, são também estratégias poéticas que visam a estabelecer correspondência entre o plano da forma (a organização dos significantes) e o plano do conteúdo (a organização dos significados). Em Saramago, o personagem Deus assim compreende sua relação com o Diabo: Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro (SARAMAGO, 1991, p , grifo nosso). Deus assim se define diante do Diabo após este último propor um pacto: substituir a matança de gente pela subordinação do Mal ao Bem. O raciocínio dialético de Deus leva-o a pensar que se o Diabo se submeter a sua vontade e, 228

229 portanto, o Mal deixar de existir, é o próprio Bem que também cessará sua existência. Se neste momento da narrativa, Deus contrapõe ao pacto sugerido do Diabo a necessidade de que ambos continuem existindo, um pouco antes, para ser mais exato, quando o Pastor/Diabo aparece no nevoeiro, Jesus reconhece a semelhança física desses dois seres: Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que, tirando as barbas de Deus, eram como gêmeos, é certo que o Diabo parecia mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele induzido (SARAMAGO, 1991, p. 368). A cena do nevoeiro, momento decisivo do encontro das três personagens, retoma a dialética do Bem e do Mal configurada desde as primeiras páginas do romance e explicitada na seguinte frase do narrador: [...] pois o Bem e O Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro (SARAMAGO, 1991, p. 18). 3 - O NEVOEIRO, A ENCENAÇÃO DIALÉTICA E A TRINDADE Vou ao mar. Por trás do seu ombro, Maria de Magdala pergunta, Tens de ir, e Jesus respondeu, Já era tempo, Não comes, Os olhos estão em jejum quando se abrem de manhã. Abraçou-a e disse, Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo, depois, com uma incrível segurança, pois o nevoeiro não deixava ver nem os próprios pés, desceu o declive que levava à água (SARAMAGO, 1991, p. 363, negrito nosso). Palavras de Qohélet filho de Davi rei em Jerusalém Névoa de nadas disse O-que-Sabe névoa de nadas tudo névoa-nada (Eclesiastes, tradução de Haroldo de Campos) gotículas de um nevoeiro infinito e sem remissão. (José Saramago, História do Cerco de Lisboa) Acertada foi a analogia feita por Beatriz Berrini (1998) quando viu a metáfora da "nuvem fechada" em Memorial do Convento ecoar na cena do nevoeiro do ESJC. Nos dois lugares trata-se de pôr em causa a relação entre o humano e o divino. A nuvem fechada que Blimunda vê na hóstia é a própria vontade humana. Uma análise detida de Manual do Convento concluiria que o 229

230 sacramento da comunhão nada mais faz do que prender tal vontade, a contrapartida será o aprisionamento desta vontade nas esferas da passarola, mas visando o voo. No ESJC, logo nas primeiras linhas, Jesus fala dos seus olhos em jejum logo em seu despertar. E é em jejum que ele irá adentrar o nevoeiro, porque a fala sugere que por estar assim poderá "enxergar" melhor. É difícil não evocar aqui o ritual de Blimunda, quando para aprisionar as vontades mantinha seu jejum. Mais do que a possível analogia, de resto muito bem realizada por Berrini, importa assinalar que os textos (romances) saramaguianos, ao apresentarem metáforas semelhantes ou até iguais, não apenas repetem procedimentos estilísticos, mas se explicam mutuamente. Assim como, guardadas as devidas proporções, o Novo Testamento se põe como interpretante do Antigo Testamento, também o texto saramaguiano coloca-se, a partir de suas metáforas e ações dramáticas, na posição de interpretante em relação a si próprio ou a outro romance. Duas questões irão amarrar essas sequências narrativas da cena do nevoeiro. A pergunta pela identidade, curiosamente buscada por entre as névoas marítimas, e uma outra pelo sentido desta identidade, isto é, para que serve Jesus. A entrada em cena de Deus se dá por meio de uma descrição caricata e uma fala temperada com deboche e cinismo, mais à frente, o leitor se defrontará até com uma arrogância e prepotência divinas. O narrador deixa claro tratar-se de um personagem que assume a fala divina. A pergunta pela identidade será desenvolvida com a presença de Deus e Jesus, resolvida a questão, se é que se pode fazer uma afirmação tão categórica, passa-se a dissertar sobre a finalidade da missão de Jesus, momento em que entra em cena a figura do Pastor/Diabo. A descrição do narrador evoca uma figura patriarcal da divindade: barbas compridas, idade avançada, estatura alta, as roupas assemelham-se a de um judeu rico e as sandálias são rústicas, "o que mostra que não deve ser pessoa de hábitos sedentários" (SARAMAGO, 1991, p. 364). O arremate da descrição deixa visível qual será o tom do diálogo: um misto entre jocoso e sério. Na conversa entabulada entre Deus e Jesus ocorrem questões do tipo: "Quem sou, És o filho de Deus, Como pode um homem ser filho de Deus, Se és filho de Deus, não és um homem, Sou um homem, vivo, como, durmo" (SARAMAGO, 1991, p. 365). A 230

231 sequência de perguntas e respostas pretende problematizar o credo religioso do cristianismo. Digamos que as questões são postas não para serem resolvidas, mas para contrariarem os princípios da crença (fenômeno semelhante ocorre também nas primeiras páginas do romance com a descrição do quadro de Albrecht Dürer). A atitude do narrador e das personagens é retórica. O que está em jogo não é tanto a discussão sobre a natureza de Cristo, mas a natureza de Deus e do Diabo. É o que se verifica quando Jesus, ao apelar para a onisciência de Deus, recebe como resposta que o saber divino vai até certo ponto. Jesus não se dá por satisfeito e interpela Deus: "Que ponto". A resposta divina é de um cinismo acachapante: "O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que ignoro" (SARAMAGO, 1991, p. 366). Jesus recusa-se a fazer milagres e afirma que sem estes últimos o projeto de Deus é nada. A réplica divina é dada nos seguintes termos: para operar milagres Deus não precisa de mediadores (o que há nessa resposta é simplesmente a afirmação que Deus é onipotente). A tréplica de Jesus consiste nesta pergunta: se Deus pode curar, por exemplo, o enfermo solitário em sua cama, por que precisa da figura do milagreiro? A reposta de Deus é que para o que recebeu a graça não creia que foi por seus méritos próprios. Neste momento, Jesus apenas rubrica a certeza de que os milagres são propriedades divinas. Ora, isto serve de pano de fundo para que Deus deixe claro que Jesus não tem escolha. Esta é a palavra-chave, por sinal ganhará força ainda mais na metáfora do cordeiro de Deus. Porém, antes que ocorra tal metáfora, Deus dirá que, mesmo que Jesus não queira fazer milagres, ele produziria uma série enorme de feitos por onde o messias passasse até que, com a insistência das pessoas beneficiadas, reconhecesse sua missão. O diálogo nega o livre arbítrio e deixa como resultado a ideia de que contra a vontade divina não há argumentos: Deus quer e pronto. O recurso ao terceiro interlocutor (Pastor/Diabo) é infrutífero. A resposta do Diabo, ao evocar o sacrifício da ovelha, explicita que Jesus podia tê-la deixado viver, mas por ambição sacrificou-a. Lembremos que, em seu encontro com o Pastor/Diabo, Jesus, em um primeiro momento, resolve se libertar da tradição religiosa ao não sacrificar a ovelha que ganhou. Contudo, depois de perdê-la e 231

232 reencontrá-la na busca empreendida pelo deserto, acaba se defrontando com Deus que lhe exige o sacrifício do animal. O Pastor/Diabo recorda nessa cena do nevoeiro as lições rejeitadas por seu discípulo. Se Deus quer o sacrifício das ovelhas; o Diabo, a multiplicação do rebanho. Em seus raciocínios especiosos, distribuídos ao longo do percurso narrativo, o Pastor/Diabo apresenta-se como aquele que deseja a expansão da vida. Ouvide, ouvide, ovelhas que aí estais, ouvide o que nos vem ensinar este sábio rapaz, que não lícito fornicar-vos, Deus não o permite, podeis estar tranqüilas, mas tosquiar-vos, sim, maltratarvos, sim, matar-vos, sim, e comer-vos, pois para isso vos criou a sua lei e vos mantém a sua providência (SARAMAGO, 1991, p. 238) Sem o auxílio do Diabo, resta a Jesus passar a questão seguinte: como convencer os homens que ele é o filho de Deus e com isso alargar o império divino. Deus afirma que é chamando os homens ao arrependimento, porque não há pessoa que não tenha pecado. Para Jesus, isto é insuficiente, o que coloca o problema de como os levar ao arrependimento. A resposta de Deus é para que Jesus use a imaginação e conte algumas histórias. Nota-se que na resposta há uma alusão às parábolas e se explicita uma função básica da narrativa: persuadir o ouvinte, nem que para isso tenha que se torcer a lei. O conselho divino, curto e direto em seu disparo verbal, ricocheteia na maneira de compor a forma romanesca. Se uma parábola é uma narrativa composta com o intuito de convencer alguém sobre uma suposta verdade moral, por que a ficção, matéria menos pretensiosa, estaria isenta do jogo retórico? O conjunto de perguntas e respostas entre Jesus e Deus reforça evidentemente o lado autoritário desta última personagem. Dir-se-ia que não é bem um diálogo, pois implicaria uma liberdade na formulação de ideias, o que não ocorre aqui, uma vez que a vontade divina suplanta as trivialidades do raciocínio dialético; se Deus é o fundamento, então ele sempre terá razão e, portanto, para que discutir com ele? Isto parece ser o que o narrador quer nos convencer, ainda que não façamos um escrutínio das sutilezas da interlocução. Todavia, o modo como ele quer nos convencer é que me faz perguntar se, no limite, ao autoritarismo (a vontade de poder e a 232

233 dominação divina) não se substitui uma voz narrativa de índole parecida. Defendemos que é uma voz narrativa incapaz de se pôr em causa. Afinal, assim como a doutrina católica contestada, tal voz narrativa também não possuiria suas verdades e suas crenças? Após saber no que consistirá sua missão ("a expansão de Deus entre os homens"), Jesus interroga Deus sobre o futuro, ou, mais precisamente, sobre os efeitos dessa missão e seus custos em termos de vida humana. Nessa sequência narrativa, Jesus faz a lógica dos atributos divinos voltar-se contra Deus. Se Jesus não tem escolha diante da vontade divina, tampouco Deus: este sabia, desde a eternidade, que Jesus lhe faria a pergunta, que seria obrigado a responder. A visão dos fatos futuros abre espaço na interlocução para que a questão da verdade 133 seja novamente recolocada e uma contribuição do Diabo seja feita para tal tema. A interlocução pode se resumir nestes termos: Deus não pode mentir. Mas e o Diabo? Observemos as suas palavras: Posso, eu próprio, ver algumas coisas do futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir se é verdade ou mentira o que julgo ver, quer dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são, verdades de mim, porém nunca sei até que ponto são as verdades dos outros mentiras deles (SARAMAGO, 1991, p. 378, grifo nosso). Sendo o Diabo aquele que divide, 134 no trecho citado ele faz jus ao seu atributo, pois estraçalha a identidade entre Ser, Verdade e Bem, para postular, de uma forma sofística, que uma mentira esconde uma verdade, e vice-versa. O diálogo entre Deus e Jesus prossegue com mais uma arranhada na onipotência do primeiro. É que Jesus lhe pede que conte logo sobre o futuro para que não atrase seu processo de morrer. Mas, Deus responde que desde que nascemos começamos a morrer. Porém, Jesus contra-argumenta dizendo que agora irá morrer mais depressa, dada sua missão. Após esta réplica, a voz do narrador fazse presente e insinua que, diante da situação humana de Jesus, Deus é tomado por um súbito respeito e sua figura parece humanizar-se. Por alguns instantes, o 133 Na página 377 assim se dirige Jesus a Deus: "Tu és Deus, e Deus não pode senão responder com verdade a qualquer pergunta que se lhe faça, e, sendo Deus, conhece todo o tempo passado, a vida de hoje, que está no meio, e todo o tempo futuro" (grifo nosso). 134 D. Helder Câmara, em uma de suas homilias, pronunciou a seguinte frase: Dividir, como pode um verbo ser tão diabólico e cristão ao mesmo tempo. 233

234 autoritarismo divino nulifica-se e abre a possibilidade do reconhecimento, ou, em outras palavras, aquilo que é fundamental no diálogo: a alteridade. A encenação das falas das personagens, milimetricamente controlada pela figura do narrador, serve para apresentar os irredutíveis de cada discurso. Jesus insiste em que Deus lhe revele o futuro e os efeitos de sua morte na cruz e com isto a imagem de um Deus violento fique demonstrada. Como contrapartida, a imagem do cordeiro, animal acuado e à mercê desta vontade onipotente, é acentuada. A oposição entre a violência divina e a mansidão do cordeiro ganha contornos extremos com a negação do dogma da santíssima trindade, já que se acentua ainda mais o caráter despótico e se descarta qualquer possibilidade de uma interpretação ou uma adesão mais simpática a qualquer simbolismo sobre a trindade. A menção do pecado original, para explicar a causa da infelicidade humana, ocorre apenas para justificar que as atrocidades futuras não devem ser debitadas a uma vontade divina de espalhar o seu poder por todo o mundo. Portanto, a construção da cena do nevoeiro (SARAMAGO, 1991, p ), embora apresente uma labiríntica conversa entre as personagens, tem o seu fio de Ariadne: a verdade nua e crua do Deus cristão reside na expansão de sua vontade de poder. As sutilezas dialéticas do Diabo, 135 os comentários metacríticos do narrador, 136 os atributos de onipotência, onisciência e onipresença, e a teimosia de Jesus ao insistir se este Deus é o único e verdadeiro, correspondem a uma ótica romanesca na qual, ao invés de um caleidoscópio, temos uma lupa para enxergar aquilo que, qualquer leitor crítico poderia presumir, a saber, o Deus do catolicismo é uma figura do poder autoritário. Troque-se a lupa pela esponja de vinagre, presente na cena descrita no início do romance (o soldado que carrega o balde próximo à cruz) e se verá que para matar a sede de um Deus cruel e sádico nada melhor do que uma boa mistura de água com vinagre. Mas, se esta ótica 135 A proposta do pacto feita pelo Diabo, essencialmente contida na renúncia ao Mal e na submissão irrestrita a Deus, e a recusa deste último à proposta ao formular que para o Bem existir é preciso que seu contrário também, senão como saberíamos o que é um ou outro, embora sejam falas distintas, variações do ponto de vista, não deixam de revelar que este deslocamento de visões atende à necessidade de convencer o leitor do caráter intrinsecamente perverso do ideal de catolicidade do cristianismo. 136 Numa mesma página, encontram-se dois exemplos. Sobre os limites do saber, conferir o seguinte trecho: "[...] mas nós não conheceremos nunca as ligações profundas que existem entre todas as coisas e actos" (SARAMAGO, 1991, p. 378). Acerca da pluralidade de perspectivas sobre as mesmas coisas, note-se este fragmento: "[...] embora, já se sabe, não vejamos sempre, nós, homens, as mesmas coisas da mesma maneira, o que, aliás, se tem mostrado excelente para a sobrevivência e relativa sanidade mental da espécie" (SARAMAGO, 1991, p. 378). 234

235 fosse mesmo dialética, como se insinua na voz do Diabo e mesmo na de Deus, não apenas o negativo, o sofrimento e a morte estariam sendo apresentados, mas o seu contraponto. Aqui é que, a meu ver, a ironia dramática do narrador falha: se ela existe na medida em que nós leitores e o narrador conhecemos mais das personagens do que elas próprias, também deveríamos ter ciência de que este saber é circunscrito, apanha um lado da questão. Pedir que a ironia se volte contra si mesma, num movimento autofágico, seria uma petição de princípio da qual a organização estética da obra talvez não comporte. A narração dos tormentos dos seguidores de Jesus é atravessada por um riso de escárnio, facilmente detectável no comentário jocoso sobre a situação ridícula do martírio. A imputação ao Diabo das tentações sofridas pelos homens, e o expediente do medo como controle destes últimos não é arma exclusiva do demônio. É o próprio Diabo quem diz que quem inventou o pecado e o castigo não foi ele. Procura-se, mais uma vez, explicar o Mal pela ausência do Bem, com o acréscimo de um comentário típico a desqualificar a onipotência divina. Diz Jesus: E se não te encontra, a culpa, já se sabe, é do Diabo, Não, disso não é ele culpado, a culpa tenho-a eu, que não alcanço a chegar onde me buscam, estas palavras proferiu-as Deus com uma pungente e inesperada tristeza, como se de repente tivesse descoberto limites ao seu poder (SARAMAGO, 1991, p. 386). Este Deus, que cogita sobre seus limites, que com desfaçatez cita a frase "os fins justificam os meios" e que se irrita com as interrupções seguidas de Jesus, é uma ficção, uma figura de papel, mais nada, para retomar a expressão das primeiras linhas da descrição iconográfica da gravura de Albrecht Dürer. Deus, o Diabo e Jesus são caixas de ressonância nas quais reverberam a voz ateia do narrador. É o que se constata nesta passagem: [...] Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus, se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que disse, Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterônimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido, Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é 235

236 assim, une facilmente as diferenças (SARAMAGO, 1991, p , grifo nosso). O trecho é um exemplo de que o que está em jogo são as próprias representações do divino. Esse Deus mais do que criador é criatura; dessacralizase assim a própria representação tanto da figura diabólica quanto divina, restando apenas o nevoeiro. Mas o leitor poderia perguntar-se: que voz irônica é esta que sai do nevoeiro? O leitor deve atinar para o fato de que justamente quando a ficção atinge seu maior grau de consciência sobre seus próprios procedimentos, encontra-se num impasse, a saber, a incapacidade de ultrapassar suas próprias crenças. Afinal, caberia neste derradeiro instante lembrar que a imagem do nevoeiro remonta a um dos mais persistentes mitos da cultura portuguesa: a volta do rei Dom Sebastião. Neste sentido, o nevoeiro tanto pode ser a substância da tradição ficcional portuguesa, o seu elemento (assim como a água é o elemento do peixe), como indicar os limites das luzes da razão. Afinal, esses seres de papel que dialogam durante um número expressivo de páginas são calados por uma voz sem corpo, sem fisionomia e que, como toda ironia, sabe mais do que eles mesmos. O nevoeiro é um obstáculo e uma transparência. Obstáculo porque dificulta a visão das personagens diante da paisagem física na qual estão situadas; transparência porque nessa imagem são iluminadas as representações do Diabo e de Deus. Digo que esclarecem e iluminam, mas algo se furta a essa luz: a voz que sai do próprio nevoeiro, a voz da ficção que assusta Deus, Jesus figura intervalar entre os dois seres e o Diabo. A metáfora do nevoeiro é um convite ao diálogo e ao jogo dialético; o Diabo e sua cara metade (Deus), papel e tinta, mais nada. BIBLIOGRAFIA BACHELARD, Gaston. Le droit de rever. Paris: P.U.F, BARRAL, M. Luís-Pereira do. O que é o Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago. Braga: Edição do autor, BERRINI, Beatriz. Ler Saramago: o romance. Lisboa: Caminho, CAPINAN, José Carlos. Inquisitorial. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

237 CEIA, Carlos. De punho cerrado. Ensaios de hermenêutica dialética da Literatura Portuguesa contemporânea. Lisboa: Cosmos, GEORGE, João Pedro. O meio literário português (1960/1998). Prêmios literários, escritores e acontecimentos. Algés, Portugal: Difel, KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O sagrado existe. São Paulo: Ática, LOPONDO, Lílian (Org.). Saramago segundo terceiros. São Paulo: Humanitas FFLCH USP, MERQUIOR, José Cuilherme. Capinam e a nova lírica. In: CAPINAN, José Carlos. Inquisitorial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p ROUSSEAU, Hervé. A literatura: qual é seu poder teológico? Concilium, Petrópolis, RJ: Vozes, n. 115, p. 497, SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, SEGOLIN, Fernando. O Evangelho às avessas de Saramago ou divino demasiado humano ou o Deus que não sabe o que faz. In: BERRINI, Beatriz (Org.). José Saramago: Uma homenagem. São Paulo: Edipuc, 1999, p IMAGEM Disponível em: < Acesso em: 19 jul

238 Stigma Diaboli - Clovis Trouille 238

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